Desta vez, no meu sonho, o Eduardo Pitta estava incumbido do pesadelo de iniciar um roteiro gastronómico vegetariano...
Sobe-se às Duas Torres por estrada serpenteando entre árvores até à casa térrea com vista ampla sobre a quinta. Sala com decoração minimal, serviço presto. Primeiro, umas boas-vindas doutrinais. Somos gentilmente informados que tudo o que é aqui confeccionado é de produção biológica, que o fogão é a lenha e que até as toalhas, guardanapos e fardas do pessoal são de tecido biológico, que nos asseguram ser excelente para a respiração da pele humana, ainda que ao toque se tenham revelado diáfanos, como o seu quê de virtual, o que desgostou, devo confessar, o meu lado conservador: nada como a rugosidade do linho ou do algodão de gramagem consistente.
Duas Torres não é uma casa da linha dura vegetariana, no que diz respeito a uma certa permissividade na presença e até na mistura de ingredientes. A sua preocupação maior é estar em sintonia com os ritmos naturais da terra, isto é, do lugar. Asseguram-nos que isso é uma outra forma de cosmopolitismo, menos preocupada em alardear as benesses da globalização, que não negam, do que em usufruir os sabores singulares de cada dádiva do tugúrio. A Carta é por isso sazonal, de acordo com a produção da quinta e das suas congéneres, o que se compreende e até se pode aceitar. Aceita-se menos o seu carácter tão restritivo que se torna perigosamente autoritário: impossibilidade de escolha pela imposição do prato único. À minha manifestação silenciosa de desagrado respondeu presto um empregado talvez versado em teoria da literatura, argumentando que certas poéticas alimentares buscam tão subtis pontos de equilíbrio ou de passagem, que embora parecendo que tal se possa obter de múltiplas maneiras, há que buscar a única que a possa assegurar em toda a sua discreta profundidade. Sem mostrar convencimento, mas igualmente sem vontade para qualquer disputa estéril que não mais faria do que acicatar a fome, passei à consulta da Carta. Ajuíze o leitor esta composição. Entradas de queijo fresco de cabra, quadrados de pão de mistura, e salada singela: alface, tomate e cebolinho. No capítulo das sopas, apenas de ervilhas. Prato único: beringela assada no forno com recheio de lentilhas e cortes de feijão verde, seitan salteado com brócolos em óleo de girassol, e arroz integral cozido a vapor e passado pelo forno. Sobremesas, apenas duas: maçã cozida com passas ou sonho de pêra e ébano. Para beber, vinho tinto biológico da quinta, água do veio da mina ou chá de cidreira.
Se para tanto é preciso uma Carta, eis o que nem vale discretear. Ao menos estava em português escorreito e papel visivelmente reciclado.
Ao paladar, o queijo fresco de cabra revelou-se somítico de sal mas encorpado q.b., o pão de mistura regular, e a salada deveras singela e rural, com destaque para o cebolinho, quase doce como é desiderato de todo o bom selvagem. A sopa de ervilhas, ligeira e perfumada, mereceria um adjectivo eciano a condizer. A beringela assada não suportou o recheio das lentilhas, empapando-se ambas no feijão verde que, contumaz, venceu uma contenda que não devia. O seitan mostrou um carácter anémico, apesar dos brócolos esforçados e do sainete do girassol. Já o arroz foi uma surpresa agradável, beneficiando de um forno em ponto certo para lhe devolver a sua natureza de cereal estaladiço e brincalhão. A maçã cozida com passas foi comovente de naturalidade e graça, e deixou um travo floral todo ele campestre e aberto. O enigmático sonho de pêra e ébano era afinal pêra cozida com canela e melaço de cana, talvez mais interessante se não se tivesse anunciado com tanta pompa e circunstância. Provou-se o vinho tinto biológico da quinta, que definitivamente precisava de outras iguarias na mesa para que dele se pudesse aquilatar, bebeu-se a água cristalina, e tudo se aconchegou com o chá de cidreira.
Foi já descendo para a civilização que me ocorreu que não sei de onde vem o nome que a casa ostenta. Torres não vi nenhuma, nem vestígios de tal. Mas talvez não valha a pena voltar atrás para perguntar...
