Não eram recados para Sócrates, mas algo me diz que os olheiros do PM devem ter escutado com atenção Constança Cunha e Sá, no telejornal da TVI: “Manuela Ferreira Leite provou que é possível ganhar eleições sem prometer nada e sem ter ideias sobre o que fazer”.
E depois, mais à frente: “A sensibilidade social que mostrou não foi só para atenuar a sua imagem de dama de ferro, é uma corrente que existe no seio da social-democracia”.
Assim, de repente, o vazio político do centrão parece estar condenado a entrar numa nova fase, a da sensibilidade austera do social: lágrimas graves sobre dossiers que dizem a impotência das soluções e o gigantismo dos problemas. O que por acaso (é mesmo por acaso, mas já agora aproveito a licença poética), me faz lembrar uns versos de Cesariny: “São criaturas, é verdade, calcule-se, / gente sensível e às vezes boa / mas tão recomplicada, tão bielo-cosida, tão ininteligível / que já conseguem chorar, com certa sinceridade, / lágrimas cem por cento hipócritas.” [louvor e simplificação de álvaro de campos]
A sensibilidade austera do social
Outrora agora
bem, já assentamos que eu não percebo nada disto, que estas coisas valem apenas o que valem e que isso é muito pouco, bla bla bla bla... portanto: com os atrasos devidos à periferia, mais ao deixar andar até um tipo vencer a preguiça e fazer a encomenda, mais a não sei quantas coisas que já são sabidas, bla bla bla bla... declaro: depois dos National, este foi o melhor disco do ano passado... e o outrora agora não se deve ao facto de ser do ano passado e só o ouvir agora, nada disso, mesmo nada disso... refere-se à política, sim, isso mesmo, à política, essa coisa que algumas canções de outrora tinham como preocupação e tema e pensamento...
que não haja equívocos, apesar de hoje serem as eleições no psd # 2
que não haja equívocos, apesar de hoje serem as eleições no psd # 1
Informação gratuita
Não percebo as queixas contra o sequestro do espaço televisivo pela selecção nacional. Ele é o quarto dos jogadores, a comida dos jogadores, as distracções dos jogadores, enfim, um chorrilho de inanidades, dizem os queixosos. Mas eu não os percebo. Nos tempos que há muito tempo correm, queriam o quê? E quando não apanham com estas inanidades, servem-lhes em seu lugar altas iguarias de reflexão, cultura e informação? Mas sobretudo eu não percebo é isto: que faz essa gente em frente aos televisores? Procura motivos de queixa? Se for isso, sempre posso informar, e gratuitamente, que há mais para queixar entre céu e terra do que pode conceber a televisão.
Os conservadores, em música, quando são bons, chamam-se clássicos. Pode ser?
Um desses críticos
Cara Bénédicte Houart
Obrigado por ter deixado falar mais alto a sua faceta maternal e profissional. Tomei boa nota do finistil-gel, suas regras de aplicação e cuidados correlatos. Entrando o verão, creio bem que me será útil.
Mas, por enquanto, o problema não é de comichão. Se problema houvesse, talvez se resumisse a isto: os críticos deviam vir com pequenos manuais de instrução. Pelos menos alguns, que escrevem rapidamente em blogs de manchas impressionísticas. Esses, por exemplo, não têm pele. Quando falam de livros que os arranham, é porque a coisa faz sulcos na alma da inteligibilidade. Mas são críticos esquisitos, quer dizer, têm os seus pressupostos muito perto das suas idiossincrasias todas particulares. Porque a coisa só arranha se antes percebida, ou tendo-se antes dado a perceber. E se arranha é porque levanta a pele do percebido para outros entendimentos. Coisa que, quando acontece, esses críticos consideram a grande vantagem de ler.
Agradecendo ter-me arranhado
Luís Mourão, um desses críticos
Urgente
Caro Luís Mourão,
Perdoe esta imprevisível e intempestiva irrupção na sua caixa do correio de uma sua algo desconhecida. A verdade é que, tendo acedido e passeado pelo seu blogue, ainda para mais chamado "manchas", fiquei extremamente preocupada consigo (se me permite - a preocupação e o tratamento). Segundo percebi, anda lendo livros que o arranham e lhe causam, consequentemente julgo eu, comichão. A minha faceta maternal e profissional falou mais alto, de modo que lhe recomendo, como tratamento urgente, o seguinte: aplique fenistil-gel, venda livre em qualquer farmácia perto de si, nas zonas da pele já afectadas, não mais de quatro vezes por dia. Se o prurido continuar após cerca de uma semana de aplicação, não hesite em consultar o seu médico. Atenção: evite coçar-se nas zonas afectadas, sobretudo após a aplicação do dito fenistil, já que este medicamento pode ter como efeito secundário um
passageiro aumento da sensação de prurido. E ainda: este medicamento destina-se a aplicações cutâneas, de modo algum deverá ingeri-lo!!! Acaso ainda assim o faça por inadvertência, diriga-se rapidamente para o centro de saúde mais próximo. Como recomendação suplementar, e para terminar, aconselho-o a escolher mais criteriosamente as suas
leituras, evite qualquer livro, por mais atraente que lhe pareça, que tenha em si esses efeitos tão indesejáveis. Siga o sábio adágio popular que desde há séculos nos ensina que as aparências enganam. No entanto, quando as aparências se manifestam cutaneamente, há que levá-las a sério e tomar as medidas apropriadas.
