Assim, de repente,

passou uma semana. e mais um dia. passou? passou. como quem diz, mal de oficina 2. acumula-se o não feito. acumula-se o lido mas ainda não falado. acumula-se o ouvido e também ainda não falado. acumula-se. pensando bem, mal de oficina 2 já foi, welcome to mal de oficina 3.

Mal de oficina

Tanto quanto não conseguir avançar, irrita-me que a mente não me tenha avisado antes da inutilidade do dia. Precisava muuuuiiiito de não fazer nada ou fazer outra coisa qualquer.

Alela

Viagem rápida. Chuva intensa, sol aquecendo. Gosto desta rapariga. A voz, o balanço. Fica bem com esta paisagem variada, embora o seu country seja outro. Um pouco mais de risco na escrita melódica e seria um caso sério. Mas penso isto apenas num intervalo qualquer de gajo que vem aqui escrever de ouvido. Gosto desta rapariga. Se ela quiser mudar, que mude. Não sou eu que lho vou dizer. A voz, o balanço.

Um medo salutar

Um conseguimento, esta curta mas densa novela. A infância como lugar cruel que revela processos atávicos da nossa sempre lenta humanização é um tema difícil. E no cânone estão, por exemplo, O deus das moscas, de Golding, ou O Jardim de cimento, de McEwan. Aliás, é só por causa destes dois que As mãos pequenas não me derrubou por knockout. Um medo salutar desliza destas páginas, e esse medo somos apenas nós antes de termos aprendido a defender-nos da nossa inocência perversa.

Propósitos de vida

Os propósitos de vida não se dividem em úteis ou inúteis, justos ou injustos, para isso há decálogos que cheguem. Não matarás não é um propósito de vida, é uma regra. Escrever pode ser um propósito de vida. Amar aquela pessoa pode ser um propósito de vida. Porque não se sabe onde vai dar nem o que nos trará pelo caminho. Mas sabe-se que uma vez começado jamais poderemos continuar como se nunca tivesse começado.

Alto para dentro

Vamos dizer assim: Marianne Faithfull há muito que não se parece com ninguém a não ser consigo própria. Mas aqui mais. Absolutamente inatual, mas sem rasto de revivalismo. Quem sabe é que é alto para dentro. E ouve-se distintamente no mundo, se também nós soubermos um pouco.

Momento, razão três

O momento é o mesmo que a zona: a vida como ela sempre foi, mas impercetivelmente diferente e melhor. O gesto que procura coincide com o livre fluir da coisa procurada. A bondade do objeto em não desiludir a lei que o sujeito pensa ter encontrado é uma boutade científica, sem dúvida, mas é também uma verdade artística e existencial. Com esta diferença: na zona não há sujeito nem objeto, apenas movimento e fim do movimento. Tal como na vida vista a partir da experiência.

Na zona

Depois da doença, a depuração. Quando há vida a mais, a música fica em menos. Quando o acessório e o fútil desaparecem, a vida só interessa enquanto música. Mas mesmo isso é um caminho longo. Das seis noites no Village, Hersch escolheu apenas o set da última noite — só nessa se sentiu na zona.

Momento, razão dois

O paraíso, a verdadeira vida, é tudo ser exatamente igual ao que é agora mas impercetivelmente diferente e melhor [Agamben de cor, por certo distorcido, foi o que me ficou]. O paraíso pode vir com a experiência: viver agora contente com pequenas coisas com que vivi outrora inquieto. O paraíso que está no princípio só pode ser perdido. O paraíso que acontece com o vir da nossa história só pode ser impercetível. Valor da atenção. Da atenção conduzida por nenhum desejo de grandeza (a queda é também uma forma de grandeza).

Entranhar sem estranhar


E sem pedir licença. Um tom perfeito para estes tempos. Que não são caóticos, mas de uma ordem terrível e que diz sem subterfúgios ao que vem.

Momento, razão um

Gosto de uma poesia que afirma a partir de uma experiência pessoal e que não procura mais do que essa parcialidade com que a vida em nós se cumpre. Isso que nos faz reconhecer onde não nos sabíamos, ou tão só ponderar brevemente — será assim como ele diz que é com ele? como é que é ao certo comigo? —, ou afastar sem remorso uma experiência que pouco ou nada nos tem a dizer por tão inconciliável com a nossa. Cada um desses gestos de resposta é também uma afirmação a partir de uma experiência pessoal. Sim, eu sei, depois, as coisas complicam-se e começa a leitura. Não anula a experiência pessoal, apenas não tem a licença poética de puramente afirmar.

