Os infortúnios da virtude # 3
Mais devagar. Não te permitas presumir da inocência que deveras tinhas. Ou da confiança com que confiaste. Mesmo o termo “ingénuo” ainda guarda alguma da nobreza dos simples. Tenta antes “estúpido”. É capaz de ser mais realista. E depois de estabelecido o estúpido, então sim, junta-lhe em partes iguais a inocência e a confiança — aí terás a razão de que é feita a tua estupidez particular.
Oscilações pós-metafísicas
Confesso que esta notícia me abalou. Não a compreendi na sua integralidade e nos próximos tempos (e nos outros a seguir) não vou poder aprofundá-la — mas abalou-me. O T-Rex era uma galinha avantajada? O T-Rex evoluiu para as actuais galinhas? Eu sei, que até aí ainda tive tempo, que a selecção natural não é aquele treta da sobrevivência do mais forte, mas puro jogo de sorte e azar. Eu sei que a selecção natural não é nem um vasto curso de aperfeiçoamento moral nem uma história de progresso. Eu sei. Mas não haverá aqui um excesso qualquer? O T-Rex era uma galinha avantajada? O T-Rex evoluiu para as actuais galinhas? Apeteceu-me logo rir que nem um doido e chorar como um perdido. Enfim, deve ser do cansaço.
Eis um exemplo de uma fuga de informação cujo objectivo só pode ser enterrar ainda mais o PSD, nomeadamente a putativa candidatura de Alberto João Rex
WC Lectures # 23
É um livro inteiro. A contracapa é livro, a badana é livro, tudo tem a marca inconfundível de José Carlos Fernandes. O risco é alto, muito alto. Desenho de página inteira, nas pares. Texto curto, nas ímpares. Superlativos os desenhos, quase-perfeitos os textos (podar uma ou outra rima interna, e algumas articulações “rangentes” por causa dos demonstrativos, é só). Um dia, não vamos ter adjectivos para a qualidade crescente de cada novo livro de José Carlos Fernandes.
PS: ah (e até vem a propósito) apenas uma coisinha no texto de introdução, essa referência ao comediante que fugazmente passou pelo cargo de primeiro-ministro de Portugal — é ofensivo para os comediantes, não havia necessidade.
Uma nova velocidade
As pessoas mal dão por isso. Um belo dia sentem a necessidade de olhar o céu, vêem azul, um azul fino, alegre, e dizem: “Já sei.” Depois descobrem as pombas do Rossio e as colinas pousadas diante do rio, cobertas de uma luz macia, feminina: descobrem uma nova expressão no andar das mulheres e um novo perfume — nelas e na cidade. E todos regressam mais tarde aos autocarros e a casa. É isso a Primavera: um novo sentido no olhar, uma nova velocidade. “Já sei”, dizem as pessoas.
A nossa função é estar abraçadas sem braços
Eu bem dizia que aquilo não era um epílogo. E isto não é uma continuação. É outra coisa: uma função. A nossa função é estar abraçadas sem braços.
Que está à distância certa desta outra coisa, para ser exacto à distância de onze anos (sim, estava quase a deixar de ser novo, finalmente), em contexto e condições a que voltarei, porque terá que ser (e por causa das gaivotas): “E diria também, num gesto que gostaria que fosse tão simples quanto o de uma gaivota que parte, que estes todos que fazem isto, e eu que também fiz isto, o fazemos com a consciência de que escrever não é assim tão importante — mas que outra coisa poderíamos nós fazer senão isto?”.
Exemplar número três
Se isto fosse uma história, haveria uma cidade que se visita por uma temporada relativamente longa. De cada vez que lá chegamos vamos alojar-nos num bairro diferente, tentando perceber e sentir mais um pouco da vida que ali se desenrola. Estudar um livro não é muito diferente de visitar mais ou menos longamente uma cidade que não é a nossa morada habitual [ah, mas qual será a cidade habitual de quem vive de estudar livros?..]. Muda-se de bairro para mudar o que se vê, donde se vê, os itinerários — enfim, isso com que se vão esboçando sentidos. Também pode acontecer voltarmos às mesmas casas e ambientes, para que algum tempo depois possamos confrontar a memória, o aprendido, com o que terá mudado ou se terá desocultado.
