Gripe B (regularizar a respiração)


Gripe B (B menos, vá)


bloco-notas # 11

Quero apresentar queixa contra a chuva, o nariz entupido, a cabeça pesada, a frase esquiva, o parágrafo renitente e a mais completa falha de inspiração. Transpirar é uma opção em aberto, mas receio bem que nestas condições só por mediação de sauna. Ainda não vi ninguém com portátil, iphone ou simples telemóvel no sauna. Mas concedo que isto é província.

Companhia (quase) nocturna # 82


Nunca desejei a ninguém que sofresse, mas caso lhe saísse essa alta possibilidade em rifa, desejei sempre que aprendesse o máximo possível que a dor pode ensinar. Norah Jones aprendeu. Perdeu a voz inocente e os aconchegos de algodão (nada contra, mas não fomos feitos para a permanência de tanta beatitude). Ganhou batida e líricas afiadas. Enfim, tornou-se um caso sério. 

bloco-notas # 10

[patente] a partir dos excertos nos blogues, Nada de dois é música abelairiana & declinações do foder. ou seja, promete.

bloco-notas # 9

[patente] ...nesse sentido, diria que o estilo peculiar de Saramago nos aparece como o ritmo sustentável da desaceleração com objectivos emancipatórios.

zapping

Quase tudo conversa de café. Acontece que tomo café de pé, ao balcão, e saio quanto antes. Nada mais.

Companhia nocturna # 81


Não é só a colaboração de Chucho Valdés, é bem um cd a meias: cada um vai equilibrar o outro no lado oposto. Quando Buika é flamenco dilacerado, Valdés é quase jazz fluido. Quando Buika é worrld-jazz, Valdés é popular abstracto. A nina de fuego está com uma voz ainda mais avassaladora, o piano de Valdés sabe acompanhá-la, guiá-la e abandoná-la no momento certo.
(é quase uma boa metáfora para esta coisa que tenho de acabar de escrever, mas não misturemos as coisas)

Driving Miss Laura # 28


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Público, 22 de Novembro de 2009

bloco-notas # 8

Ela parecia genuinamente admirada com o facto de ter sonhado toda a noite com ele. Não foi um pesadelo, precisou, e tudo partiu de um facto empírico que a tinha impressionado e que o envolvia. Também parecia genuinamente alheia ao impacto que essa “confissão” pudesse ter sobre ele. A distância que era suposto existir entre ambos justificava a sua genuína admiração e o seu genuíno alheamento. Apesar disso, o sonho tinha existido. Logo, o impacto sobre ele também poderia existir. “Apesar disso” ou “por isso” são as fórmulas reversíveis de todo o começo.

Companhia (quase) nocturna # 80


Na rádio, no shopping ou no bar, não os ouviria de todo. 
No carro, guiando devagar na chuva da auto-estrada deserta, The XX têm a sedução de um mundo paralelo ao meu.
Melancolia adolescente com estoicismo adulto, o mundo deles. Estoicismo adulto com melancolia sem idade, o meu. 

bloco-notas # 7

Eis a coisa intratável: se cada um, pelo seu mérito, merece o chicote, como pode alguém estar acima desse mérito e possuir honra e dignidade?
Talvez o maior mistério não seja de facto o mal, mas a bondade.

bloco-notas # 6

POLÓNIO: Meu senhor, vou tratá-los de acordo com o seu mérito.
HAMLET: Valha-te Deus, homem! Muito melhor. Se tratares cada pessoa segundo o seu mérito, quem escapará ao chicote? Trata-os de acordo com a tua própria honra e dignidade — quanto menos eles merecerem, maior mérito haverá na tua bondade.

