Call girl vale enquanto sintoma. Mas não é tanto o retrato dessa corrupção que a todos vai envolvendo e que se refina na exacta medida em que lentamente o país se vai tornando, quer queira que não, mais profissional (aliás, não será por acaso que o filme que o diz tem sólidos valores de produção e larga audiência mainstream — as massas gostam de se ver ao espelho, há nisso o resto de consciência possível e aquela má-consciência da justiça por maledicência).
O sintoma está no cartaz. A dominadora que olha de soslaio não chega a ser fotograma do filme, e cena de dominação é apenas a cena inicial, rápido teatro sem consequências de maior porque de facto não estabelece o tipo de força que caracteriza a personagem da prostituta cara. Os homens, aqui, não são masoquistas, apenas aquilo que predominantemente têm sido enquanto género: os que compram as fêmeas que o seu dinheiro alcança.
De onde vem então este cartaz? É um ponto de chegada. Com os atrasos do costume, o país social chegou à democracia enquanto sistema burguês acabado: o tédio de haver ordem sem moral. Claro que, à superfície, o discurso da moral vende ainda: Cavaco “cita” Salazar, a Igreja Católica cita-se a si mesma, os comunistas citam as suas memórias. Mas os anacronismos são só isso mesmo — anacronismos —, e quando a salvação da alma deixa de importar porque finalmente se percebeu que nem uma nem outra de facto existiam, a democracia começa por ser assumidamente o jogo do gato e do rato entre o contrato da ordem e a esperteza de a tornear. Sem dúvida, é um jogo de muitos milhões. Mas quantos mais milhões estiverem em jogo mais o dinheiro é simples mediação de uma cena mais primitiva: o gozo narcísico da transgressão. A dominadora do cartaz é a encenação consumista e libidinal (e por esta ordem) de uma autoridade sem caução transcendente ou imperativo categórico transcendental. Neste teatro de marionetes, o cliente que pode paga o seu putativo prazer, criando o combate corpo a corpo com a ordem, essa mesma que a formalidade do sistema democrático impede que possa encarnar numa pessoa (é isso a divisão dos poderes). O cliente que não pode revê-se ambiguamente no filme. Em outras épocas, disse-se que a pornografia era o erotismo dos pobres. Hoje, e para Portugal, bem se pode dizer que Soraia Chaves, enquanto mulher fatal, é toda a transgressão a que os pobres podem aspirar.
Do sintoma
Luís Mourão
9.1.08 |
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