Partirei para Finisterra para uma terceira estadia. Seis anos depois do último encontro. Não sei ainda em que bairro me instalarei. Não sei exactamente o que espero encontrar. Única bagagem: um exemplar novinho em folha e um lápis. Eu sei que não há mais começos. Eu sei que não há concepção imaculada da leitura. Mas cada um faz o que pode para merecer continuar a ler.
Companhia nocturna # 11
O itinerário é sempre este: é a música quem vai ao lugar onde nós para sempre não coincidimos connosco mesmos.
Psicopatologia da vida quotidiana # 37 [raccord]
Hipótese um: "Tinha substituído a esposa mais prestimosa que se podia imaginar por uma que entrava em pânico à mais ligeira pressão. Mas, no rescaldo imediato do que tinha sucedido [a mulher descobrir que ele tinha uma amante], casar com ela tinha-lhe parecido a maneira mais simples de ocultar o crime." [Philip Roth, Todo-o-Mundo, p. 125]
Hipótese dois: "Um excesso de indignação pode deixar subentender que há alguma coisa valiosa naquilo que provoca tal reacção. Um desprezo calculadamente indiferente é bem mais eficaz em deixar o outro abandonado na terra-de-ninguém a que as suas ilusões o conduziram." [Luís Mourão, A sabedoria em posts & outras nulidades, no prelo]
Raccord: Contudo, ler mais de perto, ver mais de perto, e os seus antecedentes, não fazem propriamente raccord com isto. Quando muito, assaz longinquamente, montagem paralela. Mas também, qual o interesse disto para além de evitar falar de menezesboavistabenfica?
Ler mais de perto: isto não é um epílogo
Ler mais de perto 4: O real em band-aid barato, outra história conhecida
Ler mais de perto 3: Mesmo bar, mesma hora?
Ler mais de perto 2: O real em band-aid barato, uma história conhecida
Ler mais de perto 1: Encontramo-nos então no bar, depois da hora de fecho?
Ver mais de perto: isto não é um epílogo
As we sat together, he told me that all the men in his family, including him, had been mean to women. He said that he wanted to pose in a way that showed him not being mean. How would that be, I asked. He said he wanted to pose as if Brigit were his mother. How? He gently reached around behind him to Bridgit who was leaning against the Church door. Laying Bridgit in his lap, face(less) up, he looked straight at me and said: "Like this." My lens eye saw that this man had created a reverse Pieta.
Ver mais de perto 4: O real em band-aid barato, outra história conhecida
Ver mais de perto 3: Mesmo bar, mesma hora?
In June, 1999, Mendelsohn and her daughter, Rebekah, found a female mannequin at a yard sale. The seller asked $20, and when Mendelsohn replied that the mannequin was headless, the seller came down in price by $5.
Thus began an extraordinary series of adventures that Mendelsohn has been recording with lens and pen. "Bridgit (the mannequin) is a blank page," Mendelsohn explained recently. "She has none of the obvious trappings we associate with personality except that what there is of her arms is in a very triumphant pose. What is endlessly fascinating is the way in which people relate to her and how it is that she fits into situations. Having a master's degree in psychology and a background in counseling have been definite assets."
Ver mais de perto 2: O real em band-aid barato, uma história conhecida
Ver mais de perto 1: Encontramo-nos então no bar, depois da hora de fecho?
O real em band-aid barato, outra história conhecida
Na mais célebre cena de teatro português — a única que adquiriu um estatuto mítico — D. João de Portugal não é propriamente um espectro. Pode mesmo dizer-se que é a sua negação pois surge e manifesta-se aos vivos, para se desfazer de si mesmo como o espectro em que, simbolicamente, os que o julgavam ou precisavam de o saber morto, o tinham convertido. Mas quando sai de cena, depois de se ter revelado melancólica, irónica e cruelmente, como ninguém, D. João é já um autêntico espectro.
