Foi por causa destas seis razões — uma, duas, três, quatro, cinco, seis — percebes? Outra faca, outro fogo — e largas limitações minhas. Dois mundos antagónicos — e largas limitações minhas. Quem compreende, compreende. Eu compreendo — sobretudo a parte das largas limitações minhas. Mas as limitações só o são quando postas perante o que as delimita — a faca, o fogo. É por isso que faço como tu: passo a outro blog.
Sonhos
Comunicado interno: acabei aquilo (agora, exactamente agora). A última tarefa foi localizar na nova edição aquela frase que de repente me (re)saltou: cálculos, tentativas. Localizei, e percebi que me lembrava mal. A frase é: cálculos, sonhos, tentativas. A minha memória está a amadurecer comigo (wishful thinking?).
Breves # 2: um prémio merecido
Resumindo uma semana de interregno
Agradeço-lhe ter usado argumentos tão pobres, a tarefa de refutá-los está assim simplificada. Contudo, e espero que concorde comigo, sinto-me obrigado a ter também em atenção os argumentos mais sofisticados que poderia ter invocado, e que só não fez, estou certo, por cortesia e deferência para comigo.
António Alçada Baptista
António Alçada Baptista tornou-se-me visível com Os nós e os laços. Suponho que para muitos da minha geração terá sido assim. O que nos interessava naquele romance era a serenidade com que se dava o possível de relações afectivas que conseguiam passar ao lado do vulgar ciúme ou do já mais complexo desejo de posse, e que faziam da sexualidade uma alínea mais do diálogo humano. Depois da revolução dos costumes, depois da revolução sexual, afinal estava tudo ainda por fazer.
A figura do escritor era gentil, melancólica, afectiva — e isso também conquistava. A sua utopia “feminina” era uma bela história ética com personagens não muito credíveis — aceitávamos o princípio do cuidado, dos afectos, de olhar o mundo do lado de lá do poder, mas não nos parecia que as mulheres tivessem isso inscrito na sua natureza ou na sua sociabilidade histórica. Lembro-me de num colóquio em que ambos éramos intervenientes lhe ter dito, em provocação, que a sua “teoria” desconhecia, por exemplo, as personagens femininas da Agustina Bessa-Luís. Sorriu: considero a Agustina Bessa-Luís um grande escritor. E repetiu: um grande escritor. Sorri eu também, porque nesse um estávamos de acordo (e no grande também, claro).
Metáfora involuntária e melancólica: por três vezes orientei teses de mestrado sobre a sua ficção e o seu “ensaio”, por três vezes a vida deu voltas inesperadas e as pessoas tiveram de desistir. O riso de Deus é por vezes sardónico até dizer basta.
A última coisa que soube de António Alçada Baptista (sim, a minha ignorância é grande) é que lhe devia a Moraes — e foi bom sabê-lo. Só isso já seria suficiente para lhe dizer obrigado.
Oráculo, ou A mesma história de sempre # 4
Vivi pela espada, é justo que morra pela espada. Só nesta frase o conheci verdadeiramente e todos os equívocos se desfizeram. Soube enfim da sua lucidez e o modo como isso lhe permitia passar despercebido junto de todos. Conhecê-lo era começar a conhecer-me. Havia uma espada nas minhas mãos, ele o dizia. A sua morte à minha força e à minha vontade, sem que eu soubesse porquê. Mas não havia engano nas suas palavras. Eram palavras que não lhe pertenciam. O mundo falava das suas histórias de sempre, envolvia-nos nas suas histórias de sempre, ele limitara-se a descrever o que lhe calhara em sorte. Eu estava incluído na sua sorte. Eram palavras tão exactas e tão impessoais que soube que iriam ser também minhas. Daqui a alguns anos, daqui a muitos anos, naquele certo e determinado momento, iria dizê-lo a alguém, que tal como eu agora não faria ideia de que pertencia àquela história. Que tal como eu agora olharia minuciosamente a sua vida, procurando a espada, a fúria, a frieza, a determinação. Que tal como eu agora descobriria que desde muito cedo começara a viver pela espada, que nunca ousara sabê-lo embora o suspeitasse largamente, que havia um preço que alguém cobraria e que isso era o modo de o mundo continuar na sua trajectória.
