Aquele órgão só de professores doutores por extenso #2
Oscares # 2 (não censurado)
Não sei como aconteceu. Mas o post que saiu não foi o que mandei para o blogger. Naturalmente, o blogger tem mais que fazer do que saber português e preocupar-se com manchas. Mas que aconteceu, aconteceu. Bruxedo, na certa. Reponha-se a literalidade da coisa.
Martin Scorsese, por Raging Bull, pelo De Niro e pelo Di Caprio.
Forrest Whitaker, por Gost Dog: the way of the samurai e, vá lá, por The last King of Scotland.
Helen Mirren, por Prime suspect e, um pouco mais ali abaixo, pelas nádegas postiças e o andar de pato de The queen.
A Leitora, no seu infinito particular (XLVII)
Epifanias # 59
Oscares # 2
Martin Scorsese, por Raging Bull.
Forrest Whitaker, por Gost Dog: the way of the samurai e The last King of scotland.
Helen Mirren, por Prime suspect e The queen.
Oscares # 1
Continua tudo muito previsível. Só ganham os que foram nomeados. Não há surpresas. Isto não ajuda ao show bizz. Nem parece americano.
Multiplex 27
- Uma coisa é ler sobre os meninos-soldados, outra coisa é ver no filme como se estivéssemos a ver na televisão uma reportagem em directo.
- O poder da imagem.
- No resto, pouco mais.
- Às vezes até de menos. A não ser o Di Caprio.
- Sim, o Di Caprio. Finalmente adulto. Quer dizer, estragado. No rosto e na alma. Uma maldade plausível, um cinismo plausível, uma réstia de pureza plausível.
- Lembras-te dele em Romeu + Julieta?
- Magnífico. Mas a questão era se seria capaz de deixar de ser esse adolescente.
- Agora já não é questão.
Estilos de vida
Há que reconhecê-lo: o Conselheiro Espada é consistente. O seu conservadorismo tem uma obstinação lógica impecável e uma estratégia clara: trata-se sempre de ajustar tudo a princípios morais, mas nunca enunciar claramente esses princípios como princípios, mas apenas segundo esse conceito de “sociedade aberta” que é nele o mot de passe para tudo o que tem a defender.
Por exemplo, a crónica deste sábado no Expresso. O Conselheiro Espada viu uns números britânicos que lhe dizem que o Estado apoia mais as famílias monoparentais do que as outras. O Conselheiro Espada viu também uns números britânicos que lhe dizem que entre os filhos das famílias monoparentais há mais percentagem de delinquência, droga e outras coisas más para a sociedade.
O Conselheiro Espada não nos diz onde estão esses números, para que a gente possa ver se há aqui algumas nuances que devessem ser consideradas. O Conselheiro Espada extrai conclusões. Conclui que os estilos de vida não têm todos o mesmo contributo para o bem social. O Conselheiro Espada não nos explica porque é que acha que uma família monoparental é um estilo de vida (a viuvez é um estilo de vida? ser divorciado é um estilo de vida que se possa colocar na mesma linha de escolha entre permanecer solteiro ou casar-se?), limita-se a afirmar que o estilo de vida monoparental é mais nocivo para a sociedade. Logo, conclui o Conselheiro Espada, o Estado não devia dar mais dinheiro às famílias monoparentais do que às outras.
O Conselheiro Espada não o diz para evitar o escândalo, mas deixa-o subentendido: a função do Estado não é acudir aos problemas, mas premiar os bons estilos de vida. E bons estilos de vida são aqueles que o catolicismo vigilante mas nunca claramente afirmado do Conselheiro Espada diz que são bons estilos de vida. A isto, o Conselheiro Espada chama sociedade aberta. E o Popper, coitado, bem morto e enterrado, não é para aqui tido nem achado.
Um destes dias veremos este singelo discurso arredondar-se ainda mais nas palavras sempre profissionalmente políticas do Presidente Cavaco. Ele há os pobres e desempregados, e para esses o Presidente Cavaco sempre é mais social-democrata do que o seu liberal Conselheiro. Mas depois há os estilos de vida, e aí são ambos fraternalmente católicos, apostólicos e romanos. Quer dizer, totalmente abertos às regras bem restritas desse clube.