Companhia nocturna # 79

Ainda o voltar para trás. Não se trata de regressar, desde um ponto extremo, a um corpo estável de “canções” ou de originais. Que é “Blues”? É um standard, mas um standard de género, sendo para todos os efeitos um original. Ou seja, é a invenção da matriz do blues segundo o modo e a sensibilidade de Jarrett. Como se toda a música tivesse de ter sido inventada por ele para lhe existir enquanto músico (que não enquanto ouvinte). Bach fez isso com as transcrições: a transcrição era tornar seu um material que lhe era particularmente adequado; depois, criava a partir da transcrição, não do original. Talvez se possa chamar a isso fazer de si mesmo um mundo de música (um pouco diferente de se situar num cruzamento de referências ou citações, coisa mais intelectual e “fria”).
Voltar para trás: partir dos confins de si mesmo enquanto mundo de música e encontrar os caminhos de regresso ao largo oceano onde tudo começou e, por isso mesmo, onde tudo se pode aquietar e a vida prosseguir quando não somos tomados pela vertigem e pela necessidade da viagem. É assim que os concertos de Jarrett terminam: com esse júbilo de quem regressa à vida entre os mortais que somos, depois de ter voltado a saber que há mais coisas no mundo do que a nossa pobre filosofia pode imaginar. Não só não é coisa pouca, como será das poucas que vale a pena.


Companhia nocturna # 78


Diz Keith Jarrett que nos seus concertos a solo parte de lado nenhum, sem guião, e que pára sempre que chega a um local já anteriormente visitado. 
Eu diria que os grandes momentos desses concertos acontecem quando a música começa num lugar que não sabe ainda que é caminho que conduz a um anterior altíssimo. 
Por razões que não vêm agora ao caso, tenho horas de escuta atenta de “Blues”, uma composição que pertence a Paris Concert (1990). Só já bem lançada a faixa III de “London” (segundo cd deste Testament) alguma coisa me soou familiar, para do meio até ao final, na fixação de uma linha rítmica, desembocar e sair claramente onde começaria “Blues”. Ouvindo e tornando a ouvir III (London), é claro desde o início o mecanismo da variação, mas também o das grandes correntes oceânicas. Prolongando “Blues” até ele ser já completamente outra coisa, da mesma forma que uma corrente oceânica se mistura com outra e a deixa depois entregue a si mesma, chegamos ao início de III. Depois é só voltar para trás. Os concertos solo de Keith Jarrett são este voltar para trás, partindo de muito longe e fundo no vasto oceano.



Companhia nocturna # 77


Só em alguns casos leio as notas que acompanham os cd’s, e sempre depois de os ouvir. O texto de Keith Jarrett é visceralmente pessoal (e comovente), e diz duas coisas simples (que vou resumir mal): 1) um músico tem vida pessoal, sofre, e o sofrimento pode impedir a música; 2) a música ainda pode salvar um músico. Por vezes esquecemo-nos que também é deste combate pessoal que é feita a grande música. Mas não admira: quando a música é realmente grande, o combate que lá ouvimos confunde-se sempre com o devir do mundo. 

bloco-notas # 5

 
Nunca escrevemos tão bem sobre nós próprios, como quando escrevemos sobre outros. Certo. Mas como se sabe quando é sobre nós próprios? Quando é que começa a ser sobre nós próprios? E finalmente: isso importa, saber isso importa? Ou basta escrever nessa linha de fronteira indecidível? 

"A «coisa seguinte», sendo sempre para Eduardo Prado Coelho a coisa intelectual e estética, é o lado mais solar e pulsionalmente afirmativo do pensamento e das múltiplas sensibilidades, «uma cultura da ironia e do jogo, por contraposição a uma cultura da angústia e da dúvida» (Diário I: 56). Mas uma cultura da ironia e do jogo que reverte o intelectual e o estético às raízes mais indomesticáveis do sujeito, e aí consegue, por exemplo, atravessar uma imagem corporal com uma decisão de uma outra narrativa:
«Compro uma gravata Hermes com elefantes aos saltos lançando esguichos de água pela tromba. Arranjo-lhe um título para apresentação em convívio social: a insustentável leveza dos elefantes (o peso que salta, rebola, ri, brinca com o seu próprio corpo)» (Diário I: 98).
Nada mais saudável do que nos tomarmos também a nós próprios como cena capaz de convocar a «coisa seguinte». E, de alguma maneira, nada mais saudável que aquilo mesmo que transporta esta espécie de nietzscheanismo da grande saúde do corpo, transporte de igual modo o ténue sinal de tragédia que autentifica a indesmentível realidade do que o tempo vai cristalizando em nós. A insustentável leveza dos elefantes não pode deixar de ser também a memória que em surdina obceca, o vivido que persiste em nos habitar e constranger, talvez mesmo o peso específico de todo o lance intelectual e estético quando declina o seu júbilo e sobre ele desce a sombra crepuscular da única interrogação que se repete neste diário: quando chega a infância?
Porque esta interrogação repetida significa, naturalmente, que a infância nunca chegará."


