Driving Miss Laura # 22
30 de Junho, terça-feira. 21h15, Coimbra.
Auditório do Conselho Distrital de Coimbra da Ordem dos Advogados
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Futurível
Fora os gatos e a poesia # 5
No que depender da boa vontade dum
filho da puta que não existe chamado
Deus
posso esquecer as tantas caras sem rosto aqui
neste inferno sem beira ou piscina de nome
subúrbio.
.........................................[Luis Maffei, Telefunken, p. 27]
Enunciação de um deus remanescente ou das consequências bem menos remanescentes do capital — tanto dá. Somado tudo pelo inverso, para que haja algum resultado palpável, apura-se que o destino foi substituído pela benevolência de um tipo que não existe. Para dizer a verdade, eu já desconfiava. Mas a poesia, quando toca a evidência gelada, queima de forma mais definitiva.
Fora os gatos e a poesia # 4
Dos quatro se diz o seu silêncio. Que sabe.
Fora os gatos e a poesia # 3
A casa tinha cães e gatos em abundância e soberana indiferença. Talvez já praticassem divisão do trabalho, porque eram sempre os mesmos que vinham inspeccionar as visitas mal entravam no quintal. Gente sem interesse, a julgar pela rapidez com que os animais de distraíam com as coisas de sempre. Uma vez houve uma reunião importante. Queriam designá-lo líder. Não o conheciam por inteiro, mas já era bom que comungassem da mesma intuição sobre as suas qualidades. Os discursos sucediam-se, ele ouvia levemente distraído. Um gato veio-se-lhe aninhar no colo e ali ficou. Quando começou a ronronar, o que discursava interrompeu-se e olhou os outros. Todos concordaram em silêncio. Tinha sido grande o engano, disseram depois entre si. Aquele que dá paz aos bichos não serve para comandar as guerras dos homens. Ninguém duvidou da sentença. Houve mais reuniões, ele nunca voltou.
Fora os gatos e a poesia # 2
SEGUNDA
Assim: só o pequeno
barulho da cidade, longe
como se livre eu estivesse,
as gatas e
eu.
Existo, agora, existo neste
lugar de ver só
ver e pouco ser diante de
seres que a vida
sabem: uma come, a
outra bebe, ambas voltam ao
sofá da sala não porque estou
perto mas porque sou
pouco, faço-lhes pouco
mal, faço-lhes
ainda bem
pouco.
Assim, só as pequenas
vidas que me
ensinam o menos pois
me dizem
nada, eu e a
vista, eu desaparecido de olhar
apenas, eu
com as gatas e sem outro
mundo que me mande
olhos ou me dê vestígios, elas e o
quase
silêncio desta humilde e
própria
segunda-feira.
Luis Maffei, Telefunken, Deriva: 2009, pp. 22-23
Companhia nocturna # 61
Antes fosse
Volta e meia, lá vem a frase: isso é de filme ou de romance. Ao que eu digo sempre: depende. Basicamente depende disto: se é coisa feliz, pode ser que sim, que seja só de filme ou de romance. Como se sabe, o real tem alguma felicidade, mas a felicidade não tem história; quando a ficção lá chega não há nada para contar, vai daí inventa-se — quase sempre mal. Mas se é coisa de drama ou tragédia, o real é sempre a maior surpresa. Os humanos nunca inventariam tamanha dor nem tão abundantes e estranhas loucuras para lidar com ela. Simplesmente isso existe, e os humanos não têm outro remédio senão tentar incorporá-lo no seu frágil sistema imunitário cultural. Isso é de filme ou de romance? Antes fosse, antes fosse...
Companhia nocturna # 60
O intervalo
Por vezes a vida dispõe-se como um intervalo dentro da própria vida. O trabalho conduz-nos como bois da paciência. É só durante o sono — um sonho talvez? — que assomamos a uma varanda alta, ruas quietas aos nossos pés, um horizonte aberto face-a-face. É um amanhecer fresco num dia sem tempo. Outro tipo de intervalo, perdemo-lo quando a realidade amanhece deveras.
Nem gatos, nem poesia, nem companhia nocturna
apenas exames, exames, exames — e a chuva, vá lá.