O charme discreto dos filmes-mosaico,
poderia dizer-se a propósito de Babel.
Mas o que se diz, parecendo dizer-se isso, é um pouco diferente: “as pessoas gostam de Babel porque é um filme puzzle — ou melhor, porque apresenta problemas globais, sociais e políticos complicados como um puzzle que tem uma solução” (Jim Ridley, crítico do jornal Village Voice, no dossier do último Ípsilon, sexta-feira, 23).
Babel é um puzzle que tem uma solução?!
“A mensagem de Babel é que um mundo que parece temível na sua aleatoriedade até faz sentido, se se conseguir ver o desígnio maior” (o mesmo Ridley no mesmo local).
Vê-se um desígnio maior em Babel?! Curioso, só dei por ligações impulsionadas pelo acaso e uma espécie de cubo das sensações da dor.
Donde virá então o evidente charme dos filmes-mosaico? Arriscaria dizer que da forma como revêem a velha ideia trágica do fatum. Não é mais possível às sociedades hiper-racionalizadas, tecnologizadas e disciplinadas de hoje deixar de ver a irracionalidade e a arbitrariedade que (continua a) move(r) os destinos individuais. Terror e piedade voltam a ser necessários como forma de identificação com o humano, até porque o quadro explicativo e securitário de ordem religiosa se esboroou. Mas, por outro lado, o destino tem costas menos largas, ou lê-se melhor a desordem política que o faz ser certo e determinado destino. Assim, o fatum de hoje não precisa de deuses ex-machina, mas de seguir o aleatório que faz com que os gestos de uns interfiram na vida de outros. Gestos que estão para aquém da moral, mas que geram situações em que se impõem decisões morais — e também nisto o fatum de hoje se distingue. Édipo não é culpado, isso sabemo-lo hoje. Mas a sua situação não é menos problemática por isso, e há decisões a tomar.
Inquéritos & problemas dermatológicos
Nunca se acabará de escrever sobre o poder das palavras. Fiquei a saber que “aprenderam”, por exemplo, é palavra que pode gerar coceira. É certo que não há um sistema imunitário igual ao outro, mas lá que a coisa me parece um bocadinho idiossincrática, isso parece... É que o vírus, bactéria ou lá o que seja que provoca essa coceira é omnipresente na espécie ocidental. Se olharmos de “cima”, chama-se sociedade do conhecimento, sociedade de auto-reflexividade generalizada, etc; se olharmos de “baixo”, chama-se escolarização obrigatória, long life learning, etc. "Aprenderam" significa que há mediação e que temos consciência dela. E que num determinado período essa mediação se cristalizou em torno do livro e dos jornais (esses que Hegel disse serem a oração matinal dos tempos modernos). Tudo indica que esse período está a acabar. E como em todos os períodos que vão terminando, há já alguns que vivem segundo as regras que provavelmente presidirão ao período seguinte. Também tenho para aí umas teorias sobre isso, mas a farmácia deve ser usada com ponderação, de modo que para já ficamos assim: votos de rápidas melhoras.
Epifanias # 58
Multiplex 26
- Sim, melhor que A bandeira dos nossos pais. Mas com a sensação de que o problema de ambos os filmes é que Eastwood pegou num género que se tinha fechado de vez com aquele filme do Malick...
- The thin red line...
- Sim, esse, definitivamente esse. E contudo, Eastwood ficou a um passo de qualquer coisa que seria realmente genial.
- Oh, estes quase-factuais... Não sei se é bom caminho para a crítica.
- Também não interessa. Tudo o que se passa nas grutas, sobretudo os diálogos, é excelente. As cenas de guerra é que estão a mais.
- Ah, compreendo...
- Os tiros, aqui, deviam ser apenas os dos suicídios e da morte dos prisioneiros.
- No limite, querias um filme de guerra sem tiros, mas no campo de batalha.
- Por exemplo. Um filme de guerra depois de todos os filmes de guerra. Isso é que seria acrescentar qualquer coisa ao cinema.
- Assim, é apenas um excelente filme.
- Apenas, dizes bem.
