Como dizia mais ou menos o outro: estou cansado, cansadíssimo, íssimo, íssimo... Vale que esta música começa já do outro lado disso.
A opinião do morto
Os livros que não escrevi ¬— eis um título que é o resumo mais interessante de qualquer vida. Mesmo a de George Steiner, com todos os seus livros efectivamente escritos. O dístico da capa avisava: “O novo livro de Georges Steiner (publicado este ano nos EUA)”. Rápida olhadela à contra-capa — prometia; mas estava na badana da capa, e logo em segundo lugar, a opinião que me decidiu sem mais: “Magnífico”, diz Edward Said no The Nation. Convenhamos que para vir da tumba afirmá-lo há que haver razões ponderosas.
Brynt Kobolt
Duas estadias em Copenhaga (Agosto de 2006 e Agosto de 2007), duas séries de poemas, mas nada mais alheio ao espírito do lugar ou ao olhar da diferença. A poesia de Manuel de Freitas declina o ocidental mundo que, de tanto ser nosso, indiferentemente nos morre. As pequenas coisas não-poéticas lá estão, a lucidez da morte também ¬— e a música, essa não tão pequena coisa assim (e o amor, ah, o amor, havemos de falar disso, o tão discreto amor mas tão à beira de outra poética, pois, o amor, e a idade, enfim, havemos de falar disso, haverá outro livro, havemos de falar nisso...).
Das paisagens # 9
Gostaria, às vezes, de sentir um pouco mais de comoção
por isto a que chamamos mundo. Mas as generalizações,
ainda que bem intencionadas, nunca foram o meu forte.
Limito-me a gravar na epiderme o som febril das ambulâncias,
o grito feliz ou exasperado que pela última vez se cruza
com estes versos e com as ruas onde fingi estar vivo.
Desta semana, no mundo, se poderia simplesmente dizer
que nasceram ou morreram alguns cadáveres novos.
Mas até isso, logo que amanhece, nos fazem esquecer os lagos.
Manuel de Freitas, Brynt Kobolt, Averno, 2008, p. 15
Para dias fortes
Podia ser uma coisa abstrusa. Música composta por reputados pianistas da “clássica” (Friedrich Guilda, Alexis Weissenberg), ou por outros de menor nomeada, tendo por leitmotif a sua aproximação ao jazz (o parente longínquo disto, senão o seu responsável, é naturalmente o Gershwin de Rhapsody in blue). Podia ser abstruso, mas não é. Em muitos momentos, é arrebatador. Para dias fortes, claro.
A mais longa corrida
Mal ele se mexeu no bloco de partida eu avisei logo: não vás! Mas ele foi. A mais longa corrida para o desastre que alguma vez vi um guarda-redes fazer. Uma tragédia que entra directamente para o panteão do futebol.
(Então e o Ricardo?, perguntam vocês. Bom, a ver se nos entendemos. O Ricardo correu um terço da distância de Rustu, o que proporcionalmente triplica a asneira. E quanto a asneira, já deve ser para aí a tricentésima da sua carreira. Ora, como qualquer pessoa instruída sabe, a história, quando se repete, é sob a forma de farsa. Pelo que só pude rir. Amareladamente. Sim, porque eu sou uma pessoa instruída, já estava prevenido com o meu Cesário etc e tal. Ah, só mais uma coisa: ninguém me tira da cabeça que a Alemanha teve a ajuda do fantasma da Itália eliminada. Qual cinismo alemão, qual máquina alemã, qual eficácia alemã, qual nada: aquilo foi Itália pura e dura. Não foi bonito de ver, não convenceu ninguém, quase sempre numa irritante retranca — mas o resultado é que conta. Venha-se o Espanha-Rússia para ver por quem vou torcer na final.)
Das paisagens # 8
Das paisagens # 7
Na esquina do free com a melodia
Depois do sucesso de Raining on the moon, o projecto mais “acessível” do muito avançado William Parker, ei-lo que reincide com o seu quarteto e a cantora Leena Conquest agora em todas as faixas. Mainstream de alto nível, sem dúvida, mas a ancoragem é tão forte que de vez em quando, com toda a naturalidade, o quarteto navega outras águas. Mais uma vez fica dada a lição (se preciso fosse): os do free, quando querem, são tão bons quanto os melhores clássicos.
Segundo o desejo
Das paisagens # 6
Das paisagens # 5
Das paisagens # 4
O mundo quando não estamos a olhar: ela dormia, ele morreu. No sonho dela o mundo rodava na direcção da sombra, mantendo o excesso de calor distante. Na morte dele houve apenas um vago tremor, uma fina aragem que o envolveu.
O mundo na manhã seguinte: ela acordou, ele era já matéria de poema.
O mundo depois da manhã seguinte, quando de novo não estamos a olhar: o conhecimento fazendo-se sem sujeito que conheça.
Das paisagens # 3
Intermezzo
Das paisagens # 2
Das paisagens # 1
(dois) Erros meus e sem queixas da fortuna
Foi sempre visível que Portugal podia ter derrotado esta Alemanha, mesmo com Scolari à frente, a complicar um pouco as posições no ataque. Mas no jogo dos pormenores, dois erros de palmatória é coisa demasiada. E por favor, aquele empurrãozinho do Ballack foi só para evitar que o Paulo Ferreira o viesse atropelar de marcha à ré...