Oráculo
Vivi pela espada, é justo que morra pela espada. Disse-mo a mim — eu, que não sabia que empunhava a espada, e muito menos que o matava.
A mesma história de sempre # 3
Tornar-se adulto, envelhecer (meros exemplos) — isto não pertence ao programa do devir do mundo. São narrativas das nossas ilusões mais genuinamente verdadeiras e complexas. O devir do mundo acontece quando “tornar-se adulto” e “envelhecer” não conseguem explicar tudo o que acontece dentro da narrativa de “tornar-se adulto” e “envelhecer”. Pode ser uma pequena percentagem, quase sempre não é mais do que uma pequena percentagem — mas é essa percentagem que é o devir do mundo. As coisas acontecerem sem nós, essa pequena percentagem de liberdade sobre a liberdade a que chamamos nossa.
A mesma história de sempre # 2
Um dos problemas em distinguir as histórias é a capacidade que cada história tem para apresentar-se como uma história diferente. Ou efectivamente ser uma história diferente. Há duas variáveis nesta questão: as nossas ilusões e o devir do mundo. Das nossas ilusões nunca acabaremos de saber; do devir do mundo, raramente começamos a dar conta.
A mesma história de sempre # 1
O mais difícil de perder é o hábito de criar coisas a que temos de ceder. Dizemos que cedemos a uma tentação como se nos submetêssemos a alguma coisa em vez de dizermos que criamos qualquer coisa para a ela nos submetermos. (...) Temos de nos lembrar continuamente de que os nossos vícios são invenções nossas, tanto quanto as nossas virtudes; de que nunca perdemos o controle, por vezes apenas infringimos as regras, e nunca somos inteiramente infiéis, apenas somos fieis a outra coisa.
Estamos mais interessados na regra que infringimos do que na regra a que obedecemos para a infringir. Enquanto estivermos viciados na culpabilização e na punição e não nas alternativas, nunca perceberemos a história toda. Apenas a mesma história de sempre.
Aquele órgão só de professores doutores por extenso # 11
“[na montagem] É quando os problemas de roteiro ou interpretação são percebidos e contornados, onde um personagem pode ser modificado ou um canastrão pode virar um ator razoável. (...) Há um milhão de maneiras de melhorar uma atuação na montagem. Nos momentos mais vergonhosos pode-se cortar para a cara do outro ator evitando o vexame, uma fala mal falada pode ser regravada e usada com a imagem do ator de costas e daí para afrente. Confesso que tenho um certo prazer quando consigo fazer isso sem deixar marcas da trapaça.”
Por mim, confesso que até não me importava que houvesse marcas da trapaça, desde que efectivamente pudesse haver um editing instantâneo das intervenções que tornasse a coisa só um bocadinho menos vexante de assistir, ou mais estética, ou até — eu sei que é pedir muito, eu sei — quase inteligente.
E à despedida apenas disse a frase de sempre, nada serve
É verdade que à distância as coisas se vêem melhor. Alguém imagina que um livro se possa hoje intitular Todo o alfabeto dessa alegria? Mas naquele tempo fazia mais que sentido. Naquele tempo de 1985, ainda fazia sentido todo o alfabeto e essa alegria. Entrados nos 90, José Amaro Dionísio reuniu todos os seus livros num só livro: O nome do mundo (1996). Era já um livro em contra-ciclo: o nome deixara de importar, apenas as marcas se ouviam; o mundo não era chamamento nem apelo, apenas mercadoria omnipresente.