Inquéritos # 2
- Mas quem é o Harpo?
- Ora, quem é o Harpo? Isso é pergunta que se faça?
- E se for waht’s in a name?
- Está melhor, mas para o caso é na mesma ocioso.
- Fico-me pelo já leste o Harpo, é isso?
- Era aí que já tínhamos ficado. É um lugar como qualquer outro, mas é um bom lugar.
- Subscrevo, mas sem o mas.
- Seja, sem o mas.
Inquéritos # 1
- Leste o Harpo, Luís?
- Li. E tu, Leitora?
- Também.
- Excelente. Se não me engano nas contas, isto faz com que neste blogue 200% tenham lido o Harpo.
- É uma percentagem impressionante.
- Sobretudo, é a percentagem a partir da qual se devem colocar outras questões.
- Ah, percebo. De que falamos quando falamos de leste o Harpo.
- Ciência do singular, minha querida amiga. Ciência do singular.
Perguntas (com alguma perplexidade)
Não há como os inquéritos para darem consistência àquilo que difusamente o dia-a-dia nos vai deixando entrever. Sobre a não-leitura de livros dos nossos estudantes universitários, com preponderância para os alunos de ciências, confirma-se a mudança de mentalidades de toda uma geração: um curso já não é uma tarefa de aprendizagem cultural e humana, ao mesmo tempo que uma preparação para a vida profissional que se deseja, um curso é um percurso técnico de aquisição de skills (o conceito continua a soar-me estranhíssimo), que corre paralelo à vida de cada um, e que serão relevantes ou não conforme o emprego que se arranjar.
A questão é: se os universitários não lêem, quem lê? É que me parece razoável dizer-se que hoje se lê mais, embora me pareça também razoável dizer-se que não se lê na mesma proporção em que se edita entre nós. Este "razoável" é enganador?
A outra questão é: se os jovens urbanos até aos trinta anos votam maioritariamente à esquerda e apoiam as causas ditas fracturantes, onde aprenderam eles isso? Haverá já questões de sociedade e cultura que prescindem dos livros e mesmo de um tratamento mais profundo dos jornais? Bastará o Prós e Contras e o eco disso na conversa do dia-a-dia?
Multiplex 25 – take three
- Fiquei a pensar do que se lembrarão eles na hora da morte.
- Sim, um calor no corpo, um vermelho, uma chama: o que eles eram, o que era o verão neles, esse tempo.
- Mas já ninguém lembra assim, Luís. Nunca esse tempo. Lembrarão o calor, o vermelho, a chama, mas sem tempo, como mistura de tempos, do que foi e do que não foi. Nunca esse tempo. Parece que paraste no Proust...
- Continua tu, Leitora. Continua tu...
Multiplex 25 – take two
- Claro que ela tinha que encomendar aquele fato de banho vermelho, Leitora. E claro que tinham que fazer amor num lugar quente. São requisitos de qualquer história assim, mas há lá mais do que isso.
- Desejo infantil de continuidade entre todas as coisas? Narcisismo primário, como força motriz de tudo aquilo que chamamos amor?
- Sim, desde que se entenda infantil como aquilo que temos de perder em troca de nada.
- Em troca de nada?
- Lamento, mas a maturidade e o estado adulto e tudo isso que é assaz louvável e civilizacional é nada perante a força desse desejo infantil.
- Mas eles renunciam de bom grado... Quer dizer, chocam de encontro à realidade e aprendem...
- Claro. O medo da morte é maior. É sempre maior. E vamos esquecendo, fazendo por esquecer para não ser insuportável lembrar. Mas de que se lembrarão eles à beira da morte?
- Não me vais dizer que se lembrarão um do outro, pois não?
- Não, não vou dizer isso. Mas lembrar-se-ão de um calor no corpo, de um vermelho, de uma chama: o que eles eram, o que era o verão neles, esse tempo.
- Bom, pelo menos seria assim que tu o escreverias...
- Sim, se soubesse dizê-lo, seria isso que diria.
Multiplex 25
- É a paz retrógrada, como muito bem disse o João Paulo Sousa.
- E o essencial fica dito com isso, também acho que sim. E contudo...