Umberto Saba: Momento

 MOMENTO

As aves à janela, as persianas
entreabertas: um ar de infância e de Verão
que me consola. Tenho mesmo os anos
que sei ter? Ou apenas dez? Para que
me serviu afinal a experiência? Para viver
contente com pequenas coisas com que vivi
outrora inquieto.

Estar no tempo

Bolaño escreveu uma vez que nas Américas toda a moderna ficção provém de duas origens: As aventuras de Huckleberry Finn e Moby Dick. Os detectives selvagens, com as suas personagens boémias, é o romance de amizade e aventura de Bolaño. 2666 persegue a baleia branca. Para Bolaño, o romance de Melville detém a chave da escrita acerca “da terra do mal”; e tal como a saga de Melville, 2666 pode ser estonteante ou soporífero, dependendo do gosto da pessoa pelo “lume brando”.
[da introdução de Marcela Valdes a Roberto Bolaño: últimas entrevistas, Quetzal, p. 18]

Mais do que a genealogia da moderna ficção das Américas, o que aqui é dito com clareza e conhecimento de causa é a própria genealogia mítica de Bolaño. Mítica porque pouco importa que Bolaño tenha de facto aprendido em Huckleberry Finn e em Moby Dick, ou nos seus descendentes das Américas, as duas vertentes do seu estilo compósito. Provavelmente não aprendeu, calhou-lhe por feitio e escolha sobre esse feitio, com uma particular aceitação dele. Mas as escolhas em literatura só se tornam realmente definitivas quando encontram/constroem a genealogia que as legitima. Bolaño escolhe uma genealogia próxima, sem qualquer ansiedade clássica, sem querer escapar ao transitório e ao circunstancial do presente. Essa tarefa vã não lhe interessa, apenas lhe interessa o desprendimento da deriva boémia e o cálculo rigoroso da obsessão — modos de estar no tempo, neste ou em qualquer outro.

Ir e vir

   
Ela: sair de manhã, abrindo sempre. Ele: voltar à noite, progressivamente fechando. 
 
Do fogo à sombra rumorosa. 
 
Com antepassados que se percebem, com um presente que é já deles.

Breleur/Kundera, adenda 2

Um parágrafo é quanto basta para traçar o arco entre um trauma originário e a sua transformação em maravilhoso. O tempo como arco conseguido não é o tempo em que suportamos a existência. A dor ou o apaziguamento têm isso em comum: terem de ser suportados na existência. Durarem. Sempre para além do razoável, mas sempre a caminho de serem outra coisa que os degrada e no-los rouba como experiência fundamental. Um parágrafo é a nossa vida enquanto escultura acabada, limpa do lixo que gerou e da oficina em que se fez. Uma mentira breve, a única verdade do tempo que podemos compreender.

Breleur/Kundera, adenda 1

O arco entre um trauma originário e a sua transformação em maravilhoso. É um arco realista? É. Mas podia não ser, exemplos não faltam. Sem que se consiga perceber exatamente o que faltou a uns e não a outros. O mesmo trauma, a mesma capacidade de inteligência e criatividade, resultados diferentes. Talvez histórias de base diferentes — mas todas as histórias são diferentes, sendo contudo mais iguais do que parecem. Seguimos as histórias e a naturalidade que elas compõem a posteriori, mesmo que diferentes. As melhores histórias fazem a exata sobreposição entre mistério, destino e acaso.

Breleur segundo Kundera

Corpos sem cabeça, suspensos no espaço, são assim os últimos quadros de Breleur. Em seguida, olho para as datas: à medida que o trabalho sobre este ciclo avança, o tema do corpo abandonado no vazio perde o seu efeito traumático original; o corpo mutilado, lançado no vazio, sofre cada vez menos, assemelha-se, de quadro em quadro, a um anjo perdido no meio das estrelas, a um convite mágico vindo de longe, a uma tentação carnal, a uma acobracia lúdica. O tema original passa, por intermédio de inúmeras variantes, do domínio da crueldade ao domínio (para voltar a utilizar esta palavra-passe) do maravilhoso.
Milan Kundera, Um encontro, D. Quixote, p. 106-107