Não é nada que não se saiba desde tempos imemoriais: temos que nos perder para nos encontrar. Há uma pergunta que decorre disto e que coloco sempre que embarco numa leitura “académica”: quando é que ele (ou ela) perde o pé e se permite ir por momentos na corrente que só pretende analisar de fora? Esse momento é uma imperfeição, a todos os títulos uma imperfeição, mas é a imperfeição semelhante à marca de contraste que assinala o ouro de lei: percebe-se tão analiticamente o objecto de estudo que estamos em condições de reproduzi-lo como autoria nossa.
A etapa clássica desta ambiguidade deu-se em termos de fascínio e contra-fascínio. Coetzee imagina Barthes fascinado com a leitura de Zola, e construindo o contra-fascínio em O prazer do texto, onde Zola é um dos exemplos da literatura sem atrito. Umberto Eco foi mais claro, declarando desde logo que na sua análise dos comics e similares havia um olho de confessado fascínio e um outro de distância sociológica.
A etapa moderna desta ambiguidade veio com a desconstrução derridiana e acontece naquele momento em que o texto desconstrutor segue com ironia, mas com consciência de ser o melhor caminho possível na situação, a estratégia do texto desconstruído. Ou dito de outra forma, acontece quando a dobra que faz avançar a interpretação tem que ser a mesma dobra que fez avançar aquilo que está a ser interpretado. No livro de Quintais, isso acontece sensivelmente a meio do empreendimento, que é o melhor lugar para tais coisas acontecerem:
“Franz começa a revelar, desde 1918, uma intranquilidade permanente. Desconfia das tripulações dos navios em que embarca. Lê-lhes na fisionomia «a dúvida em que estavam acerca da sua nacionalidade, desconfiando que ele fosse alemão e não suíço». Parafraseando o médico português, um estado de desconfiança começa a orientar-lhe infatigavelmente a atenção.” (p. 64).
Tudo se joga no fio da navalha. Porque a simples paráfrase é a impotência da interpretação, mas parafraseando é como uma mudança de velocidade para entrar num outro troço. Chegados aqui, se dúvidas houvesse (mas já não havia), sabemos que o livro está ganho.
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