Isto dito, continuar

Algumas almas benévolas pensavam que o meu génio
fora de algum modo prejudicado pela loja.
Mas não era verdade.
A verdade era só esta:
eu não tinha inteligência que chegasse.

Edgar Lee Masters, Spoon River, trad. José Miguel Silva

Alberto Pimenta, de nada

De regresso à grande poesia política como os grandes poetas sempre a praticaram: rosnando ferozmente à atualidade com as patas bem assentes em tudo o que a cultura do passado rosnou às atualidades que historicamente nos foram calhando. Se há alguma coisa que a poesia política sabe sobejamente é isto: não há paraíso perdido; a grande criação humana existe desde sempre; a grande estupidez humana existe também desde sempre e é dotada de uma inteligência deveras letal. A Europa de hoje como IV Reich (o verso não tem esta ordem sintática, mas o seu sentido é este) é exemplo bastante disso. A ela pertence esta obra grande, como na teologia se dizia que onde o pecado abunda, a graça superabunda.

Um princípio político simples: tudo poder ser para todos, tudo mesmo

do dossier do Libération, em vésperas da discussão do casamento para todos

Agora por outro flanco

Quem nunca foi coisa que atire o primeiro coiso.

Quem?

Quem nunca foi coiso que atire a primeira coisa.

Mais fábula

É bem verdade que o coração humano bombeia mais fábula do que sangue.

Reler os clássicos: Alberto Pimenta com Raul Brandão

mas que adiantava
neste mundo
onde os criminosos se instalaram
com a sua conhecida lei
dos 3 magos do Ocidente

Elias
Melias
Melambes

[Alberto Pimenta, de nada, 2012]

Jim Hall & Pat Metheny

Dois tempos, duas sonoridades (e quanto a sonoridade de cada um, vindo de um génio próprio indiscutível, vem também do tempo que lhes calhou, seria uma outra conversa). Entre gigantes é usual o diálogo de surdos ou a amabilidade "agora brilho eu, logo a seguir brilhas tu". Aqui, porém, há transfiguração. Cada um parte do seu próprio território, até na escolha e repartição dos temas, mas vão-se encontrar naquilo que cada um abre para a frente de si mesmo. Não aquela homenagem de admiração mútua - olha só para mim a tocar à tua maneira -, mas uma dança que segue uma música em estado permanente de nascença. E como sempre nestes casos, a perfeição é absolutamente despojada e simples.

da arca de 2012

Diogo Vaz Pinto, Bastardo

A juventude foi um mito fundamental da arte e da política do século XX. A juventude como lirismo ia de par com a ideia de um mundo que a cada nova geração se oferecia como uma infância disponível para todos os sonhos de futuro.Tudo isso acabou como normalmente acabam todas as coisas: transformando-se em outras sem grande escândalo nem grande proeza. Não fora o usual problema dos restos e talvez nem se desse assim tanto pela mudança.
Em Diogo Vaz Pinto o problema dos restos é o de quem veio depois e recolhe notícia vagamente elegíaca dessa idade que foi costume existir em outros, precisamente a juventude: Se alguma vez fomos jovens, foi já / num tempo em que a paixão arrefecia. / Ficámos só para estudar o eco daqueles / que se deitavam com os deuses.
Vagamente elegíaca, não lutuosa, não melancólica. Em vez da dimensão da queixa, o movimento de ironia que assume ter-lhe calhado nada em lugar do sublime:  É bom que seja demasiado tarde e já / não voltes. Teremos sempre a banalidade / do fim.
É certo que estes versos não se isentam por completo de alguma ambiguidade. Mas poucos terão este firme desgosto do presente sem procurarem qualquer nostalgia compensatória no passado: Na posse da noite que me resta, / em plena posse dos meus poderes, tenho/ só a dizer que, obviamente, me demito.
E como sempre, um radical metafísico não deixa de ser um perigoso radical político. Que alguém se demita é uma ofensa monstruosa para quem nos quer convencer do inevitável.