Com toda a consideração e desejo de rápidas melhoras
Bénédicte Houart, estagiária em dermatologia
Nenhum regresso # 2
não é bem ler poesia; não é ler o poema por ele próprio; é prolongá-lo pelas conexões aleatórias, necessariamente aleatórias, que os versos estabelecem com coisas da nossa vida; os particularismos em que vão embater; como se tudo tivesse de significar, possuir um sentido apenas para nós.
onde estiveram eles, os que me faltam e sempre me faltaram, os que desconheço, os que chegarão demasiado tarde, os que nunca precisaram de mim;
por que caminham como se de tão longe, quando todas as ruas dão a volta à mesma praça e estreitecem para nascente;
que nenhum passo pesado que baste, que aprisione até à morte ou liberte pela manhã;
como se um em frente para outro inverso, são assim todas as certezas quando sabemos da sua matéria volátil;
como se andar sequer fosse indiferente, disse ele deixando-os passar e estacionando frente ao mar;
que nenhuma palavra suficientemente dorida, mesmo as náufragas, as soterradas, as executadas;
que só o silêncio e que nem ele, coisa que a gente vai aprendendo à sua própria custa sem sequer se queixar;
que nada porventura ou só a vida, sim, que nada porventura ou só a vida, quer dizer, só a vida acabando-se segundo a sua lei.
a partir de Bénédicte Houart, Vida: variações, Cotovia, 2008, p. 50
Nenhum regresso
onde estiveram eles
por que caminham como se de tão longe
que nenhum passo pesado que baste
como se um em frente para outro inverso
como se andar sequer fosse indiferente
que nenhuma palavra suficientemente dorida
que só o silêncio e que nem ele
que nada porventura ou só a vida
Bénédicte Houart, Vida: variações, Cotovia, 2008, p. 50
Tarde (quase) de inverno
O que D. Juan não chega a entender
nem todos os homens que
saem de minha casa saem da minha cama
nem todos aqueles que
saem da minha cama saem de dentro de mim
nem todos os que
saem de dentro de mim chegaram sequer a lá entrar
não, nada é tão líquido assim
Bénédicte Houart, Vida: variações, Cotovia, 2008, p. 16
Tiros no escuro
A leitura desliza. A provocação não é codificada, mas uma forma de vida que se afirma apenas por si mesma. Com a quantidade suficiente de auto-ironia e auto-crueldade para ser tomada a sério no seu riso e na sua gravidade sem eloquência. Percebe-se tudo, mas tudo arranha. A vida, é preciso quere-la. Mesmo que as suas variações sejam estranhas, porque “quase todos os tiros que damos são no escuro” (p. 30). É bom que haja alguém a dizê-lo.
Antigo
Uma chuvada de granizo que suspende tudo em volta e escava na terra e na pedra um silêncio antigo.
Companhia nocturna # 20
Curioso como também o nosso ouvido se molda por esquemas de pré-compreensão e pode ser um pouco surdo relativamente ao que não esperava encontrar. Em Arianna Savall, estava pronto a ouvir Savall — e ouvi (e está lá). Só agora vou ouvindo Arianna: uma discretíssima pop, uma world que até podia remeter para uma África já toda ocidente, qualquer coisa assim por esses lados.
Auto-entrevista-fágica
Manchas entrevistou Luís Mourão a propósito da sua última instalação mm#1-16 impermanence.
Manchas [M]: Considera-se um impermanente?
Luís Mourão [LM]: Sim, sou um impermanente sedentário.
M: Quer explicar essa designação?
LM: Nem por isso.
M: Há impermanentes nómadas?
LM: Os que trabalham voluntariamente nas situações de calamidade, por exemplo.
M: É por isso, então?
LM: O quê?
M: Essa espécie de raiva, dor, resistência, forçar passagem que se sente na sua instalação?