- Contudo?..
- Penso naquela sessão do clube de leitura ou lá que é aquilo, em que discutem Madame Bovary. Não será por acaso que o livro é Madame Bovary: a mulher sem saída, que procurou alguma coisa em vez de suportar sem mais uma infelicidade baça.
- Mas achas que para aqueles personagens há qualquer coisa de idêntico ao sem saída da Madame Bovary?
- Acho que para aqueles personagens não há nada que objectivamente seja sem saída, mas cada um deles tem de descobrir e traçar os seus limites. E onde há limites, e há-os sempre, há uma estrada que é sem saída.
- Isso é que é metafísica rodoviária, Luís! Tudo se resumo a escolher o beco sem saída em que queremos envelhecer e morrer, é isso?
- Se não for escolher, pelo menos aceitar o que nos calhou. Porque se pode sempre recusar. Em Madame Bovary há o óbvio empecilho do tédio pequeno-burguês e a dependência económica dela. Aqui não. Mas as coisas não melhoram substancialmente, pelo menos naquela parte em que se deseja uma coisa diferente.
- Estás a falar da outra vida? Do desejo ilusório de uma outra vida?
- Em parte. Lembras-te dele lhe dizer que a beleza é sobrevalorizada?
- E ela pensa que foi uma resposta estúpida, porque só uma pessoa que dá a beleza por adquirida pode dizer uma coisa dessas.
- Pois é o mesmo com a vidinha. E ninguém ali tem imaginação suficientemente realista para querer uma vida que possa ser a mesma vidinha noutro lado e com outras pessoas. A mesma vidinha, nada de diferente, só que noutro lado e com outras pessoas.
- São todos little children.
- O autor é que escusava de moralizar no fim. Mas isso também é próprio de little children. Se não moralizasse, seria, sei lá?..
- Carver?
- Por exemplo! Mas enfim: ele moraliza, a gente lê para cá disso.
Boa educação # 7
Por favor não deixem que o bom-senso vos leve a tomar decisões razoáveis e céleres. O País não está ainda preparado para essa eficácia. Obrigado.
Como um tapete todo sujo # 5. Conhecimento
Um dia Ela escreveu: hoje vi esse filme pela quinta vez. Não é bem o filme que me interessa, mas o facto de que o poderia ter feito eu, sendo também a sua personagem. Tão estranho que aquilo que não parece ser a nossa vida seja a verdade mais simples da nossa vida. E que sejam outros a contá-la e a vivê-la.
Um dia Ele escreveu: sei que nada me poderá salvar de mim mesmo, e é bem provável que se por acaso isso me pudesse ser dado eu até recuasse de horror. Mas sei também que o que me move para o que quer que seja é apenas isso: a possibilidade remota, breve, imperceptível, de que alguém ou algo me desloque de mim próprio.
Nesses dias o mundo entre ambos foi mais estranho ao mundo de cada um. Dias descoincidentes. Como a vida, diriam depois, e já não precisavam de o dizer. Eles não se conheceram quando pela primeira vez se conheceram. É sempre assim, e contudo o conhecimento também não acontece depois. Só depois do fim.
Anteriores: 1. Epígrafe; 2. Rodar; 3. Casa;4. Cerco;
Psicopatologia da vida quotidiana # 23
Não admira que a igreja católica esteja a perder a sua influência. Dantes, um dos desabafos mais frequentes era o bem suspirado: meu deus... Hoje, é: mas eu não acredito nisto!
Dos mortos
Mudam de visual, reiniciam actividades, constroem laços – enfim, libertam-se. Um tipo até se põe para aqui a pensar que vantagens haverá em estar vivo...
