Globalmente, bem melhor do que o disco de Jacinta. Arrisca menos, mas a sua maior fidelidade faz-se por desvios bem doseados e direccionados, que deixam uma marca pessoal indiscutível. Entre o fado e o jazz, um caminho só seu para um Zeca Afonso cada vez mais de nós todos.
Zeca Afonso # 1
Nem tudo é conseguido. Mas por vezes a voz de Jacinta parece andar por outros timbres, e fica-se à espera do que por aí poderá vir. E quando é conseguido, se admiramos o cover, rendemo-nos por inteiro à arte de composição de Zeca Afonso. Estamos a assistir em directo à consagração de um autor tal como ela deve ser feita —prolongando a sua obra. Às vezes parece que não, mas ainda vai havendo restos de justiça neste mundo.
Sabedoria das nações # 4
E tu não queres aproveitar este teu estado de descanso forçado para fazeres o balanço de 2007?
Ui, tu nem fales em balanços, ao chá que tenho bebido é desastre pela certa.
Também não é preciso ser tão escatológico, homem de deus!
Ui, tu nem fales em deus, que...
Ok, ok, vê lá então se dormes. E lembra-me para amanhã não passar por cá. Sujeitinho irritante, irra!
Sabedoria das nações # 3
Com tanta coisa no mundo e tu a desfazeres-te em ranho e baba... Que despautério, menino! Mas tu também pouco ligas ao mundo, não é? Não és jornal diário? E que tem isso que ver com o caso? Mas o melhor é deixar-te em paz, ou ainda me pegas essa coisa... Que desagradável. E que falta de chá, vir com essas coisas para a blogosfera. Francamente!..
Sabedoria das nações
Mas tu não era para estares noutro lado? # 4
Mas tu não era para estares noutro lado? # 2
Mas tu não era para estares noutro lado? # 1
Oscar Peterson (1925-2007)
Hoje é sábado, já não está sol, e a gente sempre vai pensando um pouco
Hoje é sábado, está sol, e não quero saber de desgraças
post scriptum # 10
Já nos despedimos mil vezes. E mil vezes mais nos iremos despedir sem o sabermos. As histórias passadas continuam sem nós. É a única maneira de nos podermos ocupar da vida que resta.
post scriptum # 9
Não falei na morte. Não acho que se morra aos bocadinhos, nem de uma vez só. Acho que não se sabe. Nem a experiência ensina. Mas estou bastante seguro de não ter falado na morte.
post scriptum # 8
As saídas de emergência dão para o mesmo beco da saída normal. Daí vai-se para toda a parte.
post scriptum # 6
Podes fugir mas não te podes esconder? Não é verdade. Como a carta roubada, estás à vista de todos, por isso invisível. E se alguém te reconhecer, é porque a carta roubada afinal não és tu — como poderia o roubo prescindir do segredo?
post scriptum # 5
Já nos despedimos mil vezes. Percebo agora que algumas delas foram definitivas.
post scriptum # 4
Não falei na morte. Tenho a certeza. Teria sido desnecessário.
post scriptum # 3
Não há saídas de emergência. É absolutamente seguro que todos sairão.
post scriptum # 1
Podes fugir mas não te podes esconder? E que importa? Como se alguém andasse à tua procura.
A mim próprio, por exemplo, só mesmo por obrigação
"A muito poucas pessoas que não eu deve — assim o espero — importar a minha vida particular, coisa que não gostaria de ter mas que afinal tenho, como quem veste um pijama para a travessia da noite — oh! estas minhas incorrigíveis alusões culturais — ou lava os dentes, pelo menos, ao começar o dia."
Ruy Belo, no prefácio do post abaixo
Political statement [e não só, e não só...]
Em 16 de Fevereiro de 1972, Ruy Belo estava em Madrid. É lá que escreve a “Explicação que o autor houve por indispensável antepor a esta segunda edição [de Aquele grande rio Eufrates]”. A qual explicação se termina por este comentário que, visando embora um facto miúdo e concreto, tem óbvias ressonâncias de political statement: “Madrid, uma das cidades do mundo mais distantes de Lisboa”. Ontem como hoje, ontem como hoje...
Ou outono com sol # 3
De quase tudo poderia dizer que são “coisas que vão e fingem regressar / mas já não nos pertencem”. Não há nisso mais que a angústia normal da vida que passa e aquela melancolia que pode ser a grande barragem contra o ódio à existência. E essa liberdade inteira, inútil mas pacífica, de não dar ao futuro os desejos que não cabem no presente.
Ou outono com sol # 2
Quando o saber de experiência feito não se transforma em sistema e guarda intactas as suas contradições. Quando o muito que falhou não é um saco de ódios mas a difícil aprendizagem da compaixão. Quando a poesia já pouco interessa mas não temos ainda melhor maneira de falar. Quando a luz da madrugada sabe que a mais longa noite ainda está por vir.
