O real segunda vez. A cena da fonte, por exemplo. O que a pequena rapariga interpreta é uma coisa. O que lá se passou, de facto, outra bem diferente. Mas começamos a ver pelo olhar da pequena rapariga, que é o de quem assiste ao longe e interpreta com os poucos dados que tem e os desejos desencontrados que experimenta. O que está errado não é a sua interpretação, mas a precipitação que a move. A sua interpretação é consistente, mas a experiência ensina que a consistência pode ser apenas acaso, coincidência, coisa fortuita. É preciso contra-interrogar, contra-interpretar. Mas ela é apenas uma pequena rapariga. Nós, quase como deuses, temos direitos ao real segunda vez — e a cena da fonte repete-se diante de nós, desdobrando outros sentidos. E a questão não é sequer que eles sejam mais “realistas” (ainda que indubitavelmente o sejam), mas que sejam mais complexos e profundos, mais próximos daquilo que de facto está a acontecer entre aquele homem e aquela mulher na fonte — e que só saberão mais tarde, mas também aí induzidos (que ironia...) por um bilhete que não deveria ser aquele bilhete mas outro.
A questão da moral, da distinção entre bem e mal, é muitas vezes a simples questão de poder aceder ao real segunda vez, pela porta da contra-interpretação, ou de uma experiência amargamente vivida. A tragédia é aquele tipo de história em que o destino nega uma segunda oportunidade. É por isso que a tragédia é o género realista por excelência.
Multiplex # 37 (três)
Luís Mourão
24.1.08 |
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