Mas isto é sobre quê, exactamente?
Adiante.
Companhia nocturna # 59
Claro que poderia ser outra a música, mas quão certa esta pata lenta, animal semelhante e todavia calmamente diferente. Estranha guitarra, e nada mais que guitarra. Absolutamente certa com tudo o que EPC não escreveu: esse modo desarmante de acabar definitivamente com o choro de não lhe acontecer a poesia ou o romance. Poucos dobraram esse ressentimento surdo, poucos alcançaram essa soberana liberdade.
Fora os gatos e a poesia # 1
O mundo é um mundo de lugares. A lucidez — em si mesma uma forma de atenção e de acolhimento —, manda sempre perguntar de que lugar nos falam. Luís Maffei fala-nos de um lugar onde a tecnologia mais extrema não habita. Um lugar onde se dialoga com alguns clássicos e outros bem mais contemporâneos, mas sem que seja importante a autoridade, o grupo, a poética (oh, a poética...), a posteridade (oh, etc...) — em tudo isso, releva apenas o que mais nos assenta no mundo, sem a ele sucumbirmos. Um lugar que não é arcádia epigonal nem melancolia auto-contemplativa — sintoniza-se um telefunken para ouvir do mundo, com a vantagem de um telefunken ser suficientemente tecnológico para sabermos que ouvimos “demais”, e suficientemente obsoleto para sabermos que o simulacro já se mudou para outros artefactos. Um lugar onde há gatos, e os versos valem menos que os gatos, e a quietude felina admoesta a mão que escreve (melhor sentir a “prosa” de “pêlos sem metáfora ou mentira”). Um lugar onde há pessoas, crianças, amores, o deserto disso e a presença obscura disso também. Um lugar estranhamento parecido com o meu. Fora os gatos que não tenho, mas que poderia. E a poesia que nunca tive, nem poderia.
Companhia nocturna # 58
Lugar de estudo # 5
A coisa material. Corpo. Mas também o ar que o atravessa. A coisa vazia que move os olhos que lêem.
Lugar de Estudo # 4
Na cave, ao abrigo do calor.
Próximo da terra. Com notícias suficientes da luz.
Driving Miss Laura # 21
Quinta-feira, 18 de Junho, TVI, As tardes da Júlia, entre as 14.12h e as 14.42h (dizem eles...), Laura Ferreira dos Santos sobre directivas antecipadas.
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Companhia nocturna # 57 / Lugar de estudo # 3
Bastidores
O mundo é grande, já o sabemos. Não apenas no sentido de uma pluralidade interessante, mas também no de uma coexistência incontornável do mais interessante com o completamente desinteressante. Mas avancemos, que o ponto é outro.
Pelas indicações da RTP1 quando fez o convite, a Laura deveria entrar em directo por volta do meio-dia. Não entrou. Percalços próprios dos directos, só por volta das 12.40h começou a conversa sobre directivas antecipadas. Ao meio-dia, quando lá fui espreitar, estava a falar a Alexandra Solnado. Pelo que disseram à Laura nos bastidores, a Alexandra Solnado paga à RTP1 para ir ao programa debitar a sua auto-ajuda. Parece que o mesmo acontece com outras espécies aparentadas de auto-ajuda astrológica e por aí fora.
Não deixa de ser interessante: a fraude de uma publicidade completamente encapotada, que faz passar por reconhecimento público a compra desse mesmo reconhecimento; e o facto de o desinteressante ter de comprar a peso de ouro o simulacro do seu interesse. Claro que o interesse do “grande público” é real, convém não esquecê-lo, isto é apenas a simples regra de mercado: ninguém oferece tanta audiência como as televisões generalistas, e o que há mais por aí é gente a tentar auto-ajudar-nos a troco de uns parcos cobres. Os tempos são maus, é certo, mas o esforço que se tem de despender para que eles assim continuem faz pensar.