Ou outono com sol
AGOSTO
Em tardes como esta o mar é uma
bênção,
o gesto azul de um deus,
a memória de um tempo sem tempo.
Em tardes como esta cada instante
sabe a eternidade
e o horizonte, este horizonte
é um sinal do que ainda pode ser
isso a que chamam beleza:
uma onda que nasce enquanto outra
morre desfeita em espuma
levando atrás de si o nosso medo,
a nossa esperança demasiado humana,
o pacto que selámos e quebrámos
com os sonhos mais antigos, os que um dia
foram apenas nossos,
mas são agora o mar, sem nome nem
destino,
coisas que vão e fingem regressar
mas já não nos pertencem.
Fernando Pinto do Amaral, A luz da madrugada, p. 100
Seria bem mais perverso
Agora que o génio não é tão evidente porque já conhecido, talvez seja tempo de dizer que o que há de retro nesta música não conta a história de uma inocência recuperada ou a ironia da citação distorcida. Dei comigo a pensar que o Lynch de Blue Velvet, hoje, bem podia usar Devendra em vez de Badalamenti.
Rumores # 7
Se não queres ouvir mais, porque é que queres ouvir mais? Põe-te a milhas. Ostensivamente. É a única maneira.
Rumores # 6
Como é que eu sei que não é verdade? Um pequeno pormenor lateral, uma questão de detalhe, uma coisa perdida no meio da história: ele disse que tu levavas uma camisola branca. Tu não tens nenhuma camisola branca. A não ser... a não ser que fosse o teu disfarce...
Rumores # 5
O rumor é como aqueles mails que prometem reiteradamente o aumento do pénis: se fossem verdade, e se os tivesse seguido a todos, tinha um coiso maior que a tromba de um elefante.
Rumores # 4
X conta-me uma história sobre Z sem saber que eu sou Z. A história é falsa. Eu vou fazendo perguntas de modo a pô-lo na pista da falsidade, mas X não desarma, mostra-se até um pouco ofendido com a minha resistência. Cada resposta cria novas falsidades. Cansado do jogo, revelo a minha identidade. X riposta: Ah, agora percebo porque estás a negar tudo!
Rumores # 3
No primeiro minuto, ouves porque seria falta de educação cortares a conversa. No segundo minuto, o incómodo equilibra-se com a perversidade de saberes. No terceiro minuto, já estás a pensar nos pormenores que acrescentarás para tornar aquela história ainda mais interessante.
Rumores # 2
O rumor com interesse de conhecimento. X conta a Y um rumor sobre Z no intuito de perceber, pela reacção de Y, quais são as verdadeiras relações entre Y e Z. Percebe-se que é assim se X está mais atento a Y do que empolgado pelo veneno do próprio rumor.
Rumores # 1
Não percebo. Será que quero saber, para mo virem assim contar?
Fazer a experiência
Ocorrência # 7
- Tenho de te perguntar outra vez: como pudeste? Como foi possível? Como é que...?
- Pára!
- Deve ser mesmo grave, para repetires o ponto de exclamação...
- Pára.
- Ou mesmo o ponto final, que também é bastante definitivo.
- Pára
- Assim já é mais o teu estilo
- pára
- melhor ainda suficientemente indeciso a própria paragem constitui uma continuação
- ...
- eu sabia
-..
- looser
-.
- eu sabia
-
- looser
Ocorrência # 6
- Nome, nacionalidade, idade, profissão, estado civil, peso e altura.
- E para que queres saber tudo isso?
- Por causa destes versos: “Hoje atravessas / isso a que todos chamam / realidade”*.
- E atravessaste? Hoje?
- Não é atravessaste, é atravessas. O continuado no tempo.
- Não fujas: atravessaste, hoje?
- Sim.
- E como pudeste? Como foi possível? Como é que...?
- Pára!
- Deve ser grave, para pores ponto de exclamação...
- Pára.
* Fernando Pinto do Amaral, A luz da madrugada, pag. 90
Ocorrência # 5
- Estás sempre a dizer o mesmo, já reparaste?
- Já.
- Imensamente previsível e monótono, já reparaste?
- Já.
- A armar ao suspense ético sem jeito nenhum, já reparaste?
- Já.
- Isso é sinal de um grande vazio, sabias?
- Sim.
- E as pessoas vão desertar, sabias?
- Sim.
- E ela vai desertar também, sabias?
- Sim.
- E então?
- E então, nada.
Ocorrência # 4
A mulher arrastava a perna pelo corredor, toda vestida de negro. Magra, alguma coisa de epiléptico. De repente parou, deu meia volta e começou a andar em sentido contrário. Falava ao telemóvel. Quando nos cruzamos estava a gritar: "Mas como foste capaz? Como pudeste fazer isso?" Afastei-me rapidamente para não ser puxado para aquela história. As frases podem ser iguais, mas isso não quer dizer que as histórias o tenham de ser.