Os cães

Gonçalo M. Tavares, Canções Mexicanas

O gato


Cães e gatos

Quando peguei no marcador do gato não sabia que os cães seriam tão importantes no livro. O mundo é demasiado pequeno, e o sentido nele ainda mais diminuto. Coincidências, oposições, alheamentos ostensivos - tudo equívocos, impossivel evitar os equívocos quando coexistimos como sardinha em lata. Um espaço saturado é um sentido saturado.

levanta as suas âncoras rosadas

Sobe nos estores a impressão
de uma retirada: a tarde levanta
as suas âncoras rosadas e parte, deixa
ao frio todos os vestígios.

Os versos de Diogo Vaz Pinto comportam ostensivamente versos de outros, identificados pelo itálico. Não nos é dito de quem sejam, e isso é o que menos aqui importa, porque são apenas versos que já existem antes, esse horizonte no qual assomamos com a voz a que (impropriamente) chamamos nossa. O peso da história transformado em material disponível, adaptável, pronto a incorporar outra história sem perder por completo a memória da sua própria origem. O dispositivo tem potencialidades óbvias, mas como sempre tudo depende da égide do momento.
No exemplo acima, sem que eu consiga identificar a proveniência dos versos incorporados, levantar âncoras rosadas é imediatamente grego, mesmo que o não seja, e impressão de retirada nos estores é esta urbanidade de altos prédios e múltiplas gavetas incomunicáveis, mesmo que o não seja. O que nos resta de alma vem do seu cruzamento, mesmo que na realidade (ui, a realidade) não haja cruzamento nenhum. Por isso estremecemos nestes versos, como vestígios deixados ao frio. Estamos vivos assim, neste cruzamento, aqui e agora.

Enquanto se espera

Rua transversal ao centro da cidade, 6 lojas fechadas definitivamente, 2 ainda abertas. Carro parado no topo norte, vista sobre a rua inteira. 11h da manhã.
Um cão. Pausa. Outro cão. Pausa. Um miúdo de mochila. Pausa longa. Duas miúdas com mochila. Pausa muito longa. Um homem apressado. Pausa muito longa.
Pano.

Driving Miss Laura # 33

Hoje, no Público:





Em momentos não menos certos

Nas horas mais difíceis, a alma descansa inteira na carne. Versos de Diogo Vaz Pinto, em Bastardos (Averno, 2011). As palavras certas no momento certo. O acaso inverso de muitas outras, tão erradas em momentos não menos certos.

O que lês?

Primeiro, leio o movimento do medo: a alma vem até à carne, o dentro vem à superfície mais exposta. Não há outro lugar para onde ir, não há mais dentro do dentro. Como um fumo que invade uma casa: ninguém se esconde no meio do fumo, no meio do fumo apenas se morre.
Depois leio a possibilidade mais escandalosa: expulsos pelo medo, descansamos inteiros na carne exposta. Verdadeiramente, nada mais nos resta senão isso. Mas não é fácil sabê-lo. Menos ainda estar , descansando inteiro.

Como lês?

Podes acentuar a angústia dentro do tempo, e a tua voz descerá nas horas mais difíceis.
Podes por momentos sentar-te no mundo e a tua voz será longa e pesada em descansa.
Podes olhar ao longe e a tua voz estará de pé em inteira.
Não podes acentuar alma nem carne, são a estrutura da tua suposta condição. Mas movem-se conforme acentuares os outros elementos. 

Nas horas

Nas horas mais difíceis, a alma descansa inteira na carne.

Hiato

Apenas para não continuar simplesmente, embora no fundo seja apenas continuar simplesmente: 13-06-2011 a 02-01-2013. Ah, esta mania do tempo, da ordem possível, ladear o buraco negro de matéria inteligível. E tudo isso ser apenas exterior, nós enquanto exterior, nós descansando de nós mesmos. Tão necessário, mas na condição de tão só por breves momentos.

Comprar pela epígrafe

"Depois, os dias passaram, um após o outro, sem que as questões fundamentais da vida tivessem tido solução."
Friederike Mayröcker, convocado por Ingo Schulze para epígrafe de Telemóvel. 13 histórias à moda antiga.