O alarme das custas
O Telejornal das 13h, na Rtp1, pôs no devido lugar a patusca interpretação do juiz-conselheiro Fischer Sá Nogueira, no Prós e Contras de ontem, quanto às custas a pagar pelo facto de ter sido julgada improcedente a petição de habeas corpus. O Supremo Tribunal determinou as custas em 480 euros, o juiz-conselheiro, muito cheio de admoestação para estes peticionários que se metem com a justiça por dá cá aquela palha, puxou lá de uns artigos e disse que eram 480 euros a pagar por cada um dos 10000 subscritores da petição. A RTP1 ouviu um jurista explicar com mal contido gozo que isso era assim a modos que absurdo, porque o tribunal apreciara uma petição de habeas corpus, e não dez mil petições sobre diz mil sargentos diferentes. Percebeu-se que a peça foi para o ar pela ironia da coisa, porque a RTP1 nem precisava de ter ouvido o jurista, acabou com um esclarecimento do próprio Supremo Tribunal a confirmar o óbvio: que as custas tinham sido fixadas em 480 euros e não em 480 euros vezes cada subscritor. Que tal pedir uma indemnização ao juiz-conselheiro por uma noite de calafrios em algumas almas menos dadas a estas subtilezas da interpretação jurídica?..
Como um tapete todo sujo # 4. Cerco
As pessoas não se conhecem quando pela primeira vez se conhecem. É uma verdade tão trivial, que as histórias que todos os dias contamos podem mentir sobre isso com o mesmo grau de trivialidade. Conheceram-se num congresso, diziam. Factual, mas não verdadeiro. Trocaram endereços electrónicos e houve várias mensagens, coisas profissionais, uma ou outra nota mais pessoal mas não íntima. Factual, mas também não verdadeiro. Porque a intimidade estava já no ritmo regular das mensagens, no leve sobressalto de ela não ter ainda chegado, na forma quase desprendida como iam mudando de assunto, rondando de longe, caçadores experientes mas dir-se-ia que saciados, presas indiferentes ao seu destino. O mundo entre ambos era sonâmbulo, o mundo de cada um deles acordava a horas certas e tinha tarefas que não admitiam adiamento. O mundo entre ambos existia apenas entre ambos, como terra estrangeira de que iam sabendo notícias sem possibilidade de confirmação.
Anteriores: 1. Epígrafe; 2. Rodar; 3. Casa;
A Leitora, no seu infinito particular (XLVI)
- Luís, fiquei tão sensibilizada com a intervenção do Padre Feytor Pinto. Aquela ajuda toda da Igreja às mulheres para que não abortem, que exemplo!
- Sem dúvida, sem dúvida!
- Verdadeiramente evangélico, a mão esquerda não sabe o que faz a direita.
- Como assim?
- Suponho que uma mão abomine firmemente a contracepção.
- Claro, está lá na encíclica que é um acto gravemente desordenado.
- E a outra mão ampare o que a contracepção deveria ter evitado.
- Mas olha que nisso o Padre Feytor Pinto está muito à frente.
- Está?
- Não o ouviste responder sobre a contracepção que todos se deviam juntar para arranjar uma solução realmente bonita?
- Bonita?
- Eu acho que ele estava a pensar em pílulas em caixas com lacinhos, que mostrassem a verdadeira ternura que a igreja tem pelas mulheres. Ou preservativos com estampados da natureza, em homenagem aos métodos naturais.
- Tu achas que ele queria mesmo dizer isso?
- Ou então estava a pôr-se a jeito para o Gato Fedorento, sei lá...
Referendo: o day after
Foi o que os mais cautelosos esperavam. Vitória clara do Sim, referendo não vinculativo mas com mais afluência do que o seu congénere anterior.
Pode começar a tratar-se do day after. Quatro notas a propósito:
1.Muito do sucesso da lei que consagre a despenalização dependerá da privacidade que for concedida às mulheres para a IVG.
2. Olhando o mapa dos resultados, e vendo que a norte do Douro, tirando a área metropolitana do Porto, o Não ganhou com alguma margem, pode-se colocar com legitimidade esta questão: estará o Estado preparado para fazer cumprir a lei em “território hostil”? Creio bem que tudo aí se perderá se não tornar a existir a militância silenciosa que foi necessária para implementar em algumas zonas o planeamento familiar.
3. De vez em quando Pacheco Pereira tem razão. Como quando afirmou que seguramente as coisas mudarão. Que amanhã (que é hoje) haverá menos medo. Traduzindo para os meus termos: Se isso não é mais democracia, o que será mais democracia?
4. Portugal continua a mudar. Entre os jovens com menos de trinta anos, o voto maioritário foi no Sim. São boas notícias para próximos combates.