Aquele órgão só de professores doutores por extenso # 8 [justificação de faltas]
Ocorrência # 3
- Ouve isto: “rastilhos que ateaste / em nome da euforia descartável / que foi sempre o desejo”.
- Poesia?
- Sim. Fernando Pinto do Amaral, A luz da madrugada. Tu achas que o desejo é uma euforia descartável?
- Acho que há uma idade em que descobrimos que o segredo do desejo talvez seja esse.
- Talvez?
- Porque quando nos descartamos do desejo, alguma da nossa pele vai-lhe pegado. E dói. Mas o corpo, já sabemos, segue a lógica da decomposição.
Ocorrência # 2
- Fizeste isso?
-Fiz.
- Mesmo?
- Sim.
- Mesmo mesmo?
- Sim.
- Mas como foste capaz?
- Não sei.
- Não sabes?
- Não.
- Mas tens mesmo a certeza que fizeste isso?
- Quantas vezes mais é que me vais perguntar? Fiz. Eu. Sozinho. E não sei como é que fui capaz. Fim da história.
Elling e Hobgood
Elling e Luiza [adenda]
Elling e Luiza
Há medida que vou re-ouvindo, todo o disco melhora. Um pouco mais compassivo com o açúcar de harmónica & sax, quase já nem os noto agora, até porque em verdade não são muito impositivos. Mas sobretudo, passado o primeiro arrepio de ouvir alguém pronunciar desajeitadamente o português do Brasil, é preciso reconhecer que a versão de Luiza, de Jobim, é um daqueles gestos de grande senhor que não se importa de correr todos os riscos. Podia ser, como já foi, um poema de Lautreamont dito em francês. Agora nem há essa caução tremendamente literária, nem Luiza é mainstream bossa-nova. É apenas uma canção de uma melancolia desvastadora a que Elling empresta um tom gutural que arranha em sílabas inesperadas — como essa coisa que dói por dentro e vem à tona em zonas sensíveis que até aí desconhecíamos.
Ocorrência # 1
Já é difícil aceitar que a maioria dos nossos defeitos sejam o reverso das nossas virtudes. Mas mais difícil é distinguir quais dos defeitos são inaceitáveis perante nós próprios, por mais que queiramos as virtudes que os acompanham.
Em todo o caso, vou tentar controlar os estragos, ok?..
I went to a psychiatrist once. I was doing something that had become a pattern in my life, and I thought, Well, I should go talk to a psychiatrist. When I got into the room, I asked him, “Do you think that this process could, in any way, damage my creativity?” And he said, “Well, David, I have to be honest: it could.” And I shook his hand and left.
David Lynch, Catching the big fish. Meditation, consciousness, and creativity, p. 61.
Diferença de idade # 5
E tu porque escreves 23 e 47, assim tão numérico e preciso, e para os trinta dizes trinta e poucos, assim tão extensivamente vago?
Diferença de idade # 4
De qualquer modo, é assim que as coisas são. Tiveste 23, trinta e poucos, agora 47. Não há moral nenhuma nisso. Apenas um modo diferente de bater com a cabeça na parede.
Diferença de idade # 3
Ou se és um pouco mais sábio, mais resistente, mais estóico, mais sensato, mais experiente, mais qualquer coisa — ainda não é suficiente. Fazes sempre merda. Vistas as coisas de um certo ponto de vista. Esse, precisamente.
Diferença de idade # 2
Não é que sejas mais sábio, mais resistente, mais estóico, mais sensato, mais experiente, mais qualquer coisa. Não és. Mas pedem-te tão desamparadamente que o sejas, que tens de inventar uma maneira de sê-lo.
Diferença de idade # 1
Aos 23 anos fazemos algumas perguntas desprevenidas, mas realmente não queremos ouvir as respostas. Aos trinta e poucos aprendemos a não fazer as perguntas cujas respostas não queremos saber. Aos 47 as respostas chegam, mesmo que não tenhamos feito qualquer pergunta. A moral da história são quatro: a) as respostas não são boas; b) de nada valia tê-las ouvido mais cedo; c) em qualquer idade estás só; d) o que se sabe na diferença de idade é o desespero raso, sem epopeia e sem moral da história.