LM: Sente isso?
M: Sim. Como se o seu gesto fosse análogo do gesto político do que vai para uma situação de calamidade.
LM: Gostaria que fosse assim, de facto. Todos os dias vemos o mundo a desmoronar-se. E todos os dias temos de recomeçá-lo. Às vezes não se sabe bem como nem por onde.
M: Nunca sentiu vontade de desistir?
LM: Sempre. Tenho um combate permanente contra o pessimismo. Mas é um combate em que também se aprende. Porque o pessimismo, como o medo, ensina. Ensina a distinguir, a escolher os combates. Ensina a não esperar tudo, a aceitar a parcialidade do que vem. E torna-nos radicais numa coisa. O pessimismo e o medo ensina-nos que a dor existe, realmente existe. E torna-nos radicais na recusa da dor desnecessária ou movida apenas por crueldade.
M: É esse o seu limiar do imperdoável?
LM: Politicamente, sim, é esse um dos meus limiares do imperdoável.
M: Impermanente diz respeito também à sua situação de finitude?
LM: Diga mortal. Não há que contornar as palavras. Mortal. E pode dizer também, aliás já foi dito de muitas outras maneiras, que impermanente é aquele que se move em direcção à morte, que se move apesar da morte, que se move adiando a morte, não tanto a sua, mas a do mundo.
M: Impermanente é o nome de uma teologia sem deus, é isso?
LM: Não era suposto ser isso, mas estamos sempre a lidar com esse espectro. Já não consigo olhar para as coisas de outro modo. Sou impermanente por mim e pelo mundo. Mas do mundo decidirão os que cá estiverem, cada um a seu modo. É a sua responsabilidade, quer queiram ou não.
M: Próximos trabalhos?
LM: Não há próximos trabalhos, há só trabalhar. Depois, num momento qualquer, duas ou três coisas ligam-se, e momentaneamente temos um “próximo trabalho”.
mm#16 [melody]
can i love you without words yes we can
is this political yes it isn’t
is there words no last melody
between melody and end
between maybe and melody
mm#15 [sweep 2]
(.......iiiii-hh.....)____(.....iiii-hh...............)
(...iiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii......)____(....................iiii)
(..........)_____(...........)____(iiii.................)
mm#14 [rocking]
////---//--//---.....>>>---____
////____////____////____
//---//---//---//---_____
fffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffff
mm#13 [sweep 1]
last dance first chance
last call first of all
last exit maybe first
maybe you go don’t go
turnaround turnaround turnaround
slow dissolve turnaround
mm#12 [totentanz]
ton-----TON----ten--------TANZ--------ten---ton---
ten--TANZ-----ton----TEN-------tanz--TON----------ten--tanz---
TTTTTTZZZZZZZttttttzzzzzzzzz---///---ffffffffffffffffffffffffffffffffffff
mm#11 [slow dissolve]
don’t go at last don’t exit maybe you don’t
go at last exit maybe you don’t
mm#9 [maybe 2]
AAAAAAAAAAaaaaaaaaaaaaaaAAAAAAA
aaaaa...////.....aa//aa//aaaa.........aaaaaaaaaaaa///aaaaaaaa
mm#7 [between]
between this and that
between last and last
between be-tween beeeeeeeeee
mm#6 [particular]
sssssssssssssss................
ttttttttttttttttttttttttt...............
maybemaybemaybemaybemaybe
mm#5 [disequilibrium]
breath-----breath----last----at last---breath
mm#4 [liminal]
ton-----TON----ton--------TON--------ton---ton---ton--
TON-----ton----TON-------ton--TON----------ton--ton
mm #3 [breath]
ffffffffffffffffffffff..................fffffffffffffff...............fffffffffffffffffffffffff.............
.......fffffffffffffff...............ffffffffffffff.................fffffffffffffffff....................
...........fffffffffffffffff..............ffffffffffffffffffffffffffffff.......ffffff......ffffff.......
Caravana em braga # 3
O autor lê compostamente à direita, começando pelo fim, numa desordem benévola mas irreparável; o crítico espreita, deixando a descoberto o imenso parque de estacionamento de que já se ausentou a caravana; atente-se no pormenor pós-moderno da camisa do crítico a sair debaixo da camisola; nota final, e muito alta, para a postura extremamente grave dos dois copos de água sobre a mesa.
Caravana em braga # 2
Caravana em braga # 1
Movimentações sem inimigo à vista
Mesmo no jogging matinal, na cidade meia deserta, com o cão pela cintura, a geografia continua a ser uma arte da guerra.