Mesmo bar, mesma hora?
Já se esperava. Os fantasmas são os nossos fantasmas. Nossos, quer dizer, do que somos como seres de paixão, sentimento e sonho, mas também como memória, tempo perdido e conservado, onde a nossa vida real a si mesma naturalmente se espectraliza, quer dizer, em permanência se teatraliza.
O real em band-aid barato, uma história conhecida
Alexandrínicos Dilemas
E fico neste estado catatónico,
telegráfico, estúpido, lacónico,
quando te vejo ou ouço a tua voz.
Bem queria que passasse este registo,
que, se é para ser isto sem ter isto,
melhor que te tomar é tomar pós
de frutos, contra enjoos, suculentos,
bons para a pele, na alma como unguentos
on band-aids em chuva autocolante.
Mas em qualquer dos casos, o que resta
é: não te veja, ou veja (em curta festa):
a saudade: submersa e naufragante.
Não te posso ouvir mais, digo três vezes,
e com muito fervor e muitas preces,
como se esconjurasse Satanás.
Depois, uma palavra, um leve traço,
um minúsculo gesto abrindo o espaço
e, mesmo que não estejas, aqui estás.
E sentas-te a meu lado na cadeira.
Ninguém te vê: só eu. A curva inteira
do pescoço, dos ombros, ou da mão.
Toco-te levemente e o vizinho
na mesa ao lado, espreita-me, de mansinho,
pensando que perdi toda a razão.
E devo ter perdido, se o real
me parece uma coisa desigual,
um band-aid barato, a descolar.
E a única coisa mais parecida
com o ser realmente é uma vida
que não posso, nem devo acarinhar.
E até essa palavra lembra ti,
e a fractura começa por aí,
numa sintaxe que não sei rimar:
Não te posso ver mais. Não, não e não!
(E sai-me o verso assim, como vulcão
limitado a explodir dentro do mar.)
E agora, o quê? Pergunto-me, interrogo-me,
faço das linhas coração. E chovo-me:
miríade em band-aids, tão veloz:
é que fico na mesma catatónica,
meio estúpida, letárgica, lacónica,
se torno em verso, e minha, a tua voz.
Ana Luísa Amaral,
Entre dois rios e outras noites, Campo das Letras, 2007, pp. 26-27.
Encontramo-nos então no bar, depois da hora de fecho?
A indecisa matéria (auto?)biográfica
Não, não vou dizer que os tempos não estão fáceis para a poesia. Porque nunca estiveram. Ou numa variante ainda mais dura, foi quando a poesia pareceu mais aceitável que a tarefa de ser poeta era verdadeiramente secreta, difícil, ininteligível. Mas deixemos isso.
O que é certo é que a poesia vive hoje a sua condição estritamente terrena. Há as excepções, bem entendido, como há também um sem número de poetas anacrónicos e altamente literatos. Mas deixemos isso também.
O problema é que alguma coisa resiste. E este problema é logo seguido de um outro, que é o problema de que alguma coisa acontece que resiste a desaparecer. O primeiro problema é da ordem do real: há coisas aí, anteriores a nós, independentes de nós, estão aí. O segundo problema é da ordem da existência: há coisas que nos acontecem, e depois de nos terem acontecido não nos desacontecem. Que fazer com estes dois problemas?
Tratá-los com um certo tom menor parece ser de regra. Entre a auto-ironia, que tem as suas vantagens, e a denegação, que tem os seus custos humanos. Ana Luísa Amaral está desde sempre à vontade na auto-ironia, é até estratégia central da desconstrução que opera de certos lugares da poesia e do feminino poético, mas não cede à denegação, antes sublinha certas impossibilidades de um menos viver muito contemporâneo: “O tempo agora é este: / o de fazer tão rentes as canções” (p. 50). E sem denegação, há certas coisas — os tais dois problemas, por exemplo — que reaparecem na sua gravidade, mesmo que os contextos acentuem a distância que sempre se deve ter face aos modos retóricos de dizer tais coisas graves.