Arigato

Regressa um homem à pátria e dá com isto: o Camões a conversar com o Pina ali para os lados da Foz, com muitos gatos e ainda mais livros à mistura. Claro que a felicidade existe, a dúvida irrestrita também, e o mundo fica um pouco mais em forma de assim. Ou algo da mesma substância.

A vida com árvores # 12

À varanda
dos teus ramos
o mar sólido
do céu.

Mal de oficina 4

ESTRAGON: Não acontece nada, ninguém vem, ninguém vai, é horrível!
VLADIMIR (para Pozzo): Diga-lhe para ele pensar.

Breaking news

Outro espaço, outra exigência.

Encontro kunderiano

Kundera tem a arte da fórmula justa para delimitar cada uma das suas incursões críticas. O reverso disso é que dificilmente a leitura pode ser delimitada por uma fórmula, por mais justa que seja. O que faz de Kundera um grande romancista é o combate das fórmulas justas dentro de um mesmo romance, isso que não deixa a um leitor um ponto de vista mas um problema. Como crítico, Kundera não tem outra ambição que a de se explicar como leitor particular, sendo que aqui a particularidade é a de alguém que lê na perspectiva do romancista: a questão da técnica, a questão dos temas, até a questão de autores e técnicas e temas como possibilidade de se tornarem personagens romanescos. 
Duas notas ressaltam nestas incursões: a recusa do kitsch, a reivindicação da prosa do mundo. São questões centrais do Kundera romancista e são complementares: denunciar o efeito que apenas remete para si mesmo, desconstruir a mentira romântica, lidar com o mundo e a sua insustentável leveza.

Patti Smith, Polar 2011

"Patti Smith é um Rimbaud com amplificadores Marshall."

Assim, de repente,

passou uma semana. e mais um dia. passou? passou. como quem diz, mal de oficina 2. acumula-se o não feito. acumula-se o lido mas ainda não falado. acumula-se o ouvido e também ainda não falado. acumula-se. pensando bem, mal de oficina 2 já foi, welcome to mal de oficina 3.

Mal de oficina

Tanto quanto não conseguir avançar, irrita-me que a mente não me tenha avisado antes da inutilidade do dia. Precisava muuuuiiiito de não fazer nada ou fazer outra coisa qualquer.

Alela

Viagem rápida. Chuva intensa, sol aquecendo. Gosto desta rapariga. A voz, o balanço. Fica bem com esta paisagem variada, embora o seu country seja outro. Um pouco mais de risco na escrita melódica e seria um caso sério. Mas penso isto apenas num intervalo qualquer de gajo que vem aqui escrever de ouvido. Gosto desta rapariga. Se ela quiser mudar, que mude. Não sou eu que lho vou dizer. A voz, o balanço.

Um medo salutar

Um conseguimento, esta curta mas densa novela. A infância como lugar cruel que revela processos atávicos da nossa sempre lenta humanização é um tema difícil. E no cânone estão, por exemplo, O deus das moscas, de Golding, ou O Jardim de cimento, de McEwan. Aliás, é só por causa destes dois que As mãos pequenas não me derrubou por knockout. Um medo salutar desliza destas páginas, e esse medo somos apenas nós antes de termos aprendido a defender-nos da nossa inocência perversa.

Propósitos de vida

Os propósitos de vida não se dividem em úteis ou inúteis, justos ou injustos, para isso há decálogos que cheguem. Não matarás não é um propósito de vida, é uma regra. Escrever pode ser um propósito de vida. Amar aquela pessoa pode ser um propósito de vida. Porque não se sabe onde vai dar nem o que nos trará pelo caminho. Mas sabe-se que uma vez começado jamais poderemos continuar como se nunca tivesse começado.

Alto para dentro

Vamos dizer assim: Marianne Faithfull há muito que não se parece com ninguém a não ser consigo própria. Mas aqui mais. Absolutamente inatual, mas sem rasto de revivalismo. Quem sabe é que é alto para dentro. E ouve-se distintamente no mundo, se também nós soubermos um pouco.

