Nunca escrevemos tão bem sobre nós próprios, como quando escrevemos sobre outros. Certo. Mas como se sabe quando é sobre nós próprios? Quando é que começa a ser sobre nós próprios? E finalmente: isso importa, saber isso importa? Ou basta escrever nessa linha de fronteira indecidível?
"A «coisa seguinte», sendo sempre para Eduardo Prado Coelho a coisa intelectual e estética, é o lado mais solar e pulsionalmente afirmativo do pensamento e das múltiplas sensibilidades, «uma cultura da ironia e do jogo, por contraposição a uma cultura da angústia e da dúvida» (Diário I: 56). Mas uma cultura da ironia e do jogo que reverte o intelectual e o estético às raízes mais indomesticáveis do sujeito, e aí consegue, por exemplo, atravessar uma imagem corporal com uma decisão de uma outra narrativa:
«Compro uma gravata Hermes com elefantes aos saltos lançando esguichos de água pela tromba. Arranjo-lhe um título para apresentação em convívio social: a insustentável leveza dos elefantes (o peso que salta, rebola, ri, brinca com o seu próprio corpo)» (Diário I: 98).
Nada mais saudável do que nos tomarmos também a nós próprios como cena capaz de convocar a «coisa seguinte». E, de alguma maneira, nada mais saudável que aquilo mesmo que transporta esta espécie de nietzscheanismo da grande saúde do corpo, transporte de igual modo o ténue sinal de tragédia que autentifica a indesmentível realidade do que o tempo vai cristalizando em nós. A insustentável leveza dos elefantes não pode deixar de ser também a memória que em surdina obceca, o vivido que persiste em nos habitar e constranger, talvez mesmo o peso específico de todo o lance intelectual e estético quando declina o seu júbilo e sobre ele desce a sombra crepuscular da única interrogação que se repete neste diário: quando chega a infância?
Porque esta interrogação repetida significa, naturalmente, que a infância nunca chegará."
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