Não, não vou dizer que os tempos não estão fáceis para a poesia. Porque nunca estiveram. Ou numa variante ainda mais dura, foi quando a poesia pareceu mais aceitável que a tarefa de ser poeta era verdadeiramente secreta, difícil, ininteligível. Mas deixemos isso.
O que é certo é que a poesia vive hoje a sua condição estritamente terrena. Há as excepções, bem entendido, como há também um sem número de poetas anacrónicos e altamente literatos. Mas deixemos isso também.
O problema é que alguma coisa resiste. E este problema é logo seguido de um outro, que é o problema de que alguma coisa acontece que resiste a desaparecer. O primeiro problema é da ordem do real: há coisas aí, anteriores a nós, independentes de nós, estão aí. O segundo problema é da ordem da existência: há coisas que nos acontecem, e depois de nos terem acontecido não nos desacontecem. Que fazer com estes dois problemas?
Tratá-los com um certo tom menor parece ser de regra. Entre a auto-ironia, que tem as suas vantagens, e a denegação, que tem os seus custos humanos. Ana Luísa Amaral está desde sempre à vontade na auto-ironia, é até estratégia central da desconstrução que opera de certos lugares da poesia e do feminino poético, mas não cede à denegação, antes sublinha certas impossibilidades de um menos viver muito contemporâneo: “O tempo agora é este: / o de fazer tão rentes as canções” (p. 50). E sem denegação, há certas coisas — os tais dois problemas, por exemplo — que reaparecem na sua gravidade, mesmo que os contextos acentuem a distância que sempre se deve ter face aos modos retóricos de dizer tais coisas graves.
Uma forma de distância consiste em singularizar radicalmente a experiência da vida e do mundo, evitando a generalização ou a sabedoria do sistema, mas sem deixar de sub-entender a gravidade de “um pequeno holocausto / que é só meu” (p. 86). Outra, mais decisiva, até porque constitui algo parecido com uma poética, é conduzir toda a dicção para uma espécie de entre-dois: “É num tom desses que eu me sei mover: / no intermédio cruzamento / dos portões do real, / nas despensas do mundo” (p. 101). Com uma ressalva sintáctica que não é de somenos: a quantidade imensa de poemas que aqui terminam com travessão — forma suspensiva que infinitiza o fim, por um lado, mas que por outro o entrega a agenciamentos ainda por formular.
Relidos a esta luz alguns dos principais poemas deste livro — poemas como “Alexandrínicos dilemas”, “Claves e distâncias (quatro poemas)”, “Copérnico, Chopin, Boeing 747”, “Entre dois rios e muitas noites”, “Ovelhas e bibliotecas: sofrimentos”, “Que escada de Jacob?” —, a indecisa matéria (auto?)biográfica que os ergue ganha contornos de dicção exemplar sem exemplum a transmitir: apenas o que aí está e o que já não nos pode mais desacontecer. Dito de outro modo: “Horror é conhecer: / tudo o resto se cura / com a vida” (p. 84). Para gravidade basta. E para uma vida, também.
A indecisa matéria (auto?)biográfica
Luís Mourão
15.4.08 |
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