Lenz Buchmann: cirurgião, político, morto

Nas séries de Gonçalo M. Tavares, a tetralogia O Reino, dos livros negros, é a casa do romance. Aprender a rezar na era da técnica, o romance que encerra a série e chega às livrarias na próxima semana, é um exemplo superior de romance reflexivo, servido por uma escrita depurada, quase cruel na forma como torna legíveis certos dispositivos da vontade de domínio que piedosamente escondemos de nós próprios. Lenz Buchmann é o nosso tempo visto à contra-luz de uma época não tão desaparecida quanto isso.
Um grande romance de um definitivamente grande escritor.
Um excerto em pré-publicação:

(…)
A sua equipa médica nas operações mais complicadas nunca ultrapassara as sete pessoas, e agora ele via-se envolvido em reuniões em que as suas declarações eram escutadas por dezenas de colegas de Partido. Estes encontros políticos revelavam uma espécie de energia magnética que funcionava ou não dentro de um grupo, ligando os seus elementos constituintes de uma ponta à outra.
Este sentimento de comunidade era uma das invenções deste novo tempo em que Lenz entrara. Não tinham sido discutidos pressupostos, ou seja, homens vindos de sangues completamente distintos, de famílias que nunca se haviam cruzado na cama ou nos grandes pactos de rendição ou de declaração de vitória, estavam agora, lado a lado, parecendo, afinal, ter combatido durante séculos no mesmo exército.
Esta ilusão — que o era — não cegava Lenz. Mesmo nas reuniões em que a paisagem parecia ganhar uma fisionomia única e em que a necessidade de ligação entre os homens se aproxima do limite a partir do qual só o amor físico pode saciar, Lenz mantinha-se em dois pontos: estava ali, em baixo, a afinar as armas em coro com os outros e, simultaneamente, em cima, num posto de vigia, num posto secreto, escondido, e, por que não dizê-lo, num posto que revelava uma traição, pois nele tinha acesso visual, não ao campo do inimigo mas ao campo dos próprios elementos aliados.

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