Uma forma de distância consiste em singularizar radicalmente a experiência da vida e do mundo, evitando a generalização ou a sabedoria do sistema, mas sem deixar de sub-entender a gravidade de “um pequeno holocausto / que é só meu” (p. 86). Outra, mais decisiva, até porque constitui algo parecido com uma poética, é conduzir toda a dicção para uma espécie de entre-dois: “É num tom desses que eu me sei mover: / no intermédio cruzamento / dos portões do real, / nas despensas do mundo” (p. 101). Com uma ressalva sintáctica que não é de somenos: a quantidade imensa de poemas que aqui terminam com travessão — forma suspensiva que infinitiza o fim, por um lado, mas que por outro o entrega a agenciamentos ainda por formular.
Relidos a esta luz alguns dos principais poemas deste livro — poemas como “Alexandrínicos dilemas”, “Claves e distâncias (quatro poemas)”, “Copérnico, Chopin, Boeing 747”, “Entre dois rios e muitas noites”, “Ovelhas e bibliotecas: sofrimentos”, “Que escada de Jacob?” —, a indecisa matéria (auto?)biográfica que os ergue ganha contornos de dicção exemplar sem exemplum a transmitir: apenas o que aí está e o que já não nos pode mais desacontecer. Dito de outro modo: “Horror é conhecer: / tudo o resto se cura / com a vida” (p. 84). Para gravidade basta. E para uma vida, também.
Acordo ortográfico
Um leitor devidamente identificado acha que eu devia ter opinião sobre o acordo ortográfico. Acontece que não tenho. Nem me preocupo minimamente em ter. Há coisas que tanto se me dá, e essa é uma delas. O leitor devidamente identificado acho que eu devia ter uma opinião sobre o acordo ortográfico porque isso vai afectar a literatura, o modo de escrever, etc. Sobre isso, sim, tenho uma opinião, melhor, uma certeza: não vai afectar coisa nenhuma. Afecta a norma, mas a literatura está muito depois da norma, tão depois da norma que pouco se lhe dá que a norma seja esta ou outra qualquer. Mas eu sou o tipo de crítico que acha que um conceito como literatura portuguesa (ou literatura de qualquer outra nacionalidade), embora tenha a sua utilidade, não chega realmente para aceder ao essencial. Que quando toca a falar de um autor que merece esse nome, o melhor a fazer é considerá-lo como toda uma literatura que nasce e morre com ele. E dentro dessa literatura, uma língua (menor, apátrida, marginal: a língua de Vergílio Ferreira é uma, a de Llansol outra, a de Lobo Antunes outra ainda, etc). Sim, eu sei que há aqui algumas ressalvas a fazer. E faço-as. Mas são apenas isso: ressalvas.
Das definições inúteis # 3
A maioria das pessoas não conhece a maioria das pessoas. Ficam nos seus carros, ao domingo, a apanhar sol e a queixar-se: ninguém nos conhece, que triste é a vida. Antes de o sol se pôr regressam a casa.
Chove. Intensamente. É noite.
Apontamento IV
Uma pequena luz
à Bergman:
tão difusa que quase o branco
das paredes em tanta luz há pouco
O reconhecimento na ausência
um pequeno retoque no silêncio
Ana Luísa Amaral, Entre dois rios e outras noites, Campo das Letras, 2007, p. 38.
Driving Miss Laura # 10
Leitora retardatária do blog do motorista, Miss Laura, ainda que agradecendo, faz notar que Frei Bento Domingues não só falou em teologia experimental como também em espiritualidade experimental, o que para si, Miss Laura, é mais importante. Porque mais quotidiano, mais por dentro da vida. Mas Miss Laura perdoa a desatenção do motorista e sublinha a sua disponibilidade (dele, motorista) para com membros de um clube ao qual nunca pertenceu. Assim sendo, por agora é tudo.