Depois o autor desapareceu dos livros. Não de todo da escrita: este livro reúne precisamente pequenos textos (seis) de 94, 98, 2002, 2007 e 2008. O título Nada serve aparece em 2002. Acrescentemos-lhe uma parte do “Post-scriptum” que o encerra, e nada mais é necessário:
“Era só o que queria dizer. Depois da morte hei-de talvez acrescentar que cheguei a amar a perda do que amei, mas será tarde demais, o tempo é afinal uma possibilidade tão inútil como resto.”
*O título do post vem da dedicatória do livro: “para o Rui Athayde Ferreira, que me convidou para jantar na última noite, e à despedida apenas disse a frase de sempre, nada serve”
Quem sabe? Talvez o Génio apareça...
Dia 28 de Novembro (sexta-feira), às 21.30h, na Biblioteca Florbela Espanca, em Matosinhos, apresentarei o livro de Pedro Eiras, Os Três Desejos de Octávio C..
O génio sentou-se num tapete que apareceu naquele instante e explicou, com um bocejo:
— Obviamente, Octávio, tu não és o primeiro. Já pertenci a muitos donos desde que a sábia Sulamite me forjou. Já fui de imperadores e de escravos; os escravos quiseram ser poderosos e os imperadores quiseram ser eremitas. [da contracapa]
Podemos começar por aqui, por esta falsa simetria, por esta falsa reversibilidade. Porque ser imperador não é necessariamente o mesmo que ser poderoso, e ser escravo não é efectivamente o mesmo que ser eremita. Podemos começar por aqui, quer dizer, pela falsa simetria e pela falsa reversibilidade de todo o desejo. Mas pensando melhor, talvez não seja bom começar por aqui.
Blindnesse [je ne sais quoi]
“Afirmou que fotógrafos não fazem muita coisa, apenas 20% do trabalho, e que quem faz uma boa fotografia na verdade é a cenografia, a direção de arte ou os próprios atores. Para ilustrar sua tese (da qual discordo, ainda mais no caso dele), completou que sempre que enquadra a Rhonda, a stand in* da Julianne Moore, sente que tem alguma coisa faltando em seu trabalho, mas quando chega a Julianne e ocupa o mesmo lugar, na mesma posição, o quadro parece iluminar-se, a fotografia se completa e a imagem passa a parecer “cinema” A tal da presença, do je ne sais quoi.”
[*Os stand in são as pessoas que, depois do primeiro ensaio, enquanto os atores vão se maquiar, ocupam seus lugares para que o fotógrafo possa iluminar a cena e ensaiar o movimento da câmera.]” (p. 17).
“Por sorte, nesse filme estamos livres desse mal, aqui podemos sempre contar com um último recurso que funciona como uma espécie de colete-salva-vidas, infalível: tudo na cena está ruim? Corta para um close da Julianne Moore. Aí é cheque-mate.” (p. 67).
Blindness [confere]
“Reflexos o tempo todo, imagens abstratas, mal enquadradas, desfocadas ou superexpostas completarão a receita da desconstrução do espaço (ou da visão?) neste filme.” (p. 27).
“Em cenas muito difíceis, alguns atores estão usando lentes de contato que bloqueiam 100% a visão, deixando-os livres para se concentrar na intenção da cena sem se preocupar em parecerem cegos.” (p. 28).
121 exercícios de estilo
Freud, pois claro, era um grande escritor. Também um grande escritor, sobretudo um grande escritor — eu sei que (algumas d’)as águas se dividem algures por aí. Entre os que viram um sistema (com as suas revisões, mas um sistema) e os que viram um estilo que nele estava pensando. Digamos, entre Lacan (o sistema, apesar do estilo) e Barthes (o estilo, apesar da tentativa de sistema). Adam Phillips é um descendente da linha “sobretudo um grande escritor”. Há nele um estilo que está pensando. Aqui, por aproximações sucessivas sempre na ordem do paradoxal. Quem quer que tenha dedicado um simples pensamento à monogamia sabe que a coisa se presta (talvez até em demasia) ao paradoxo. É um desses conceitos que não existe sem a sombra activa, cúmplice e movediça do seu reverso. Mas é também um desses conceitos que erradamente restringimos a uma esfera específica, neste caso a da relação amorosa e do contrato marital. Freudianamente, Adam Phillips vai mostrando que os mais apertados nós deste paradoxo estão antes ou à volta dessas situações para as quais convocamos o termo monogamia; e que situações na aparência idênticas obrigam a leituras bastante distintas. Como sempre nestes casos, não se sai de um livro assim mais ou menos monogâmico, mas com a consciência salutarmente irónica de que, sejamos quem formos, não nos é permitido sermos estranhos a isso. Mais vale, pois, arranjarmos um estilo para lidar com a coisa.