Fora de tempo # 56

Retenho profundamente estes versos de um poema sobre conduzir à chuva: “[...] e fixo à minha frente / A parte inteligente do medo / Que me toca.” (p. 19) 
Não se conduz bem (com ou sem chuva) se não se usar a parte inteligente do medo. Aquela que sabe da máquina e dos processos maquínicos que em nós a prolongam — essa é a parte inteligente do medo.

Fora de tempo # 55


Há livros cujas qualidades reconhecemos, com as quais nos identificamos — e contudo há qualquer coisa que se interpõe invencivelmente entre o livro e o nosso desejo de gostar dele.
Reconheço a secura, a ironia e o alusivo como um mérito. Reconheço o insólito e o risco de tomar como objecto e personagem um carro (é ele o amante japonês). Reconheço a mestria de uma longa metáfora filée e os lugares de amor e morte que atravessa. Um crítico de nada mais precisa.
O leitor que sou identifica-se com os andaimes desta linguagem, a ligação ao carro (também japonês, por acaso), e os lugares de amor e morte a que ele dá acesso. E contudo, senti-me quase sempre de fora deste livro. O leitor que sou precisa de mais qualquer coisa, mas não sabe o quê. Se soubesse, já teria conseguido parar de ler. 
[Não, não é verdade, não quero parar de ler. Quando a identificação acontece, há apenas um intervalo maior para o livro seguinte. E faz-se a vaga promessa de re-ler.] 

bloco-notas # 4

Ainda a velha questão: para haver um poema, não basta um papel em branco com uma assinatura no fim; para haver um quadro, basta um papel em branco com uma assinatura no fim.

Colóquio Letras 172


A abrir, três textos re-lêem Barthes — e o reencontro mostra até que ponto foi (é) precipitado o seu desaparecimento do horizonte de referências teóricas em que se movem os estudos literários. Mas cada autor tem de atravessar o seu limbo, porque a teoria nunca é sem mancha, há que dar tempo a que as imperfeições do presente resgatem as imperfeições do passado.
Em seguida, nove textos sobre escrita do eu e diários analisam Pessoa, Sena, Torga, Vergílio Ferreira, Marcello Duarte Matthias, Luísa Dacosta, Saramago, Llansol e Eduardo Prado Coelho [que é o meu contributo: A coisa seguinte, o chegar da infância e o fim definitivo de todos os tribunais: Eduardo Prado Coelho em diário].
Há ainda a habitual secção de inéditos e de recensões críticas de literatura portuguesa e literatura brasileira.

Pormenores



Ainda hoje, com as excepções que validam toda a “regra”, a reacção à queda do muro permite distinguir as duas direitas e as duas esquerdas. As duas direitas convergem no silêncio e no alheamento: a direita ultra-conservadora tem em curso a construção dos seus próprios muros, a direita democrática só costuma festejar a liberdade do mercado, aos restantes costumes pouco diz; a esquerda pré-perestroika não vê razões para celebrar, só a esquerda democrática lembra a festa da liberdade. Pormenores, já se vê. O outro falava do homem e das suas circunstâncias. Eu acho que se lhe deve acrescentar também os seus pormenores.

Companhia nocturna # 76


(Testament? Vai com calma, não lhe dês pretextos. E olha que tudo é testamento, legado. Contigo, por maioria de razões.)

Driving Miss Laura # 27


 6 de Novembro, sexta-feira, 18.30h
Livraria Centésima Página, Braga
Apresentação por José Eduardo Lima, SJ