Companhia nocturna # 19
Nestas coisas, a filiação tem tanto de garantia como de obstáculo. A filha de Jordi Savall e Montserrat Figueras, que toca harpa, canta e acompanha boa parte da aventura de Hésperion XXI, corre os riscos necessários para a sua afirmação própria. É um programa estranho, mas sedutor a cada audição. Parece música provinda desse imenso reportório da antiguidade que Hésperion XXI tão bem explora, mas há uma leveza, uma luz diáfana, que remete para uma certo impressionismo muito contemporâneo. Só quando fui ver o folheto é que percebi: poemas de agora (à excepção de um), música da própria Arianna Savall (excepto um caso, mas mesmo aí o arranjo é também da sua autoria). Um fio de melancolia doce sem quaisquer sentimentalismos, uma beleza mediterrânica, como pretende e se lhe pode conceder: luz, sol, mar, noite aberta.
Há aí alguém que possa levar isto à televisão ou à primeira página de um jornal de “referência”?
Os nossos birmaneses, por Rui Bebiano.
Transição defesa-ataque
Podes espreitar o abismo. Não há muito para ver, mas deve-se ir até lá. A estrada é boa. Há um drive-in que tem um óptimo café e umas torradas com manteiga divinais. Costuma-se parar na volta.
Jogo a meio campo
A pergunta não é: onde é que eu falhei? A pergunta é: quando é que eu percebi sem querer perceber que nunca nada iria ser muito diferente disto?
Companhia nocturna # 18
Raccord: o indeterminável está sempre pregado com pregos
eu nunca aderi às comunidades práticas de pregar com pregos
Dispositivo Agamben # 3. Quod erat demonstrandum
A questão política, portanto. No âmbito foucaultiano, os dispositivos tinham uma estreita ligação com os mecanismos de controle e poder. Digamos, para abreviar, que a grande vantagem dessa estruturação era que ela concedia, em bom rigor simétrico, um lugar claro à possibilidade da resistência e da revolução. Em Agamben, o controle e o poder está em toda a parte e em parte nenhuma, o que torna indeterminável o lugar simétrico da resistência. Agamben não actualiza Marcuse e a sua ideia de uma sobre-repressão doce e consentida, mas o efeito final é muito parecido, se bem que, parece-me, muito mais poderoso enquanto leitura do que existe. Onde Marcuse lia alienação, Agamben lê tecnologia e consequências da sua auto-reprodução, isto é, um modo operativo que não é afectado pelo grau de consciência que sobre ele possamos ter.
Ora, se esta deslocação do problema me parece exacta, algumas das inferências que dela se retiram parece-me que falham o essencial. Não haver lugar reconhecível para a resistência não impede que se resista. Aliás, o lugar reconhecível da resistência era tanto mais afectado de vão utopismo quanto mais fortemente burguês e democrático era o lugar reconhecível do poder. A disseminação do poder, que em todo o caso não impede que algumas das suas estruturas anteriores se mantenham, obriga a disseminar a resistência em micro-causas de subjectivização mais fina. Pondo a questão em termos simples: que leva alguém a deixar o zapping para retomar uns posts sobre uma pequena obra de um tipo chamado Giorgio Agamben?
Raccord: coisas que lemos enquanto estamos a ler outras coisas
Eis o que a política já terá sido para Agamben (terá?) e já não é (não é?): "Uma certa quantidade de gente à procura / de gente à procura duma certa quantidade" [Cesariny, "Uma certa quantidade" in Uma grande razão, p. 64].
Dispositivo Agamben # 2. Dispositivo, subjectivização, tecnologia
Agamben alarga a noção de dispositivo de Foucault. Alarga imensamente. Mantém a ideia geral: dispositivo é tudo o que, de alguma forma, tem a capacidade de “capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres vivos” (p. 31). Mas alarga o âmbito do que pode ser considerado dispositivo: não apenas as prisões, as escolas, os asilos, o panoptikon, o sistema jurídico, tudo isso cujas relações com o poder são óbvias, mas também “a caneta, a escrita, a literatura, a filosofia, a agricultura, o cigarro, a navegação, os computadores, os telemóveis e, porque não, a própria linguagem”. (p. 31). O que perde nesta generalização que a dado momento ameaça submeter tudo o que existe à condição de dispositivo é para ganhar mais à frente, quando colocar a pergunta decisiva das relações do humano com os dispositivos. Porque a questão está longe de ser simples. Primordialmente, o dispositivo é um operador que nos permite um afastamento radical das limitações dos animais enquanto animais, portanto um engendrador de subjectivização. Mas a condição pós-industrial do dispositivo, a sua tecnologização incontornável e sem a qual é impossível o mundo em que ocidentalmente vivemos, faz com que essa subjectivização rode no vazio: no exemplo que é o de Agamben, a possibilidade do zapping, dispositivo central das formas de atenção contemporâneas, é afinal a experiência frustrante da des-subjectivização.