---
Marcadores: Laura Ferreira dos Santos |
Isso é
Isso tudo aí
Ela perguntou à amiga, eu apenas estava na mesa ao lado. É o amor que faz girar o mundo? Gostaria de ter respondido: sim. O amor, a falta dele, o contrário dele, a ambiguidade dele, os inúmeros adjuvantes dele, enfim, isso tudo aí. Entretido na resposta que daria, não ouvi a resposta que ela deu. Acontece muito no amor, também.
O que será?
Onde andará?
Rememorar. Lê-se Lavagante relendo Cardoso Pires. Não há nada de estranho nisso, nem este tipo de textos, mais ou menos inéditos, pretendem verdadeiramente outra coisa que isso. Rememorar é também da dimensão da melancolia. É muito difícil não ler aqui o esboço de um modo narrativo que se tornaria emblemático logo de seguida, em O Delfim: distância, deambulação, conhecimento por interposta pessoa, suspensão do fim. Ou não pensar que se assiste aqui ao nascimento desse motivo descritivo tão peculiar em Cardoso Pires (e tão auto-referencial) que são as mãos, essas mesmas que em Alexandra Alpha terão um papel decisivo. É por isso que rememorar é também da dimensão da melancolia: surpreende-se a origem quando ela já nada pode explicar, quando tudo está consumado e nada mais há senão reler.
E contudo — contudo Lavagante deixa-me a viva sensação de um romance que Cardoso Pires não escreveu. Reformulo. Lavagante mostra (lateralmente? no cerne?) um motivo romanesco que um autor como Cardoso Pires não deixaria escapar (suposição temerária, já se vê). Aquela Cecília que passa dos braços de um resistente ao regime para os braços de um pide (passa? ou toma nos seus braços? a política não lhe interessa, diz ela); aquela Cecília que sorri enigmaticamente durante o confronto entre os dois homens, como que equidistante do amante e do perseguidor do amante; aquela Cecília que conhece e reivindica conhecer pela sua experiência erótica (on devient femme, on devient femme..., diz ela) — é uma personagem que transporta consigo todo o enigma que um romance poderia ir escavando. E a força desse enigma!.. É também isto a melancolia, um tipo ir virando as páginas e cogitar com o seu cigarro & whisky (que eu não fumo nem bebo, mas isso são outros vícios): onde andará o romance que aqui falta?
Apetece ter lá estado
Com Esbjorn Svensson nunca se sabe muito bem o que nos vai calhar: aquele jazz-fusão que não frequento e depressa esqueço, as derivas lírico-jarrettianas com menos génio, ou aquele som que vai construindo e identificando o seu trio. Com Live in Hamburg calhou-nos a sorte grande. Quando o trio embala para a fusão, fá-lo sob modo experimental, o que é estranho mas entusiasmante: nada daquele reconhecimento que bordeja o easy listening, mas uma verdadeira pesquisa acerca do choque de estéticas e de formas de trabalho composicional. Nos temas mais classicamente jazzísticos, em regra de tempos lentos ou médios, a empatia do trio e a exploração lírica do piano têm já um som inconfundível. Tudo isto com o calor do live.
Driving Miss Laura # 9
Demasiadas tarefas suspensas no ponto de partida. Regresso através da noite. Longa noite do mundo.
---
Marcadores: Laura Ferreira dos Santos |
Driving Miss Laura # 8
Demasiadas tarefas suspensas no ponto de partida. Agenda carregada no ponto de chegada. António Marujo entrevista Miss Laura, para o Público. Já de tarde, longa sessão de fotografias. Miss Laura equilibra-se entre o corpo de modelo e a ironia da situação. No espaço do Graal, um sexto andar aberto sobre Lisboa, Frei Bento Domingues apresenta o livro. Pequena tertúlia quase íntima, que um sábado de sol convida a ir para fora. Frei Bento deambula bem ao seu jeito pela história das mulheres dentro do cristianismo. Tudo isto é dissertação teórica, afirma, pode-se concordar ou não. Mas este livro é teologia experimental, e isso muda tudo. Não se trata de concordar ou não, trata-se de arriscar sentidos de existir. A conversa desata-se. Sem perguntas nem respostas, flui no cair da tarde.