Finitos
Nessa gasta história do fim, há quase sempre um lado da questão que nos recusamos a encarar: que um escritor possa ter uma lúcida percepção de que tocou certo limite seu, e que dali para a frente não produzirá mais nada de significativo. Pode um escritor enganar-se sobre isso? Claro que sim. Mas também pode acertar com toda a serenidade: afinal somos finitos, na nossa existência e no modo como a inventamos para nós mesmos.
Blindness
No que à partida seria mais difícil, o filme de Fernando Meireles não soçobra. Seria difícil objectivar em imagem a dupla condição imaginária do leitor de “Ensaio sobre a cegueira”: imaginar-se na pele dos que têm a cegueira branca e imaginar o caos da quarentena e da cidade. Uma câmara trepidante, alguma desfocagem que “resolve” em branco, e um cenário de cidade caótica sobriamente verosímil são um bom análogo dessa dupla condição.
Onde o filme falha, é na dimensão político-poética que o livro ensaia. A importância das mulheres está diluída, o gesto ético da mulher do médico que mata o chefe da camarata dos maus aparece no filme como uma simples e justificada vingança, a moral do grupo em nenhum momento é enunciada, o cão das lágrimas não se percebe que está ali a fazer, a confissão de amor do velho da venda preta tem exactamente o sentido contrário, relativamente ao grupo, que tem no livro, etc. Certo que o filme não tem de ser fiel ao livro, mas o que o filme elimina, ou as suas opções, retiram ao filme a possibilidade de um confronto mais forte com o presente que é o nosso. A alegoria torna-se mais etérea, menos incisiva, mais hollywood. A cegueira, não o ensaio sobre ela. Um sobressalto de alma, não um pensamento que interroga almas (enfim) sobressaltadas.
Isso que vem depois, a metáfora, a vida em geral
Há quem escreva para matar a literatura que o fez nascer, até descobrir que a relação necessária da literatura ao mal é tão ingénua e pueril como a relação da literatura aos bons sentimentos.
É nesse momento que qualquer coisa fica pendurada no vazio como uma coisa qualquer.
Depois é sempre a descer. Há quem volte a escrever, quem filosofe a partir do trabalho em agências funerárias, quem não entre em histórias conhecidas.
É tudo? Provavelmente, não. Mas à vida em geral isso nada interessa, os indivíduos são danos colaterais, a vida em geral é simplesmente isso que vem depois da vida em geral.
Ainda a vida em geral
Ainda uma metáfora
"De repente apareceu o mar. Um sol fraco iluminava as praias que se iam sucedendo como contas de um colar sem pescoço, suspenso no vazio."
Isso que vem depois
"Esta é a minha última transmissão do planeta dos monstros. Nunca mais voltarei a mergulhar no mar de merda da literatura. Daqui em diante escreverei os meus poemas com humildade e trabalharei para não morrer de fome e não tentarei publicar."
Sim, isso que vem depois. Sendo que o antes nunca acaba e o depois está desde sempre começando. Como alguns sabem.
Noite
Não te descalças?
Sim, claro.
Contas-me uma história?
Sim, claro.
Páras de dizer “sim, claro”?
Era uma vez uma história que andava atrás de um pajem por montes e vales...
Isso não foi ontem?
Mas agora é com música de fundo, baixinho. Era uma vez uma história que era pajem de um pajem e andava por montes e vales com o seu chapéu e a sua cabeça...