PS: dito isto, que fique claro que não ponho de todo em causa os testemunhos daqueles que dizem ter sido genuinamente ajudados pela Alexandra Solnado ou suas similares. A ignorância imensa das pessoas acerca dos seus próprios processos psicológicos mais básicos grita humanamente por ajuda quando as coisas apertam um pouco mais. Para quem não sabia ler, chegar a soletrar as “gordas” é uma conquista, e alguns equívocos silábicos não afectarão grandemente o sentido geral da coisa. De pouco vale esgrimir contra os “mestres” da auto-ajuda. “Alfabetizar” leva mais tempo, é menos espectacular na praça pública (de facto nem lá aparece), mas é o único caminho. Caminho sem fim, eu sei, mas essa é toda uma outra questão.
Aquele órgão só de professores doutores por extenso # 12
Quando se anda em círculos, já não somos nós que mandamos, mas a situação em que nos deixámos meter.
Companhia nocturna # 55
Persepolis queria ser verde
Subscrevo o Rui Bebiano e o Pamplinas. E agradeço o verdadeiro serviço público que o Jugular tem feito sobre o pós-eleições iranianas.
O sindicato das frases, a ordem dos argumentos e o conselho superior das estruturas lógicas # 2
Passou o camião do lixo. Respirar fundo. Continuar ainda.
Driving Miss Laura # 20
Segunda-feira, 15 de Junho, RTP 1, Praça da Alegria, por volta das 11.45h, Laura Ferreira dos Santos e Daniel Serrão sobre directivas antecipadas.
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Lugar de estudo # 2
Aquele momento em que falar de outrem é a forma mais exacta de falarmos de nós mesmos. Não que o assunto sejamos nós mesmos, mas exactamente por pensarmos que estamos a falar de algo completamente distinto de nós mesmos.
Lugar de estudo # 1
Estávamos em estudo. Nele entrava
com vagares de apuro, a terra viva.
Trazia, tensa, a indefectível graça
dos animais. Trazia
gaivotas , rolas e a maré alta
duma respiração que as retinha.
E trazia um silêncio que empolgava
a abóbada celeste. Na retina
o azul estendia uma doçura larga
de onde, objectivos, os pinhais surdiam,
para reterem sobre a sua massa
o andamento tangencial da vista.
E o estudo subia. Tinha falta.
O último padrão de nostalgia
sentara tenda dentro da palavra
e era dela que também subia.
Fernando Echevarría, Lugar de Estudo, Afrontamento, 2009, p. 44
Driving Miss Laura # 19
Nas livrarias a partir de hoje.
Como complemento, já está online a participação da autora na Grande Reportagem-Sic sobre directivas antecipadas.
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O que há para medir
Bach mais logo. Ou talvez não seja prudente. A beleza exacta retira-nos do lugar, e o que é um bem para a nossa estreita vida é um obstáculo para o trabalho de que essa vida subsiste. O problema não é David Mourão-Ferreira (um exemplo), mas este ensaio que não pode ser apenas a contemplação dos seus ritmos, imagens e histórias esparsas (o mesmo exemplo). Quase nunca o problema é o autor e sua obra, porque deles sabemos tudo o que é preciso saber quando não nos perguntam e vamos apenas em companhia. O problema é quando nos perguntam pelo relatório e nos achamos na pele do agrimensor: o que há para medir é sempre maior do que o caminho que percorremos.
Como se compra?
O livro de Menéndez Salmón não vinha precedido de nenhuma aura particular, teve de ser a edição a criá-la. Havia uma cinta (já não a tenho, isso vai logo para o lixo) que dizia qualquer coisa de ter sido considerado o melhor romance publicado em Espanha em 2007. Ok. Positivo ou negativo, indiferente não.
Badana da capa. O rosto tem qualquer coisa de seco e determinado, pouca ou nenhuma pose: positivo. Licenciado em filosofia, 38 anos. Em conjugação com o rosto, talvez positivo.
Contra-capa. Corpo... horror... amor... nazismo... Mal... Interessa-me, mas pode estar do lado da “pornografia” e do chamariz comercial da coisa. Badana da contra-capa. Elogio de Vila-Matas em termos que me interessam: “Um romance duro, elegante, belíssimo. A epopeia glauca de uma anomalia.” Epopeia glauca de uma anomalia? Se for verdade, excelente.