---
Marcadores: Laura Ferreira dos Santos |
Das definições inúteis # 2
A maioria das pessoas só compreende o que consegue compreender. Têm toda a razão quando dizem que são umas incompreendidas.
Companhia nocturna # 9
Regresso
Tudo se cura com a vida. Mas quase nada disso importa.
Regressando de “a partir de” Ana Luísa Amaral,
Entre dois rios e outras noites, Campo das Letras, 2007, p. 84
Travessia
Horror é conhecer. Também existe o que não se sabe — e todavia importa e decide e vive.
a partir de “a partir de” Ana Luísa Amaral,
Entre dois rios e outras noites, Campo das Letras, 2007, p. 84
Em atraso
Horror é conhecer. Tudo o que é possível vem depois.
a partir de “a partir de” Ana Luísa Amaral,
Entre dois rios e outras noites, Campo das Letras, 2007, p. 84
No man’s land
Horror é conhecer. Horror e solidão é conheceres-te a ti próprio. Tudo o resto se resigna à vida.
a partir de Ana Luísa Amaral,
Entre dois rios e outras noites, Campo das Letras, 2007, p. 84
Desvio
Horror é conhecer:
tudo o resto se decompõe
com a vida
a partir de Ana Luísa Amaral,
Entre dois rios e outras noites, Campo das Letras, 2007, p. 84
Outro dia na terra
Aula quase-livre
Faz sentido. Quando chegam os limpa-chaminés, alguma coisa acabou. Por exemplo, um livro de micro-contos: “este pequeno texto dedicado aos limpa-chaminés foi pelo autor reservado para ser o último deste livro”. Mas não é. Há ainda mais um, de seu nome “Red delicious”. Que começa de uma maneira que imediatamente convoca alguma rememoração: “Adão trincou a maça com prazer”. Mas não é só a cena de origem que assim se apresenta. É também a cena deste livro particular que se re-apresenta para se encerrar. Rememoremos: “Literatura. Uma macieira que dá laranjas.” Bem podemos pressupor: fruto red delicious. Mas de pouco vale pressupor, porque logo entra o desvio: aquela maçã (ou laranja, ou pêssego, ou limão, ou lá o que é), tem bicho, e Adão exige de imediato o livro de reclamações. Sintetizando muito (o mais próximo que me é possível da micro-crítica, digamos) diria que todo este livro é parte do que Adão e seus descendentes escreveram nesse livro de reclamações que Deus se esqueceu de fazer conjuntamente com a criação. E que a Caravana é o meio de transporte de quem se desvia do Diabo, que foi quem Deus chamou para se ver livre de Adão e da sua testemunha, Eva. Como teologia, não é lá muito canónico. Como literatura e sua implícita teoria — you got a point.
Agora eu vou ler outra vez para depois fazer a apresentação, sim? Depois a gente volta a falar.
Cartão, tecidos, luz verde
Agora tenho a certeza. A luz verde da tarde é a prova. Devia ter ido ver o Rauschenberg no inverno. Aquela ironia de cartão e demais utensílios imprestáveis era boa para meditar no sofá em frente da lareira. O carrinho de mão com mangas descomunais é uma bela metáfora conceptual para a gente aconchegar no colo junto com o gato que não temos. E a leveza dos tecidos, nos seus padrões de decoração proletária ou de gente remediada, arrimados a veleiro e outros sonhos de escape — ficariam tão bem naquele sol de inverno sobre o casario húmido, alcançando a barra e as rotas que prometem o verão...
Agora tenho a certeza. Entender, acho que entendi. Mas lembrar-me, só da enorme giesta no jardim, na tarde lá fora. À ida, com chuva forte (mas clara); à vinda, com todo o sol aberto em verde e flor branca.
Das definições inúteis # 1
A maioria das pessoas são como são. Algumas, melhores do que são. E muito poucas, piores do que são. Está bem de ver que o problema reside em a maioria das pessoas serem como são.