O pajem do pajem
Nunca se pode ter a certeza. É isso que sempre digo, nunca se pode ter a certeza. Levamos o livro para a cama, vamos indo até onde o sono deixa, depois dormimos já quase a tropeçar numa frase. São fins de dia pacíficos, usuais, se o termo não estivesse gasto talvez pudéssemos dizer simplesmente: fins de dia perfeitos.
Mas nunca se pode ter a certeza. Podem acontecer coisas um pouco estranhas: “Ele, o chapéu, assenta nela, a cabeça, como a tampa enviesada de um caixão, ou como a tampa de latão de uma velha frigideira enferrujada.” (p. 7). Mas que raio se passa aqui?.. Espera, há mais, não bastava este estranho par cabeça-chapéu, há agora também um autor que põe a história no encalço do par: “É uma tarefa cansativa, esta de contar histórias. Sempre a correr atrás de um rapazote romântico, pernalta e bandoleiro, e sempre à escuta de tudo o que ele canta, pensa, sente e diz. E o diabo do pajem não pára quieto, e nós temos sempre de ir atrás dele, como se fôssemos na verdade o pajem do pajem.” (p. 8). É por isso que eu digo que nunca se pode ter a certeza. O sono já foi desconvocado, amanhã alguém as vai pagar, mas nisso não haverá novidade nenhuma: a factura é sempre de quem lê.
Remarkable, indeed
Mistérios dos deuses, que as duas bandas jazz mais inventivas e progressivas da actualidade “pertençam” a duas senhoras: Carla Bley e Maria Schneider. Mistérios aceitáveis pelo bem que nos fazem, cada uma a seu muito diferente modo.
Appearing Nightly, todo ele mas sobretudo a longa suite “Appearing Nightly at the Black Orchid” (quatro movimentos, vinte e quatro minutos), é Carla Bley como exemplum e como vintage: o humor desenfreado da citação e do desvio (e são tantos que nem vale a pena começar a lista), as ligações inusitadas mas que compõem coerentemente uma história, as massas fortes e os solos acutilantes, pequenos mas audíveis recantos líricos, e a afirmação quase selvagem da alegria de viver.
Com higiene e sem dor, design avançado
Gente que sabe avisou-me que, para efeitos de recibos verdes, tinha voltado a rubrica “Criação Artística e Literária”, com um novo código. Passei nas Finanças a saber da coisa. Abriu-se a página na minha inscrição e a senhora informou-me triunfante: está a ver aqui, foi feita a substituição automática, onde estava “Editores de obras de sua autoria” já está “Criação Artística e Cultural”. Enquanto meditava com admiração nos grandes benefícios do Simplex, e ponderava a bondade de algumas reformas socráticas, o rosto da senhora contraiu-se em culpa. Segui-lhe o olhar no écran: no segundo campo de inscrição, onde dantes constava “Outras Actividades”, o Simplex tinha colocado sem hesitação: “Aplicador de tatuagens e similares”.
Re-escrever
Não tive ainda a experiência de participar num congresso em que o livro de actas é entregue antecipadamente, não há apresentação de textos mas discussão do conjunto do livro com os autores. Como ideia, parece-me ter algumas vantagens sobre o modelo do congresso clássico, que muitas vezes resvala para uma sucessão o seu tanto autista de leituras. Mas tem um contra decisivo, que este colóquio me evidenciou sobremaneira (como poucos até aqui, valha a verdade): a impossibilidade de re-escrever o texto a partir da discussão gerada. A fórmula de equilíbrio, e creio que mais produtiva, seria dispor-se de uma proposta de texto inicial, dada a conhecer antecipadamente, haver o encontro, e depois algum tempo para apresentar uma versão final.
A imensa minoria
Quase gourmet
Companhia nocturna # 39
A forma como alguns textos se alteram com a música que lhe doamos. De súbito, Finisterra pareceu-me ter a verdade de um jardim abandonado, finalmente livre, de uma natureza que os nossos olhos não podem consentir nem verdadeiramente ver porque seria contemplar o nosso desaparecimento irremediável. Numa serena catástrofe invertida e sem gritos.
