Fora de tempo # 37


É um livro zurzível a quase todos os títulos, e não posso dizer que não tenha sido avisado. Mas o Paulo José Miranda romancista interessa-me, e como o tom dos seus romances deve bastante a uma “costela filosófica”, dispus-me a ler atentamente estes 99 artigos que compõem A América. Vai para o lugar dos “estranhos até ver”: nada que mereça o meu tempo per si, mas talvez alguma coisa disto venha depois a dialogar com um romance que se lhe siga (ou não, o que seria a melhor hipótese para a sua obra, quer dizer, para a qualidade dela).


Fora de tempo # 36

 
Os lugares não são os meus, nem me reconheço na linguagem em que eles se compõem. Mas o saber está em todo o lado, e seria estupidez não aprender de novo.  
Tome-se “A Andorinha ou Tudo é Relativo”: “Da andorinha dificilmente se dirá / que é um animal feroz. Pelo contrário, / convêm-lhe adjectivos como grácil. // Mas a grácil andorinha abre / para o mosquito uma boca aterradora.” (p. 29).
Ou tome-se “Degradação”: “Toda a gente foi domingo / alguma vez. // Depois nas fezes aparecem / sinais de sangue, ou na urina. / Declaram-se abcessos, / coágulos, tumores. // Passamos então a ser uma sombria, / pesada, intransitiva / segunda-feira.” (p. 70).
São poemas que dispensam interpretação. Mas que não dispensam a execução que deles a vida fará em nós. Questão de tempo e circunstâncias, apenas.

Fora de tempo # 35


Ela, a que foi suficientemente inteligente para aprender a dar ao rabo com um pato, quase-quá, ela dispõe-se a acompanhá-lo na sua morte: “e agarrar-lhe-ei a mão com força e dar-lhe-ei um beijo na testa, um beijo como deve ser, só para lhe lembrar o que deixa atrás de si. Boa noite, Senor C, sussurrar-lhe-ei ao ouvido: sonhos cor-de-rosa e voos de anjos, e tudo o resto.” (p. 240-241). Autoridade é isto: um romance acabar na calma vulgar da comum humanidade, e isso ser o cume indesmentível de uma arte maior.

23:52

fico-me então pelo plano A, amanhã levanto-me às sete e vou trabalhar

22:40

pelo andar das coisas, nem incidências louçã nem portas, nem as faianças da Titi vão a lado nenhum

21:40

falou manuela ferreira leite, depreende-se que vamos ter algumas incidências parlamentares por abstenção
entretanto, maria de lurdes rodrigues não aceita as faianças da Titi no seu gabinete

21:09

previsões às nove: um pouco de sócrates, um pouco de louçã, um pouco de portas, um pouco de caos, incidências parlamentares

20: 47

a menina da sic: o ps dramatizou, ou nós ou o caos, parece que afinal vamos ter um pouco de sócrates e um pouco de caos

20:42

piquena dúvida: mando as faianças da Titi para o brasil, ou será suficiente guardá-las no gabinete da maria de lurdes rodrigues? empréstimo para estudo sociológico, claro...

19:42

plano A: amanhã levanto-me às sete da manhã e vou trabalhar;
plano B: amanhã levanto-me às seis da manhã, despacho as faianças da Titi para o brasil, vendo as acções, desfaço-me dos PPR, e vou trabalhar;

