Assim a correr, ocorrem-me uma série de razões para eleger o último capítulo de Diário de um mau ano como um dos melhores últimos capítulos de sempre. Mas argumentar isto levava tempo demasiado. A qualidade de um primeiro capítulo depende exclusivamente dele mesmo, a qualidade de um último capítulo depende da sua relação estrutural com o todo, e isso já é uma conversa longa. Ainda por cima, este último capítulo são três, ou qualquer coisa do género. Salto por cima disso tudo e fico apenas com a razão mais subjectiva — Dostoievski. Desde sempre um dos mestres de Coetzee, desde sempre um dos meus autores absolutos.
“Ontem à noite reli o quinto capítulo da segunda parte de Os Irmãos Karamazov, o capítulo em que Ivan devolve o bilhete de entrada no universo que Deus criou, e dei por mim a soluçar incontrolavelmente.” (p. 237). Percebo, oh se percebo. Mas há que saber exactamente porque se chora. Porque a argumentação de Ivan, diz-nos Coetzee, não é das mais poderosas enquanto argumentação. Concedamos. O que impressiona “são as notas de angústia, a angústia pessoal de uma alma incapaz de suportar os horrores do mundo.” (p. 238). É essa angústia convincente, é convincente e autêntica a voz de Ivan? “A resposta é sim.” (p. 239). E é por ser convincente e autêntica que não só a ouvimos como a lemos, e enquanto a lemos “há espaço bastante para pensar também: Louvado seja Deus! Até que enfim a vejo diante de mim, a batalha levada ao seu mais elevado nível! Se a alguém (Aliocha, por exemplo) for dado derrotar Ivan, por palavras ou pelo exemplo, então a palavra de Cristo será de facto vingada para sempre! E por conseguinte a pessoa pensa: Slava, Fiodor Mikhailovich. Que o teu nome ressoe para sempre nas galerias dos famosos!” (p. 239-240).
A batalha levada ao seu mais elevado nível — é esse o legado, a batalha para dentro de nós, que o lemos e prolongamos. Há sempre outros termos, talvez até a ideia de a batalha ser uma outra batalha, mas a nota de angústia, quer devolvamos o bilhete ou não, essa é levada ao seu mais elevado nível. Slava, Mr. Coetzee. As tuas lágrimas são justas. E o resto não é literatura, o resto é coisa de quem não sabe até onde pode ir a literatura.
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