A Leitora, no seu infinito particular (XLV)
Nota de rodapé
It´s so hard to tell who’s going to love you the best. Pois. Eu não dizia? Mas agora descansa. Só isso.
Psicopatologia da vida quotidiana # 22
O que é cansativo nas reuniões e na política das reuniões é que muitas vezes é difícil distinguir a estratégia refinada da mais pura estupidez e obtusidade. Dir-se-á que para a resposta a dar, isso é irrelevante. Mas não é. Porque a estupidez ainda pode ser ensinada — enfim, difícil, mas pode... A estratégia refinada só pode ser duramente combatida.
Bob and Joan
Não, não é Bob Dylan e Joan Baez, mas Karen Dalton e Richard Tucker. Mas os tempos reconhecem-se. Não sei se entre Karen e Richard houve algo de semelhante ao que houve entre Bob e Joan. Pouco interessa, porque é impossível olhar uma imagem destas sem vermos à transparência os ícones e o tempo que lhes coube.
Dylan e Baez. Como facilmente se adivinha, o único problema que os atravessou foi o serem Dylan e Baez e não tanto Bob e Joan. Mas também isso, sobre ser de muitas épocas e dos seus ícones, foi particularmente verdadeiro daqueles anos. É também essa melancolia que está na voz de Karen Dalton. Aquela ponta de infelicidade de ter vivido tempos interessantes.
PS: a imagem é da contra-capa do booklet. Na contra-capa do disco, a preto e branco, pequena fotografia de uma actuação no Café What?, em Fevereiro de 1961: Fred Neil, Karen Dalton e... Bob Dylan, de harmónica e colete. Estritamente para fãs, há que comprar o disco...
Karen Dalton
Nunca tinha ouvido falar de Karen Dalton. Mas o Carlos Fortes encomendou-o — se finalmente leres o blog, já ficas a saber disto... —, o Alberto deu-mo a ouvir e a meio da primeira faixa eu disse logo: ou levo-o agora, ou encomenda-me outro para mim. Tiveste que esperar mais oito dias, já sabes porquê...
O acontecimento é de 1969, a senhora morreu em 1996. Às primeiras notas é Billie Holliday, mas às segundas já é só ela e num lugar de voz único.
Por acaso também gosto do título, tão anos 60-70, tão inícios do século XXI. Mas isso é só uma nota de rodapé.
Como um tapete todo sujo # 3. Casa
Só se sabe o que é uma casa quando fechamos a porta e estamos sós. O seu grau de limpeza, a arrumação, a abertura à luz, as coisas que estão no frigorífico e na despensa, os toalhões de banho, os jornais e os livros, tudo o que faz uma casa viva. Só se sabe o quanto uma casa é nossa quando fomos nós a fazer essas escolhas.
Ele tinha uma casa e Ela tinha uma casa. E em cada uma dessas casas havia outra pessoa que tinha escolhido com cada um deles essa casa. Ele tinha uma casa que era de ambos e Ela tinha uma casa que era de ambos. Mas os ambos não eram eles. Ela dizia: isto é um amor sem eira nem beira. Ele marcava os hotéis, sempre diferentes. Ela perguntava: como seria a nossa casa? Mas não esperava resposta. Ambos sabiam que não há resposta antecipada para isso. É como dançar. O que cada um é capaz, não se soma ao que o outro é capaz. Também nunca dançaram juntos.
Anteriores: 1. Epígrafe; 2. Rodar;
IVG
Parece-me que o debate de ontem, no Prós e Contras, mostrou que a estratégia política maioritariamente seguida pelo Sim provou estar certa. O enfoque na pena, na humilhação das mulheres, na possibilidade da prisão, colheu. Dir-se-á que a pergunta do referendo é sobre isso mesmo, e é. Mas o debate poderia ser também sobre a autonomia individual das mulheres, e foi-o menos. Mas é precisamente, tudo o indica, por ser menos sobre isso, isto é, por os argumentos do Sim terem evitado as questões mais “radicais”, que essa autonomia vai ser concedida juntamente com a despenalização. Poderíamos dizer que são misteriosos os caminhos da política, se não estivéssemos fartos de saber que não há mistério nenhum nisto.