Depois o lance típico da voz original que é original por se fundar na essência límpida do comum: “A Ofensa não nasce desse ‘costumbrismo’ sentimental e grosseiro que abunda no actual romance espanhol; nem tão pouco dessa narrativa pop e chispante que se julga altamente provocativa. Nada disso. A escrita de Menéndez Salmón surge de onde sempre surgiu a melhor literatura: da necessidade de responder às grandes perguntas sobre a vida e o mundo em que vivemos.” Certo, certo. Mas também se podia pôr ao “contrário” e arranjar aí motivo de elogio. Em todo o caso, não está mal como recomendação, sobretudo se lido como desenvolvimento das afirmações sucintas de Vila-Matas.
Epígrafe excelente. Ler aqui e ali: coisa enxuta, uma observação inteligente, promete. Cesto de compras.
Ricardo Menéndez Salmón
Um autor que seguirei. Tem uma obsessão, o que é o ponto de partida dos grandes autores (pelo menos, dos que me interessam). Tem formas várias de lidar com ela, que é aquilo que transforma uma potencial limitação numa imensa possibilidade de alargamento e aprofundamento (só neste curto relato, cada uma das suas três partes tem uma atmosfera claramente diferenciada). Essa obsessão é o Mal — o que me interessa particularmente e nunca perde actualidade.
Trio
1
O mistério da noite eleitoral foi a comoção de Paulo Portas. Sempre lhe apanhei aquele sorriso incontrolável de pose cínica, de um teatro maior que a sua pessoa. Agora o homem comoveu-se em directo e não sei como interpretar: kitsch narcísico (sou tão bom, não sou? salvei o partido da inexistência, tenho de ser mesmo bom), respirar fundo (a sua sobrevivência política sempre está assegurada mais uns meses), ou densidade da personagem?
2
O sinal da noite foi o facies de Sócrates. Não o que disse, que foi o expectável em todos os aspectos, mas o seu facies, de que desapareceu a arrogância e onde não entrou a derrota. De Manuela Ferreira Leite sabe-se tudo, não será mais do que isto nem menos do que isto. De Sócrates apenas se conhece o governante escudado na maioria absoluta. O animal feroz passa por ser um mito urbano, ou traço defeituoso na versão daqueles que já só o entendem na caricatura de querido líder. Mas foi precisamente esse animal feroz quem compareceu no Altis. Agustina faria dele uma nova versão de "os meninos de oiro", naquele sentido em que o excitante romanesco de uma personagem determinada e até temerária se sobrepõe à tecnicidade das ponderações desapaixonadas do bem público. O excitante romanesco é mais profundamente político porque aparenta não se conformar ao real. Os que acham que Sócrates só funciona na irrealidade do querido líder estão a subestimar o seu instinto político. Desse ponto de vista, os próximos meses prometem ser dos mais interessantes da vida política nacional desde há muito. Mas não se preocupem, já há cronistas do reino qb, e esta nota leva apenas o tempo de chegar o camião do lixo e eu recomeçar os afazeres.
3
Miguel Portas, Marisa Matias e Rui Tavares — nem todos os trios de que gosto são de jazz.
Por esta ordem
Espero que o BE seja a terceira força política nestas eleições, com dois deputados eleitos e muito próximo do terceiro.
Espero que o PS vença com três a quatro pontos percentuais de vantagem sobre o PSD.
Espero que o CDS não eleja nenhum deputado.
Certeza: continuará muito ainda por fazer. Os resultados na Holanda são a prova disso: nenhum adquirido civilizacional é realmente um adquirido.
Torga
As comunicações do colóquio internacional Miguel Torga, organizado pela Gulbenkian em Paris (de que falei aqui e dias seguintes). Relendo, está lá o bastante para pensar Portugal e a Europa, e a Europa e o mundo (e Torga, claro — claro...).
O tempo de um discurso e de um pensamento assim não é (não será nunca?) o tempo de um discurso e de um pensamento (?) em campanha eleitoral. Mas todas as guerras têm várias frentes, algumas delas aparentemente invisíveis. É aí que estou. Mas votarei, claro — claro...