Charme
Há muito, muito tempo que não via tanta mini-saia por metro quadrado como em Paris. No Outono. Com bastante frio e alguma chuva. Mais do que ser sexy, a mini-saia deixava uma vaga promessa de intimidade mundana, como se qualquer ponto da cidade fosse desaguar num elegante e acolhedor foyer: um espectáculo, uma conferência, um longo jantar de convívio.
De vez em quando [adenda]
Noite alta, fui sacudido (é o termo) por este pensamento tremendista: a democracia portuguesa também teve o seu imprevisível, o vaudeville santanista. Mas antes de ficar acordado em triste e amarfanhada comparação, o sono socorreu-me com um pequeno pormenor técnico: ido a votos, foi o que se sabe. A lição a extrair daqui é que se não falas da política rasteira à luz do dia, ela chateia-te no sono até acordares. A ver se me lembro hoje, quando for tomar café, de exigir que apanhem essa cambada do BPN — preciso duma noite descansada.
De vez em quando
Totem e tabu
No metro, hora de ponta, aquela forma desesperada como as pessoas se agarram ao varão frente a cada porta. Uma contenção animal, uma suspensão momentânea da identidade e dos códigos de intimidade: proibido pensar o quão perto está o outro e o potencial de violência que aí se inscreve. Apelo remoto a uma horda cujo inimigo é simplesmente haver gente entre dois trajectos.
Depois sai-se, respira-se fundo, retoma-se a normalidade da vida.
WC Lectures # 32
O início de outra série deslumbrante, a de esta espécie de "pássaro".
E depois há aquelas histórias tipicamente goreyanas, que trazem o inquietante que não é completamente desconhecido para dentro da normalidade da vida, desarrumando tudo daquele modo que não podemos classificar nem de fantástico, nem de poético, nem de alegórico. Na verdade, o único modo razoável de classificar o que ali se passa é chamar-lhe modo goreyano.
WC Lectures # 31
WC Lectures # 29
Colóquio/Letras
A Colóquio Letras é, desde há vários anos a esta parte, a melhor revista de literatura portuguesa que se edita entre nós. Parte fundamental desse estatuto deve-se à direcção de Joana Morais Varela. É com estupefacção que leio notícias sobre o afastamento de Joana Morais Varela do seu cargo e instauração de processo disciplinar em sequência da sua reacção.
Não sei que novo projecto a administração da Fundação Gulbenkian poderá ter para a Colóquio Letras e como pode dar-se ao luxo de prescindir de alguém que realizou o trabalho que Joana Morais Varela realizou. Para já, tudo indica estarmos perante uma má notícia para o estudo da literatura portuguesa e um caso de manifesto esbanjamento de recursos humanos especialmente qualificados.
Companhia nocturna # 38
Com uma economia de meios e uma simplicidade desarmante — o que também evita que os seus setenta e quatro anos se façam notados —, Abdullah Ibrahim revisita alguns dos seus temas num encadeado de vinte e dois movimentos que se ligam como se fossem uma única tapeçaria. Ninguém no jazz tem este sentido da melodia construída como simples figura rítmica progressivamente desvelada, capaz de nostalgia cantante ou de efusividade serena.
Obama
Os trabalhos e os dias (26)
Pequena teoria da literatura para uso doméstico # post-scriptum
Das duas, as duas: ou este blog não é lido por donos de hotéis de luxo, ou os donos de hotéis de luxo que frequentam este blog não são sensíveis aos problemas da teoria. A questão é que não recebi qualquer convite para uma temporada num quarto de hotel de luxo. Este blog continua a partir do seu habitat usual.
Companhia nocturna # 37
O peso da história pode interditar: sobre este duo de pianos paira à partida a sombra desse outro já longínquo duo, talvez o melhor de sempre na discografia do jazz, que foi An evening with Herbie Hancock and Chick Corea (1992).