Fora de tempo # 34

Assim a correr, ocorrem-me uma série de razões para eleger o último capítulo de Diário de um mau ano como um dos melhores últimos capítulos de sempre. Mas argumentar isto levava tempo demasiado. A qualidade de um primeiro capítulo depende exclusivamente dele mesmo, a qualidade de um último capítulo depende da sua relação estrutural com o todo, e isso já é uma conversa longa. Ainda por cima, este último capítulo são três, ou qualquer coisa do género. Salto por cima disso tudo e fico apenas com a razão mais subjectiva — Dostoievski. Desde sempre um dos mestres de Coetzee, desde sempre um dos meus autores absolutos.
“Ontem à noite reli o quinto capítulo da segunda parte de Os Irmãos Karamazov, o capítulo em que Ivan devolve o bilhete de entrada no universo que Deus criou, e dei por mim a soluçar incontrolavelmente.” (p. 237). Percebo, oh se percebo. Mas há que saber exactamente porque se chora. Porque a argumentação de Ivan, diz-nos Coetzee, não é das mais poderosas enquanto argumentação. Concedamos. O que impressiona “são as notas de angústia, a angústia pessoal de uma alma incapaz de suportar os horrores do mundo.” (p. 238). É essa angústia convincente, é convincente e autêntica a voz de Ivan? “A resposta é sim.” (p. 239). E é por ser convincente e autêntica que não só a ouvimos como a lemos, e enquanto a lemos “há espaço bastante para pensar também: Louvado seja Deus! Até que enfim a vejo diante de mim, a batalha levada ao seu mais elevado nível! Se a alguém (Aliocha, por exemplo) for dado derrotar Ivan, por palavras ou pelo exemplo, então a palavra de Cristo será de facto vingada para sempre! E por conseguinte a pessoa pensa: Slava, Fiodor Mikhailovich. Que o teu nome ressoe para sempre nas galerias dos famosos!” (p. 239-240).
A batalha levada ao seu mais elevado nível — é esse o legado, a batalha para dentro de nós, que o lemos e prolongamos. Há sempre outros termos, talvez até a ideia de a batalha ser uma outra batalha, mas a nota de angústia, quer devolvamos o bilhete ou não, essa é levada ao seu mais elevado nível. Slava, Mr. Coetzee. As tuas lágrimas são justas. E o resto não é literatura, o resto é coisa de quem não sabe até onde pode ir a literatura.

Fora de tempo # 33

Mr. Coetzee é um ensaísta como há poucos. Sobretudo naquelas coisas em que uma vida num certo lugar segue pelos seus próprios meios aquilo que a literatura de outro lugar já foi contando: “É este, em grande parte, o tema profundo de William Faulkner: o roubo da terra aos índios ou a violação de escravas regressa de forma imprevista, passadas gerações, para atormentar o opressor. Olhando para trás, o herdeiro da maldição abana pesarosamente a cabeça: Pensávamos que eles eram impotentes, diz ele, foi por isso que fizemos aquilo que fizemos; vemos agora que eles não eram nada impotentes.” (p. 58-59)

Ponto de passagem 2009

Por mais importante que seja, uma eleição é apenas uma eleição. Não é o princípio da democracia, muito menos a sua finalidade, menos ainda o seu fim. Votar é simplesmente um ponto de passagem. Mas ponto de passagem fundamental. Neste ponto de passagem de 2009, calma e criticamente, votarei Bloco de Esquerda.

Fora de tempo # 32

Quando se descobre isto, a liberdade, sobre ser trágica e angustiante, torna-se também irrisoriamente leve (uma roleta russa obsequiosa, deferente, mas sempre irreparável):
“O eleitorado — o demos — acredita que a sua tarefa é escolher o melhor, mas na realidade a sua tarefa é muito mais simples: é ungir um homem (vox populi vox dei), não importa quem. Contar os votos pode parecer um meio de descobrir qual é a verdadeira (ou seja, a mais alta) vox populi; mas o poder da fórmula da contagem de votos, tal como o poder da fórmula do primogénito varão [na sucessão monárquica], reside no facto de ser objectiva, isenta de ambiguidades, exterior ao campo da contestação política. Atirar uma moeda ao ar seria igualmente objectivo. Igualmente isento de ambiguidades, igualmente incontestável, e poderia, por conseguinte, pretender-se igualmente bem (como já se pretendeu) que traduzisse a vox dei. Não escolhemos os nossos governantes atirando uma moeda ao ar — a moeda ao ar está associada ao jogo, uma actividade de baixa categoria —, mas quem se atreveria  argumentar que o mundo estaria em pior estado do que aquele em que se encontra se os governantes tivessem sido desde o princípio dos tempos escolhidos pelo método da moeda ao ar?” (Mr. Coetzee, a páginas 22-23).