Agora torço por bons jogos, que até os tem havido, e pela Croácia, Holanda e Espanha — um pouco mais ou menos por esta ordem, mas em modo mais desprendido.
Pronto, ficamos assim.
A impossível impassibilidade
Corrigir: exames, trabalhos, um texto meu. A linha da vontade e da razão. Daqui a pouco, frente ao televisor, o mistério renovado do espectador de futebol que também sou: a impossível impassibilidade quando joga Portugal (e o Futebol Clube do Porto).
Os infortúnios da virtude # 5
Ainda (e sempre) aquele verso de Ruy Belo: mas ó poeta administra sabiamente a tristeza. Que tu leste com o implícito que julgavas pertencer-lhe: a tristeza enquanto toda a existência que há. Não importa agora se estavas equivocado ou não, até porque nunca se está e sempre se está. Começaste a administrar uma existência, agora dizem-te que isso é uma carreira.
Música, idades
Tal como na existência normal das pessoas normais — assim os músicos no tempo de existirem dentro da sua música. Alguns eu vejo envelhecer e morrer, vêm de um mundo a que cheguei tarde. Outros irão comigo até ao fim, companheiros de uma geração sempre improvável. Outros estão apenas a começar, anunciando a breve eternidade que me falta.
Esbjorn Svensson
O rapaz tinha 44 anos. Se tivéssemos andado juntos no liceu, seria da turma dos mais novos e podia ser que uma vez ou outra o deixasse jogar futebol connosco. Morreu a fazer mergulho de grande profundidade. Não foi uma má morte, mas é tão estupidamente cedo. Em Setembro sairá o álbum que o trio acabou de gravar por estes dias. Vai doer. Tão estupidamente cedo, meu amigo.
A vida com árvores # 3
Choveu todo o dia. Na árvore despida houve já a memória dos invernos que ainda não pôde ter.
A vida com árvores # 2
Muito calor. A laranjeira perdeu as três laranjas e quase todas as folhas. Não lhe faltando a água, recuperará — diz o jardineiro. Tem quase setenta anos, deve saber. Pelo sim pelo não, juntamente com a água acrescento-lhe pensamento mágico: imagino-a “com uma cor de folha muito junta” [Cesariny].
Carpe diem
Vemos agora que o abismo da história é suficientemente grande para todos. [Paul Valéry]
A mesma gente simpática a mesma falta de valor. [George B. Shaw]
Epígrafes de dois capítulos de Peter Sloterdijk, Se a Europa acordar. Reflexões sobre o programa duma potência mundial no termo da sua ausência política, Relógio D’Água, 2008
Miss Laura, as mulheres, o lixo e o cancro da mama
A propósito de um anúncio institucional. Hoje, no Público; para ler na íntegra e ver o anúncio, aqui.
Os infortúnios da virtude # 4
És humano e ponderado, e dizem eles que te respeitam por isso. Profundo e sensato, e acrescentam que também por isso te respeitam. Pareces até demasiado sábio para querer o poder, e assim podem mesmo admirar-te. Mas não têm a certeza do teu desapego e temem-te — e isso é o que verdadeiramente te protege deles.
Post para iniciados: assim uma espécie de deleuzianismo assaz estéril
Escreve-se por desvios. Por devires imperceptíveis. Tudo bem, quando a coisa é performativa naquele (pobre) plano de consistência em que se resolve o texto que havia para resolver. Muito pior quando o desvio nos desvia para outros textos, sem darmos conta já estamos a trabalhar noutra janela, noutro document, aquele que não precisa de ser resolvido já, aquele que até não precisará de ser resolvido nunca. Na era rizomática, o que entrava não é ler ainda aquela derradeira coisa antes de começar a trabalhar, o que entrava é esta espécie de janela pop-up com que uma coisa abre para outra coisa que abre para outra coisa que... [tudo desculpas, claro, mas...]
Muita dessa alguma coisa
A solidão da escrita é um mito. Na melhor das hipóteses — um caso raro; no fundo, uma bênção. Mas de facto não acredito nisso. Há sempre muita gente sentada dentro do nosso estarmos sentados a escrever, vigiando, criticando em silêncio, olhando com altivo desprezo, um ou outro condescendendo e sorrindo com melancolia. A única coisa solitária no acto de escrita é ser um só que escreve contra muitos que de várias maneiras vão dizendo que não. O único mistério no acto de escrita é esse um só acabar por escrever alguma coisa. Mas o pior de tudo no acto de escrita é muita dessa alguma coisa não ter sido evitada.
Escrever
Não sei se há muito a compreender nisto, mas nem sequer vou teorizar. Sei só que muitas vezes é assim: começo de mil maneiras diferentes, e pelas diferentes partes por onde se pode começar. Nada resulta. Depois há uma frase, sempre lá esteve mas custou a aparecer, e o caminho vai-se construindo. E no fim, quantas vezes essa frase acaba por nem sequer ficar.