Momento, razão três

O momento é o mesmo que a zona: a vida como ela sempre foi, mas impercetivelmente diferente e melhor. O gesto que procura coincide com o livre fluir da coisa procurada. A bondade do objeto em não desiludir a lei que o sujeito pensa ter encontrado é uma boutade científica, sem dúvida, mas é também uma verdade artística e existencial. Com esta diferença: na zona não há sujeito nem objeto, apenas movimento e fim do movimento. Tal como na vida vista a partir da experiência.

Na zona

Depois da doença, a depuração. Quando há vida a mais, a música fica em menos. Quando o acessório e o fútil desaparecem, a vida só interessa enquanto música. Mas mesmo isso é um caminho longo. Das seis noites no Village, Hersch escolheu apenas o set da última noite — só nessa se sentiu na zona.

Momento, razão dois

O paraíso, a verdadeira vida, é tudo ser exatamente igual ao que é agora mas impercetivelmente diferente e melhor [Agamben de cor, por certo distorcido, foi o que me ficou]. O paraíso pode vir com a experiência: viver agora contente com pequenas coisas com que vivi outrora inquieto. O paraíso que está no princípio só pode ser perdido. O paraíso que acontece com o vir da nossa história só pode ser impercetível. Valor da atenção. Da atenção conduzida por nenhum desejo de grandeza (a queda é também uma forma de grandeza).

Entranhar sem estranhar


E sem pedir licença. Um tom perfeito para estes tempos. Que não são caóticos, mas de uma ordem terrível e que diz sem subterfúgios ao que vem.

Momento, razão um

Gosto de uma poesia que afirma a partir de uma experiência pessoal e que não procura mais do que essa parcialidade com que a vida em nós se cumpre. Isso que nos faz reconhecer onde não nos sabíamos, ou tão só ponderar brevemente — será assim como ele diz que é com ele? como é que é ao certo comigo? —, ou afastar sem remorso uma experiência que pouco ou nada nos tem a dizer por tão inconciliável com a nossa. Cada um desses gestos de resposta é também uma afirmação a partir de uma experiência pessoal. Sim, eu sei, depois, as coisas complicam-se e começa a leitura. Não anula a experiência pessoal, apenas não tem a licença poética de puramente afirmar.

Umberto Saba: Momento

 MOMENTO

As aves à janela, as persianas
entreabertas: um ar de infância e de Verão
que me consola. Tenho mesmo os anos
que sei ter? Ou apenas dez? Para que
me serviu afinal a experiência? Para viver
contente com pequenas coisas com que vivi
outrora inquieto.

Estar no tempo

Bolaño escreveu uma vez que nas Américas toda a moderna ficção provém de duas origens: As aventuras de Huckleberry Finn e Moby Dick. Os detectives selvagens, com as suas personagens boémias, é o romance de amizade e aventura de Bolaño. 2666 persegue a baleia branca. Para Bolaño, o romance de Melville detém a chave da escrita acerca “da terra do mal”; e tal como a saga de Melville, 2666 pode ser estonteante ou soporífero, dependendo do gosto da pessoa pelo “lume brando”.
[da introdução de Marcela Valdes a Roberto Bolaño: últimas entrevistas, Quetzal, p. 18]

Mais do que a genealogia da moderna ficção das Américas, o que aqui é dito com clareza e conhecimento de causa é a própria genealogia mítica de Bolaño. Mítica porque pouco importa que Bolaño tenha de facto aprendido em Huckleberry Finn e em Moby Dick, ou nos seus descendentes das Américas, as duas vertentes do seu estilo compósito. Provavelmente não aprendeu, calhou-lhe por feitio e escolha sobre esse feitio, com uma particular aceitação dele. Mas as escolhas em literatura só se tornam realmente definitivas quando encontram/constroem a genealogia que as legitima. Bolaño escolhe uma genealogia próxima, sem qualquer ansiedade clássica, sem querer escapar ao transitório e ao circunstancial do presente. Essa tarefa vã não lhe interessa, apenas lhe interessa o desprendimento da deriva boémia e o cálculo rigoroso da obsessão — modos de estar no tempo, neste ou em qualquer outro.