Do debate de ontem retiro quatro notas:
1. Portugal mudou. Numa intervenção telegráfica, o obstetra Miguel Oliveira da Silva fez notar ironicamente que de repente se tinha formado um enorme consenso sobre a necessidade do planeamento familiar e da contracepção, e que já não se ouviam as vozes de outros anos condenando tudo isso e mais ainda os dispositivos intra-uterinos e a pílula do dia seguinte. Sabemos bem quem eram os destinatários da ironia de Miguel Oliveira da Silva. Eles existem ainda. Mas o seu desaparecimento da cena pública dá a medida de quanto as coisas mudaram. Esse foi o trabalho do Estado: discreto, nem sempre eficiente, mas apesar de tudo efectivo. Um dia ainda se haverá de contar a história dessa heroicidade silenciosa que foi a de enfermeiras e médicas do planeamento familiar em meios religiosa e culturalmente hostis.
2. A proposta do Não de uma suspensão da pena caso ganhem foi bem desmontada como contrariando o próprio dispositivo do referendo, se vinculativo, como absurdo jurídico e como incapaz de chegar às mulheres a quem se destina. Mas o facto de ela ter surgido, e sem ser necessário descontar o seu oportunismo político, é também uma prova irrefutável de que a situação de criminalização da mulher é doravante insustentável. Também aqui, Portugal mudou.
3. Maria do Rosário Carneiro esteve bem na defesa da sua posição. Mas alguém do Sim lhe deveria ter repetido o discurso de Vital Moreira: a vitória do Sim não a impedirá de continuar a pesar o conflito de interesses entre mulher e feto da maneira que o faz, dando preponderância ao feto. Maria do Rosário Carneiro poderá continuar a agir de acordo com a sua consciência. Mas a vitória do Não impedirá quem pesa esse conflito de maneira diferente de agir de acordo com a sua consciência. E Maria do Rosário Carneiro foi democrática ao reconhecer a legitimidade de outros pesarem esse conflito de maneira diversa.
4. Alguém do Sim, lá pelos meandros do debate, deveria ter levantado a questão de o aborto ser também um último recurso contra uma natureza que é cega e implacável. Não há abortos apenas de jovens imaturas e desprevenidas e de mulheres pobres e mal informadas. Há aborto também de mulheres em quem pontualmente a contracepção falhou, porque estas coisas não são de todo infalíveis. Essa percentagem não é negligenciável. As “clínicas” que de portas mais ou menos abertas, de uma forma sanitária mas relativamente cara, fazem entre nós a IVG, têm por clientes essas mulheres: mulheres responsáveis, autónomas, esmagadoramente acompanhadas pelos maridos ou companheiros, a quem a natureza traiu por culpa que não lhes é imputável. A condição humana tem também estes contornos. É certo que o referendo não é para estas mulheres ou para estes casais, que têm recursos e informação para contornar a lei existente, mas é também para as razões destas mulheres e desses casais.
Como um tapete todo sujo # 2. Rodar
Ele lembra-se de Ela ter pedido. Porque o guindaste rodou rápido, e Ele pensou mais uma vez como era estranho que uma máquina que pesava tantas toneladas se pudesse mover com aquela graciosidade quase felina. A voz dela também fora graciosa. E terna. Com a ironia que se impunha. Devias arranjar uma história com a nossa lista. Claro que Ele disse que sim. E pensou que sim. Disse que daí a algum tempo. E pensou que seria de facto daí a algum tempo. Quando talvez já tudo tivesse terminado. Mas essa parte não disse. Não era preciso, não adiantaria nada. Mas Ele lembra-se de Ela ter pedido. Estava a olhar pela janela, havia construções em frente ao Hotel, Ele queria apenas saber do trânsito, se ainda estavam a tempo de se anteciparem à hora de ponta. O guindaste rodou como se ao comando da voz dela. Ele disse que sim. E pensou que sim. Agora que tudo acabou, é tempo de Ele começar a história. Folhas secas, disse Ela de uma outra vez. Mas Ele pensa que talvez não venha a ser necessário contar essa parte da história.