Fora de tempo # 31

Só para lembrar algumas verdades simples: “é uma falácia elementar concluir que, pelo facto de numa democracia os políticos representarem as pessoas, os políticos são pessoas representativas.” (Mr. Coetzee a páginas 129).

Fora de tempo # 30

Mr. Coetzee dá-lhe voz a Ela, a mulher nova do romance, e o mais certo é que tenha ouvido o que se segue a uma Ela (pobre vida heterossexual, se nunca ele ouviu dela algo parecido): “Acho que o fui buscar aos patos: um abanar do rabo tão rápido que é quase um arrepio. Quase-quá. Porque havíamos de ser altivos e poderosos de mais para aprender com os patos?” (p. 40).
É isso: quase-quá.

Fora de tempo # 29



Sim, já tudo foi dito sobre homens velhos e mulheres novas. Ou postas as coisas noutros termos, sobre homens para lá do prazo de validade e mulheres que começam a desconfiar da sua segurança sexual, ainda que a exerçam imperialmente. Acrescente-se isto ao rol:


“Ao observá-la, senti pregar-se-me uma dor, uma dor metafísica que não fiz nada para conter. E de uma maneira intuitiva ela sabia disso, sabia que havia no velho sentado na cadeira de plástico ao canto qualquer coisa de pessoal a passar-se, qualquer coisa que tinha que ver com a idade e a mágoa e as lágrimas das coisas.” (p. 14)

É este o “momento”: quando o que se ergue num homem não é o seu corpo, mas o tempo que desse corpo se afasta; quando o que recebe numa mulher não é o seu corpo, mas o tempo que nele começa a assentar.

Fora de tempo # 28

 
“Aquilo em que os grandes autores são mestres é a autoridade. Qual é  a origem da autoridade, ou daquilo a que os formalistas chamavam o efeito de autoridade? Se a autoridade pudesse ser alcançada apenas por truques de retórica, Platão teria certamente justificação para expulsar os poetas da sua república ideal. Mas se a autoridade só puder ser atingida abrindo o eu-poeta a uma força superior, deixando a pessoa de ser ela própria e começando a falar profeticamente?” (p. 167-168)
O que é uma força superior? Não é Deus, a História, o Partido, a Musa, a Pátria, coisas assim. Uma força superior é qualquer coisa que se nos impõe, sem sentido pré-dado, e que nos arrasta até lá, para que o saibamos por fim sem realmente o possuirmos. Uma fala profética não é a fala que sabe mais do que os outros, é a fala que diz aquilo que não sabe.
Nos romances, as personagens “conseguidas” costumam ser bons exemplos de “forças superioras”. Mas esta forma de expressão já trai o essencial e apenas mostra a nossa dificuldade em lidar teoricamente com isto. Uma personagem “conseguida” não é conseguida pelo autor, mas consentida pelo autor, e quantas vezes contra ele próprio. A vantagem de um Grande Velho é que já se está bastante nas tintas para ele próprio — o que vem através dele já não encontra tantos obstáculos, tantas pseudo-certezas. E contudo, a coragem de um Grande Velho não tem paralelo: o vazio que reconhece em si, e que deixa espaço largo para o trânsito do que não sabe, é já o passo adiantado da morte. Para a qual caminha decididamente. 

Companhia nocturna # 67


A realidade pode ser a grande surpresa. Mas na arena dos  combates titânicos  raramente o é. A ciência da guerra é vasta, tudo assimilou, assistimos não mais do que a variações ou repetições de jogadas há muito catalogadas. O grande senhor jogou forte e perdeu. O fiel servidor consente ser oferecido como bode expiatório. O adversário triunfa com discrição, prefere ganhar uma dívida de hipotética cobrança do que partir para o assalto final. Enquanto isso, é possível — é sempre possível — encontrar um trio superlativo.

Fora de tempo # 27

 
Salvé, Grande Velho, graças pelas coisas de que só um velho é capaz, a liberdade sardónica, a autoridade que não esmaga, o sexo que ri, o pensamento que não se leva a sério e vai pensando sempre mais, a falta de paciência para esperar pelas histórias, a poesia inusitada de coisa nenhuma, a gravidade imperceptível de existir.