Companhia nocturna # 22
Gosto desta capa. E projecto-a em Bach, o pouco que sei da sua vida, muito caseira, cheia de filhos, mulheres amadas, as dores que a vida sempre traz, as alegrias que também há. Gosto do olhar erguido dela e do seu decote aberto, como depois do amor quotidiano, de amamentar, ou de simplesmente estar em intimidade desprendida e doméstica. Gosto do olhar dele, interior, tímido, que vê a vida pela força dela. E todo um mundo subtil que parece envolvê-los e é maior que eles sem os esmagar. Como a música de Bach, precisamente.
Círculo
O desperdício da normalidade existente salva-nos da demência e da angústia dos investimentos megalómanos. Salva-nos com melancolia e tristeza, mas salva-nos. Até a gente perguntar para quê, e tudo recomeçar outra vez.
Uma questão de percentagem
Uma vida desperdiçada decide-se nuns escassos pontos percentuais acima do desperdício que acomete toda a normalidade existente.
A vida com árvores
O jardineiro ligou ontem: “o enxerto pegou, tá lindo, tem três laranjas, agora é a altura para plantar”. O lugar foi decidido desde o início. Veio hoje, já está no sítio. Tem três laranjas. Grandes. Vivas. Dá-me pelo peito. Há-de crescer. Hei-de vê-la da janela sem ter de me levantar daqui. Como acontecia na outra casa. Um pouco daquele jardim neste jardim. A vida com árvores, sim.
PS: por falar em árvores, e cor viva das laranjas — já há novidades felinas? [claro que a blogosfera não é muito mais que isto, mas a vida, por vezes, nem isto chega a ser]
Cidade Sitiada
Tanques nos jardins, helicópteros no ar, fragatas na costa, palanque para o desfile militar, em cada esquina um polícia — é assim em Viana do Castelo, hoje, e sê-lo-á em crescendo, até ao final do próximo dia 10. Esse é o dia em que o país subjacente ao território todo, real e imaginário, vai ao armário buscar fatiotas tão demodèe quanto a letra do hino e se instala numa cidade para afirmar que existe. Podia dar-lhe para pior, percebe-se a simbologia da coisa e tudo isso, mas por mim — passo.
Preencher. Ouvir
Grande Prémio de Poesia APE
Merecido, o Grande Prémio APE de Poesia para Ana Luísa Amaral por Entre dois rios e outras noites. Um livro que dividiu. António Guerreiro, no Expresso, e Pedro Mexia, no Público, foram muito reticentes ou até mais do que isso. Rosa Maria Martelo fez uma leitura notável e entusiasta, Osvaldo Silvestre sei que o apresentou com elogio, eu disse aqui o quanto gostei (e próximo desse post há outros com citações e re-escritas). O júri, constituído por Ana Paula Arnaut, Nuno Júdice e José Cândido Martins, decidiu por unanimidade. É momento para estar feliz pelo reconhecimento de um livro. E embora isso já não interesse nada à literatura nem à leitura dela, é também momento para estar feliz pela Ana Luísa.
Vergílio
Para já, apenas a comoção de ter recebido o livro através da cumplicidade da Fernanda Irene, que longamente o trabalhou a partir do espólio. Como se de repente o Vergílio se voltasse a sentar connosco em juventude e nos perguntássemos uns aos outros como era costume fazermos: então, em que anda agora a trabalhar? E como era bondosa e optimista essa pergunta, oh sim, como era um pouco diferente o mundo visto pela bondade e optimismo de uma tal pergunta...
Noite límpida # 2
Percebo agora que à mesma hora de Bill Callahan (bom, mais coisa menos coisa), uns kilómetros mais para sul, havia outro grande senhor em actuação. O que eu não dava para ver como é que um autor se desenrasca de uma coisa assim...
Noite límpida
Ontem houve Bill Callahan no Theatro Circo, e num milagre de agenda consegui desenfiar-me até lá. Hipnótico, sempre. Demolidor quando acelerava, o que aconteceu mais vezes do que se estaria à espera. Despretensioso, porque o importante passa sempre pelo que acontece dentro da música. E foi claro para os happy few que encheram meia-sala que dentro daquela música, apesar dos longos anos Smog, há ainda muito Bill Callahan para acontecer.
Uma segunda-feira qualquer vista a partir de uma qualquer terça-feira
Tanto e tão pouco.
Uma segunda-feira qualquer # 1
Chegar # 3
Há nome de autor, não há nome de recenseador. Devias lembrar-te disso e despachar-te.
Chegar # 1
Por que não te rendes a um mundo assim tão fácil?
Carlos Poças Falcão, Coração alcantilado, Guimarães: Opera Omnia, p. 30
Vir
Primeiras montanhas
últimas ondas
— as dunas
a partir de Carlos Poças Falcão, Coração alcantilado, Guimarães: Opera Omnia, p. 53
Ir
Primeiras ondas
últimas montanhas
— as dunas
Carlos Poças Falcão, Coração alcantilado, Guimarães: Opera Omnia, p. 53