Anteriores: 1. Epígrafe
Multiplex 24
- A guerra, já o sabíamos, não é apenas o campo de batalha, as armas, as estratégias militares, o sacrifício.
- Imaginas que eu não sabia nada deste episódio, Luís? Mas assim percebe-se que há certas coisas que não são apenas de agora. Quer dizer, percebe-se que tal como agora, no Iraque, a guerra tem várias frentes, e apenas uma é militar. Não é só por causa dos media e da globalização, é porque é assim.
- E já viste esta necessidade de heróis? E como há uma retórica do não-herói que é outra forma de heroísmo? Parece que não temos saída, que a necessidade de ilusão nos está colada à consciência.
- Talvez. Mas de qualquer modo não era preciso tanto sublinhado. A voz off dá cabo do filme, Luís. O que até é estranho num homem que costuma ser seco e limpamente clássico.
- É a guerra. A de ontem e a de hoje. Não é a Portugal que chegam os aviões com os soldados americanos mortos no Iraque. O que o filme faz é falar ostensivamente desse heroísmo inútil, politicamente inútil. A urgência disso atropela alguma estética. Não é desculpa, mas os aviões continuam a chegar com os soldados mortos e o poder político já começou a mudar, é bom que não pare de mudar.
- Resta saber o que é que na política vai mudar com a mudança do poder...
- Pois...
Como um tapete todo sujo # 1. Epígrafe
Não se pode enumerar tudo; uma vida não se pode simplesmente desdobrar desse modo. Se desdobrar a sua vida, pode sacudi-la como um tapete todo sujo, depois havia também de agradecer se eu lha sacudisse na cara. E seria mais ou menos assim se alguém desdobrasse diante de si a sua vida, fosse ela qual fosse. Teria depois um ataque de tosse e deitar-se-ia logo a fugir passado pouco tempo.
Ente os mil bichos, só o homem é um escutador de silêncios.
Susana, ou pensar
Tenho passado uma parte das aulas a fazer com as alunas a tábua dos argumentos do não e do sim para o próximo referendo. Trabalho minucioso, ponderado, e que permite perceber até que ponto cada um dos argumentos mais sólidos envolve toda uma postura sobre a existência, o político e o outro.
Desde a primeira hora, estabelecemos como metodologia que os comentários e as reflexões sobre cada um dos argumentos deveriam conter uma dose necessária de empiria: como é que isso se aplica na minha vida ou na vida que acontece à minha volta. E é espantoso o rol de histórias que nos mostram que se o neo-realismo morreu como literatura não foi porque a realidade “neo-realista” tenha desaparecido.
Nesta altura, já é claro que a maioria das alunas votará Sim, mas que os seus pais e outros adultos do lugar votarão tendencialmente Não.
E também já é claro que a Susana (nome fictício) mantém firme a sua intenção de votar Não, embora por razões bem diferentes das razões que tinha no início. A Susana disse que pela primeira vez tinha aprendido a pensar. A “pensar mesmo”, foi o que ela disse. E disse que o seu voto já não era épico, mas triste. Consciente, mas triste. E que contraía especiais responsabilidades para o depois do referendo, qualquer que fosse o resultado.
Eu votarei Sim, como já aqui disse, mas o meu grau de tristeza não é diferente do da Susana. Eu é que já quase me tinha esquecido disso, no afã dos argumentos mais empolados ou mais abstractamente filosóficos.
A Leitora, no seu infinito particular (XLIV)
Gosto de cada uma das coisas que ele é. Gosto da voz. Gosto do chapéu. Gosto do actor. Gosto do poeta. Gosto do boémio. Gosto do marido. Gosto dos óculos. Gosto do compositor. Gosto do rebelde. Gosto do longínquo. Gosto do olhar. Gosto do ternurento. Gosto do cabelo. Gosto do quase contista. Gosto do marginal. Gosto do desconhecido. Só tenho alguns problemas com a junção disso tudo nos seus álbuns. Esse pequeno problema. Mesmo num grande triplo como este. Mas enfim, é só um problema. Nada de grave. Até porque gosto de cada uma das coisas que ele é.