Uma terra estrangeira # 3
O escravo não tem terra, apenas o jugo da escravidão. O senhor não tem terra, apenas a ilusão do senhorio.
O escravo liberta-se, torna-se humano livre. O senhor liberta-se, torna-se humano livre.
Para os humanos livres toda a terra é estrangeira. A terra só pertence à terra. Nós, os hóspedes.
A hospitalidade incalculável da terra. Devíamos aprender. Calculamos demasiado. Devíamos aprender.
Esta terra estrangeira # 2
As fontes convocadas pela nota final revelam uma preocupação historiográfica que me parece fundamental (e não posso estar mais de acordo com o elogio ao livro organizado por Ana Barradas) e uma urgência ética que subscrevo. Contudo, uma coisa é a historiografia, a veracidade da memória (com o que ela comporta de factual e de contextualização não necessariamente desculpabilizante), outra coisa é o que fazermos agora com a história que nos legaram. Ou seja, se concordo que a nossa auto-consciência histórica tem claras dificuldades em falar do nosso período colonial enquanto colonial — lembro sempre a estupefacção dos meus alunos de cultura portuguesa quando chegávamos aos textos do livro de Ana Barradas, estupefacção que contudo sabia o suficiente do colonialismo britânico, por exemplo —, já vejo mal quais as vantagens de, aqui e agora, colocar em cena uma maldição que parece esgotar-se no próprio gesto de amaldiçoar. E não o digo só por nós, portugueses — não enjeito o pecado original que possa existir em pertencer-se a um determinado povo ou nação —, mas também por esse homem negro que amaldiçoa, assim duplamente encerrado na sua escravatura e na sem saída de uma maldição que, por mais justificada que seja, apenas perpetua o ciclo da destruição.
Um punhado de terra é um texto ímpar na forma como mostra uma situação que foi destruída, mas termina numa invocação apocalíptica que se quer libelo acusatório. Ora, jamais voltaremos aos tempos anteriores a essa destruição — e isso o livro sabe-o bem. Mas, também, jamais esse homem negro e esse homem branco poderão deixar de existir um para o outro. Nessa perspectiva, a tarefa pós-colonial por excelência não será inventar um presente para lá da justiça de amaldiçoar e da justa culpa de ser amaldiçoado?
Companhia nocturna # 53
Esta terra estrangeira # 1
Começo pela nota final, porque ela dá com grande economia de meios uma descrição fiel deste projecto:
Praticamente todos os factos que descrevo neste monólogo são verídicos; junto-os, mesmo se não aconteceram todos no mesmo século. Encontrei-os em diversos lugares — em Gomes Eanes de Zurara, em Bartolomeu de las Casas, no International Slavery Museum of Liverpool — mas um livro corajoso, organizado por Ana Barradas, serviu-me de fonte principal: Ministros da Noite. Livro Negro da expansão portuguesa (Antígona, 1992).
Um monólogo pede um trabalho de ritmos, texturas, um fluxo de ideias e imagens. Sem sacrificar essas regras, e sem esquecer a exigência ética que em primeiro lugar me levou a escrever, procurei que este texto fosse o mais próximo possível dos factos registados. Apresentar os ecos que sobreviveram até nós e ser o menos possível — ou mesmo nada — enquanto dramaturgo.
Afastemos o primeiro perigo de um projecto deste tipo: as boas intenções, a exigência ética, não impedem aqui o pleno conseguimento estilístico da obra. Um punhado de terra é um monólogo de uma qualidade sem par na nossa dramaturgia mais recente. O trabalho de ritmos e texturas cria um ambiente de queixume poético que acentua a crueldade das histórias, cuja arquitectura se ancora num fluxo de ideias e imagens rigorosamente controlado. O que quer que Pedro Eiras possa teoricamente pensar acerca de o ser “nada dramaturgo” permitir uma maior fidelidade aos “ecos que sobreviveram até nós”, Um punhado de terra desmente: é precisamente pela qualidade do trabalho dramatúrgico que essa fidelidade aparece e apaga o que de ostensivamente literário pode existir nas técnicas próprias do monólogo.