A força deste modo tecnológico que permeabiliza a vida de hoje é tal que Agamben acha que o preceito vagamente humanista acerca dos “bons usos da tecnologia” é pouco mais que inútil. Percebo o ponto. Não obstante, não há outra questão senão a do uso dos dispositivos, já que não os podemos erradicar. A questão torna-se, pois, política. O que Agamben concede, mas ao preço de algo parecido como uma evasão no indeterminável. Já lá iremos.
Terminar [sobreviver # 3]
Muitas vezes, não são as pessoas. Porque quando são só as pessoas, facilmente se reconhece o lugar irredutível de cada um, ou a possibilidade de dar passos de entendimento. No primeiro caso vota-se, e segue-se em frente; no segundo caso negoceia-se, e lá se chega a um lugar qualquer.
Muitas vezes, o problema são as ideias a apoderarem-se das pessoas. A seguirem através de um sujeito a sua lógica intrínseca, cerrada, auto-suficiente. E como é sabido, qualquer ideia levada ao extremo da sua lógica absoluta devém louca.
É por isso que, por vezes, as reuniões demoram tanto. No fim a gente pergunta-se porquê, que aconteceu ali, e fica com a sensação de que fomos joguetes de uma força difusa, de uma força que de facto não podemos dizer que pertencesse a algum de nós individualmente.
Companhia nocturna # 15
Companhia nocturna # 14
durando na pequena praia
que a vida não contém.
Manuel Gusmão, A terceira mão, Caminho, p. 52
Sobreviver
Ouvi ao ir, ouvi ao vir. No entre, sempre que necessário, fui o terceiro homem, o que algures no encalço de piano e trompete se distanciou da reunião sem perder a face [é legítimo sobreviver, é legítimo sobreviver...]. No mais, esse pequeno milagre de re-inventar um classicismo que soa minimal melódico, ou qualquer coisa assim [esta mania de descrever... como se fosse artigo após artigo... tss...]
Driving Miss Laura # 11
O motorista, preso em intenso tráfego estatutário e demais coisas de sísifico transporte, noticia retardatariamente que saiu ontem no Público (P2) a entrevista de Miss Laura por António Marujo. O texto pode ser lido aqui. A iconografia (notável, diz o lado estético e desinteressado do motorista, vastamente cultivado nas horas de espera), para já só na edição papel.
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Dispositivo Agamben # 1. Cesura, solidão, próprio
As indagações genealógicas de Agamben são, como diria Agustina, “a inteligência enquanto festa do espírito”. Não conheço outro caso em que a enciclopédia seja, ao mesmo tempo, tão ostensiva e tão leve. O que Agamben sabe como scholar é esmagador, mas o estilo com que opera as sínteses e os movimentos de passagem deve tudo a uma economia narrativa (sim, narrativa mais do que argumentativa) de short story filosófica.
Qu’est-ce qu’un dispositif? começa por contar uma história terminológica. O termo é nuclear em Foucault, onde tem um antecedente: o termo “positividade”. A pré-história do dispositivo é pois o movimento do termo positividade, tal como aparece na leitura hegeliana de Jean Hyppolite (Foucault chamava a Hyppolite o seu «mestre»), até à sua transformação em dispositivo. Mas o fundamental nesta história, como aliás em qualquer história genealógica, é o momento em que se abandona a interpretação para se assumir um discurso próprio que, mesmo propondo-se em continuidade da genealogia, opera já sem rede. Evidentemente, não é fácil delimitar essa cesura, e muitas vezes a estratégia passa até por fazer de conta que não há tal cesura: o medo de um pensamento próprio, com o desamparo inerente ao ser próprio, é mais comum do que se poderia pensar (mesmo em filosofia). Mas não com Agamben. Verdadeiramente in media res, quer dizer, a meio da história que conta, Agamben faz notar que chegou aquele momento em que o movimento interpretativo atingiu “um ponto de indecidibilidade em que se torna impossível distinguir o autor do intérprete. Mesmo se se trata de um momento particularmente feliz para o intérprete, ele deve compreender que é tempo de abandonar o texto que submete a análise e prosseguir a reflexão por sua conta.” (p. 29-30). O pensamento (em filosofia, mas não só) vale verdadeiramente a pena a partir deste caminho de solidão. Porque mais do que concordância ou discordância, o que o pensamento nos pede é esta solidão do próprio, o que cada um tem condições de dizer por si próprio.