Sobe-se às Duas Torres por estrada serpenteando entre árvores até à casa térrea com vista ampla sobre a quinta. Sala com decoração minimal, serviço presto. Primeiro, umas boas-vindas doutrinais. Somos gentilmente informados que tudo o que é aqui confeccionado é de produção biológica, que o fogão é a lenha e que até as toalhas, guardanapos e fardas do pessoal são de tecido biológico, que nos asseguram ser excelente para a respiração da pele humana, ainda que ao toque se tenham revelado diáfanos, como o seu quê de virtual, o que desgostou, devo confessar, o meu lado conservador: nada como a rugosidade do linho ou do algodão de gramagem consistente.
Duas Torres não é uma casa da linha dura vegetariana, no que diz respeito a uma certa permissividade na presença e até na mistura de ingredientes. A sua preocupação maior é estar em sintonia com os ritmos naturais da terra, isto é, do lugar. Asseguram-nos que isso é uma outra forma de cosmopolitismo, menos preocupada em alardear as benesses da globalização, que não negam, do que em usufruir os sabores singulares de cada dádiva do tugúrio. A Carta é por isso sazonal, de acordo com a produção da quinta e das suas congéneres, o que se compreende e até se pode aceitar. Aceita-se menos o seu carácter tão restritivo que se torna perigosamente autoritário: impossibilidade de escolha pela imposição do prato único. À minha manifestação silenciosa de desagrado respondeu presto um empregado talvez versado em teoria da literatura, argumentando que certas poéticas alimentares buscam tão subtis pontos de equilíbrio ou de passagem, que embora parecendo que tal se possa obter de múltiplas maneiras, há que buscar a única que a possa assegurar em toda a sua discreta profundidade. Sem mostrar convencimento, mas igualmente sem vontade para qualquer disputa estéril que não mais faria do que acicatar a fome, passei à consulta da Carta. Ajuíze o leitor esta composição. Entradas de queijo fresco de cabra, quadrados de pão de mistura, e salada singela: alface, tomate e cebolinho. No capítulo das sopas, apenas de ervilhas. Prato único: beringela assada no forno com recheio de lentilhas e cortes de feijão verde, seitan salteado com brócolos em óleo de girassol, e arroz integral cozido a vapor e passado pelo forno. Sobremesas, apenas duas: maçã cozida com passas ou sonho de pêra e ébano. Para beber, vinho tinto biológico da quinta, água do veio da mina ou chá de cidreira.
Se para tanto é preciso uma Carta, eis o que nem vale discretear. Ao menos estava em português escorreito e papel visivelmente reciclado.
Ao paladar, o queijo fresco de cabra revelou-se somítico de sal mas encorpado q.b., o pão de mistura regular, e a salada deveras singela e rural, com destaque para o cebolinho, quase doce como é desiderato de todo o bom selvagem. A sopa de ervilhas, ligeira e perfumada, mereceria um adjectivo eciano a condizer. A beringela assada não suportou o recheio das lentilhas, empapando-se ambas no feijão verde que, contumaz, venceu uma contenda que não devia. O seitan mostrou um carácter anémico, apesar dos brócolos esforçados e do sainete do girassol. Já o arroz foi uma surpresa agradável, beneficiando de um forno em ponto certo para lhe devolver a sua natureza de cereal estaladiço e brincalhão. A maçã cozida com passas foi comovente de naturalidade e graça, e deixou um travo floral todo ele campestre e aberto. O enigmático sonho de pêra e ébano era afinal pêra cozida com canela e melaço de cana, talvez mais interessante se não se tivesse anunciado com tanta pompa e circunstância. Provou-se o vinho tinto biológico da quinta, que definitivamente precisava de outras iguarias na mesa para que dele se pudesse aquilatar, bebeu-se a água cristalina, e tudo se aconchegou com o chá de cidreira.
Foi já descendo para a civilização que me ocorreu que não sei de onde vem o nome que a casa ostenta. Torres não vi nenhuma, nem vestígios de tal. Mas talvez não valha a pena voltar atrás para perguntar...
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