O peso da história pode induzir confiança: para além da parceria com Hancock, Corea soube construir mais dois duetos excepcionais, um com Gary Burton e outro com Bobby McFerrin.
O dueto com a jovem pianista japonesa Hiromi desembaraça-se bem do peso do interdito, excepto na última peça Concierto de Aranjuez/Spain, onde Hiromi quase desaparece, talvez por o confronto com McFerrin (versão avassaladora de Aranjuez) e Hancock (sublime Spain/La Fiesta) ser demasiado. No resto, o lirismo nada sentimental de Hiromi adequa-se bem a um Corea menos impetuoso, mais arquitectónico, mas sempre feérico: não é um confronto de pianos, mas uma paleta de vales variados e pequenas colinas de intensidade.
Momentos altos: Bolivar Blues (Monk) transformado em festa, e o impressionismo de Place to be, da própria Hiromi.
Pequena teoria da literatura para uso doméstico # créditos finais
Pequena teoria da literatura para uso doméstico # 18
O que estamos dispostos a fazer para não saber aquilo que desde sempre sabemos.
A forma como deliberadamente falhamos em esconder que deveras sabemos aquilo que desde sempre sabemos.
A morte? É certo que o embrulho tem uma cabeça cortada. Mas ainda não é isso. A cabeça cortada dá-te a súbita consciência da ligação da tua cabeça a ti próprio. Estás inteiro. Um profundo alívio: estás inteiro. E no mais fundo desse profundo alívio, a precariedade: se estás inteiro, é porque podias não o estar.
Pequena teoria da literatura para uso doméstico # 17
Eu sei que já disse que o importante era não abrir o embrulho. Há até mais razões para não abrir o embrulho do que para não escrever.
As razões para não abrir o embrulho não acabam nunca. Nunca. Nunca.
Mas todos os dias abrimos o embrulho. Desde o início dos tempos que todos os dias abrimos o embrulho. O início dos tempos foi quando a primeira vez abrimos o embrulho.
Aqui estamos. Domésticos. Dentro do tempo. Escrevendo. Abrindo embrulhos. Continuando a escrever, a abrir embrulhos. Como uma coisa qualquer.
Pequena teoria da literatura para uso doméstico # 16
Mais que o lugar onde se está, importa o lugar de onde a escrita brota. Não a paisagem que a escrita descreve ou circunscreve, quando há alguma, mas o lugar imaginário onde a escrita acontece.
Ramos Rosa no seu andar lisboeta — é sempre manhã algarvia, janela aberta para o mar, é aí que a escrita nasce.
Vergílio Ferreira no seu andar lisboeta — é sempre a interminável noite do mundo, sem geografia visível que não “a pequena brasa viva” do lume de um cigarro, é aí que a escrita nasce.
Um quarto de hotel de luxo — dizer isto é dizer quase nada. É preciso um ocupante, um nome, um imaginário. A paisagem onde a escrita acontece.
Pequena teoria da literatura para uso doméstico # 15
Pequena teoria da literatura para uso doméstico # 14
A teoria também ensina a irrelevância da própria teoria. Talvez não ensine senão isso, mas através dos seus próprios meandros. Nem poderia fazê-lo de outro modo. Quarto de hotel de luxo ou quarto de casa normal com ou sem família à volta — é irrelevante. Importa, mas é irrelevante depois de ter importado. Para quem sabe, não acabam nunca as razões para não escrever, e elas são todas verdadeiras, cheias de compaixão, protectoras, serenamente sábias. Não há um único argumento razoável que justifique que se escreva. Por necessidade ou para não matar alguém são desculpas sofríveis e com alguma falta de imaginação — a necessidade podia recair em muitas outras coisas, tal como o desvio dos instintos assassinos. São argumentos também irrelevantes, depois do momento em que são pessoalmente verdadeiros para quem os afirma. Não acabam nunca as razões para não escrever. Nunca. Nunca.