Fora de tempo # 54


Não é nada que não se saiba desde tempos imemoriais: temos que nos perder para nos encontrar. Há uma pergunta que decorre disto e que coloco sempre que embarco numa leitura “académica”: quando é que ele (ou ela) perde o pé e se permite ir por momentos na corrente que só pretende analisar de fora? Esse momento é uma imperfeição, a todos os títulos uma imperfeição, mas é a imperfeição semelhante à marca de contraste que assinala o ouro de lei: percebe-se tão analiticamente o objecto de estudo que estamos em condições de reproduzi-lo como autoria nossa.
A etapa clássica desta ambiguidade deu-se em termos de fascínio e contra-fascínio. Coetzee imagina Barthes fascinado com a leitura de Zola, e construindo o contra-fascínio em O prazer do texto, onde Zola é um dos exemplos da literatura sem atrito. Umberto Eco foi mais claro, declarando desde logo que na sua análise dos comics e similares havia um olho de confessado fascínio e um outro de distância sociológica.
A etapa moderna desta ambiguidade veio com a desconstrução derridiana e acontece naquele momento em que o texto desconstrutor segue com ironia, mas com consciência de ser o melhor caminho possível na situação, a estratégia do texto desconstruído. Ou dito de outra forma, acontece quando a dobra que faz avançar a interpretação tem que ser a mesma dobra que fez avançar aquilo que está a ser interpretado. No livro de Quintais, isso acontece sensivelmente a meio do empreendimento, que é o melhor lugar para tais coisas acontecerem:
“Franz começa a revelar, desde 1918, uma intranquilidade permanente. Desconfia das tripulações dos navios em que embarca. Lê-lhes na fisionomia «a dúvida em que estavam acerca da sua nacionalidade, desconfiando que ele fosse alemão e não suíço». Parafraseando o médico português, um estado de desconfiança começa a orientar-lhe infatigavelmente a atenção.” (p. 64).
Tudo se joga no fio da navalha. Porque a simples paráfrase é a impotência da interpretação, mas parafraseando é como uma mudança de velocidade para entrar num outro troço. Chegados aqui, se dúvidas houvesse (mas já não havia), sabemos que o livro está ganho.

Levi-Strauss


Uma certa perplexidade ao saber da morte de Levi-Strauss, como se fosse uma notícia atrasada. Nenhuma crítica nisto. Levi-Strauss tinha desaparecido da vida intelectual activa por razões muito suas. Ou com mais rigor, a sua pessoa tinha-se separado há algum tempo do seu nome de autor. Era como nome de autor que Levi-Strauss existia — um clássico incontornável, na fase em que é ainda lido e discutido. E um desses clássicos que ultrapassa largamente as fronteiras da sua “ciência” — para mim, Tristes Trópicos é também um grande romance (já agora, um grande romance “proustiano”, mas sem tempo reencontrado).  

Fora de tempo # 53


Em 7 de Junho de 1930, em Lisboa, Franz Piechowski mata o ministro alemão em Portugal, o Barão de Baligand. Rapidamente se percebe que o homicida não está em seu perfeito juízo. O psiquiatra Sobral Cid, em 14 sessões, procede ao seu pormenorizado exame clínico, de que resulta um longo relatório: “O caso Franz Piechowski, perseguido, perseguidor e magnicida”. Sobral Cid é o grande herdeiro de Miguel Bombarda e Júlio de Matos, e o caso aparece-lhe como uma oportunidade ímpar de criar jurisprudência na psiquiatria portuguesa e na medicina forense.
Luís Quintais faz a análise detalhada do relatório de Sobral Cid, mostrando como se constrói a evidência da loucura e o paradoxo inevitável que sustenta toda a evidência deste tipo: se os indícios são relativamente objectivos, e consolidados na sua posição de indícios por casos similares, a interpretação deles num diagnóstico de loucura depende da autoridade e subjectividade do médico, isto é, da sua capacidade particular de não se deixar enganar por uma loucura fingida.
O relatório de Cid conta uma história, a de Franz Piechowski, reconstruindo-a enquanto história de um magnicida inconsciente. A análise de Quintais conta a história dessa história, reconstruindo-a enquanto esforço de evidência dos mecanismos de um magnicida. A sedução deste livro reside na escolha deste mecanismo narrativo em segunda instância. Uma festa da inteligência, sim, e da inteligência desdobrada sobre si mesma, mas uma festa da inteligência que magnificamente se subordina à resistência do real, ao naco de vida, quer dizer, à insensatez do sentido.

Driving Miss Laura # 26


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Companhia (quase) nocturna # 75

A tempo, o outono. Atrasado, um texto para acabar. Em modo aleatório, a música.

Driving Miss Laura # 25


No Público de hoje: "O testamento vital e os interesses dos cidadãos".