WC Lectures # 20 ou Aquele órgão só de professores doutores por extenso # 7
Elling, 10 a 12
No jazz vocal masculino, Kurt Elling está no meu topo. Pode-se dizer que a concorrência não é muita, e regra geral não chega onde Diana Krall chega mais que bem (e há nela uma inteligência do piano que não é para todos). Mas Kurt Elling não anda por essas paragens. Se bem que Nightmoves oscile nos acompanhamentos: uma harmónica manhosa, um quarteto de cordas não menos manhoso, um sax demasiado açucarado, alguma coisa a roçar a bossa-nova (aquela faixa em brasileiro, que estranho... mas se fosse em francês já não o seria tanto, por maior distância natural face à nossa língua). Mas a voz não transgride, nunca arredonda, nunca desfaz as rugosidades que são o seu fascínio e a sua vida própria. E depois há esse milagre da faixa dez — um original de Jarrett que desagua com toda a naturalidade em In the wee small hours —, que se prolonga até ao fim do cd, por mais duas faixas. Elling e o trio clássico, que é como devia ter sido todo o disco à falta de gente mal-comportada na harmónica e no sax. Não é que o cd não seja bom, que é, mas as três faixas do fim, realmente superlativas, mereciam algo mais antes.
A garden at night # 2
Sim, eu sei, às vezes toco o limiar dessa espécie de má-fé. Devia deixar de fazer crítica literária assim, e escrever o romance que acho que deveria lá estar.
A garden at night # 1
David Lynch, Catching the big fish. Meditation, consciousness, and creativity, p. 13.
Multiplex 34
- Parece-me que o império tem as suas prioridades bem definidas, mas isso não é novidade para quem sabe o que foram historicamente os impérios.
- Pois. Interessa o soldado, no seu tempo de vida útil, e o trabalhador, também no seu tempo de vida útil. No mais, os ricos colocam a regra do jogo: cada um toma conta de si.
- Como eles dizem, qualquer ideia de estado social conduz em linha recta ao comunismo. E o comunismo só aproveita aos loosers.
- O que mais me assusta é a tranquilidade com que eles colocam a pergunta: e porque haveriam de ser os vencedores a pagar a factura dos infortúnios de todas as espécies?
- De facto... A ética do império é outra, e ao menos nisso a administração Bush foi clara. Talvez por isso não houve, desta vez, a acusação de que Michael Moore manipulava os factos. Simplesmente, eles convivem bem com estes factos.
- Mais do que isso. Até têm uma palavra de ordem para todos os pobres: enriqueçam, agarrem a vossa parte do sonho americano!
- E o resto é a história banal de todos os perdedores, dizem eles: desculpas e invocações de piedade.
-Quase que os ouvi dizer: Fuck them all!
- E ouviste... Como sempre, o Império cria os seus bárbaros.
- E não admira que os bárbaros tenham sido bárbaros. É só uma questão de tempo.
- Coisa tão tristemente repetitiva...
O terceiro inconcluso
Tu sabes, essa porta não devia abrir para esse lado. Devia ser ao contrário, exactamente ao contrário. E nem preciso lembrar-te que deveria ser assim desde o início e que desde o início que não é assim. Agora, das duas uma: ou entramos de vez, ou saímos de vez. Ou, vá lá, andamos trocados até ao fim.
Horários de trabalho (também aplicável a ECTS, horas tutórias e coisas que tais)
Os livros & outras coisas # 2
E o pouco que pude ler/ver/ouvir, como soou diferente. Não por profundidade acrescida ou por um súbito sentido secreto enfim revelado — apenas porque em cada coisa era nítido que alguém vivia esse corpo-a-corpo imemorial com o que nos é adverso, com aquilo que mesmo acolhendo-nos não é da precariedade da nossa condição.
Sim, eu sei, é insustentável habitar por muito tempo esse vórtice devorador. Se sobrevivemos, rapidamente voltamos à “crítica” do que lemos/vemos/ouvimos. Não há mal nisso, bem entendido, e há até muita coisa boa. Mas convém saber de que estamos a falar.
Os livros & outras coisas # 1
Sem dúvida, há esses momentos em que tudo o que lemos e aprendemos parece não nos servir de nada para o que temos de enfrentar. Mas sendo momentos verdadeiros, a sua verdade não está inteira nesse nada saber. Porque depois, algum tempo depois, quando pensamos o que foram as nossas reacções, os nossos sentimentos, o modo de lidar, apercebemo-nos que tudo o que éramos e sabíamos se deslocou um pouco, se torceu um pouco, mas que nem a deslocação nem a torção seriam alguma vez possíveis sem o que éramos antes disso. Como aquele atleta que calculou o salto para cair no lugar do costume, mas no lugar do costume alguém pôs uma tábua com pregos, e ainda no ar se torce para cair um pouco ao lado, não em equilíbrio perfeito, não com aquela elegância de um corpo são em mente sana, mas com todos os sentidos despertos, vivos, sobreviventes, como se de repente o sentido de tudo o que treinou não fosse o saltar e o cair perfeito mas a possibilidade de escapar à súbita degradação do perfeito.