Os trabalhos e os dias (26)



Interregno aqui de uma semana, trabalhos e dias noutras paragens.
Desejo em post-scriptum: ver isto um pouco pelos meus olhos.

[Brassai: escadas, nevoeiro, Beauvoir]

Pequena teoria da literatura para uso doméstico # post-scriptum

Das duas, as duas: ou este blog não é lido por donos de hotéis de luxo, ou os donos de hotéis de luxo que frequentam este blog não são sensíveis aos problemas da teoria. A questão é que não recebi qualquer convite para uma temporada num quarto de hotel de luxo. Este blog continua a partir do seu habitat usual.

Companhia nocturna # 37

O peso da história pode interditar: sobre este duo de pianos paira à partida a sombra desse outro já longínquo duo, talvez o melhor de sempre na discografia do jazz, que foi An evening with Herbie Hancock and Chick Corea (1992).
O peso da história pode induzir confiança: para além da parceria com Hancock, Corea soube construir mais dois duetos excepcionais, um com Gary Burton e outro com Bobby McFerrin.
O dueto com a jovem pianista japonesa Hiromi desembaraça-se bem do peso do interdito, excepto na última peça Concierto de Aranjuez/Spain, onde Hiromi quase desaparece, talvez por o confronto com McFerrin (versão avassaladora de Aranjuez) e Hancock (sublime Spain/La Fiesta) ser demasiado. No resto, o lirismo nada sentimental de Hiromi adequa-se bem a um Corea menos impetuoso, mais arquitectónico, mas sempre feérico: não é um confronto de pianos, mas uma paleta de vales variados e pequenas colinas de intensidade.
Momentos altos: Bolivar Blues (Monk) transformado em festa, e o impressionismo de Place to be, da própria Hiromi.

Pequena teoria da literatura para uso doméstico # créditos finais

Não faças.
Não deixes de fazer.

Vais falhar em fazer.
Vais falhar em não deixar de fazer.

O resto é teoria.
O que está antes do resto também é teoria.
Evidentemente, não existe tal coisa — teoria.

Pequena teoria da literatura para uso doméstico # 18

O que estamos dispostos a fazer para não saber aquilo que desde sempre sabemos.
A forma como deliberadamente falhamos em esconder que deveras sabemos aquilo que desde sempre sabemos.

A morte? É certo que o embrulho tem uma cabeça cortada. Mas ainda não é isso. A cabeça cortada dá-te a súbita consciência da ligação da tua cabeça a ti próprio. Estás inteiro. Um profundo alívio: estás inteiro. E no mais fundo desse profundo alívio, a precariedade: se estás inteiro, é porque podias não o estar.

Pequena teoria da literatura para uso doméstico # 17

Eu sei que já disse que o importante era não abrir o embrulho. Há até mais razões para não abrir o embrulho do que para não escrever.
As razões para não abrir o embrulho não acabam nunca. Nunca. Nunca.
Mas todos os dias abrimos o embrulho. Desde o início dos tempos que todos os dias abrimos o embrulho. O início dos tempos foi quando a primeira vez abrimos o embrulho.
Aqui estamos. Domésticos. Dentro do tempo. Escrevendo. Abrindo embrulhos. Continuando a escrever, a abrir embrulhos. Como uma coisa qualquer.

Pequena teoria da literatura para uso doméstico # 16

Mais que o lugar onde se está, importa o lugar de onde a escrita brota. Não a paisagem que a escrita descreve ou circunscreve, quando há alguma, mas o lugar imaginário onde a escrita acontece.
Ramos Rosa no seu andar lisboeta — é sempre manhã algarvia, janela aberta para o mar, é aí que a escrita nasce.
Vergílio Ferreira no seu andar lisboeta — é sempre a interminável noite do mundo, sem geografia visível que não “a pequena brasa viva” do lume de um cigarro, é aí que a escrita nasce.
Um quarto de hotel de luxo — dizer isto é dizer quase nada. É preciso um ocupante, um nome, um imaginário. A paisagem onde a escrita acontece.

Pequena teoria da literatura para uso doméstico # 15

Eu disse para quem sabe. Para os restantes, não faltam razões.
E não: não tenho, nem minha nem de ninguém, qualquer resposta a apresentar. Tudo demasiado circunstancial, egótico, irrelevante. Nada de diferente da existência ela própria.

Pequena teoria da literatura para uso doméstico # 14

A teoria também ensina a irrelevância da própria teoria. Talvez não ensine senão isso, mas através dos seus próprios meandros. Nem poderia fazê-lo de outro modo. Quarto de hotel de luxo ou quarto de casa normal com ou sem família à volta — é irrelevante. Importa, mas é irrelevante depois de ter importado. Para quem sabe, não acabam nunca as razões para não escrever, e elas são todas verdadeiras, cheias de compaixão, protectoras, serenamente sábias. Não há um único argumento razoável que justifique que se escreva. Por necessidade ou para não matar alguém são desculpas sofríveis e com alguma falta de imaginação — a necessidade podia recair em muitas outras coisas, tal como o desvio dos instintos assassinos. São argumentos também irrelevantes, depois do momento em que são pessoalmente verdadeiros para quem os afirma. Não acabam nunca as razões para não escrever. Nunca. Nunca.

Companhia nocturna # 36

O título vem de uma das mais belas “Melodias ciganas” de Dvorak — e há quanto tempo a não ouvia. Como foi possível, tanto tempo assim? Tanto, mas tanto tempo assim.

Pequena teoria da literatura para uso doméstico # 13

A bíblia num quarto de hotel de luxo? Aproveita sempre a um escritor, não há como negá-lo. Aos outros, é conforme. Mas a um escritor... ah, a um escritor aproveita sempre. Mas seriam contos largos, por sobre serem conhecidos (embora às vezes até pareça que não). Adiante.
O que fazia falta juntamente com a bíblia, sobretudo em quartos destinados a escritores, seriam os contos de Augusto Monterroso. Não pensem que os estou a equivaler à bíblia, nem nada que se pareça, porque afinal nada se equivale à bíblia. Mas há um, sim, há um que embora não se equivalendo à bíblia, devia estar ao pé dela nos quartos para escritores. Devia até — como dizê-lo? — poder incorporar-se na própria bíblia, de modo a fazê-la uma bíblia especialmente destinada (ou será adequada?) a escritores. Por mim, apareceria no génesis, depois de deus ter criado tudo, excepto adão e eva. Acho que era aí que ficaria bem, antes da serpente, da tentação (que por acaso é uma história muito mal contada, mas enfim) e dessa trapalhada toda. E não me venham com questões de incongruência, porque o génesis goza desde o princípio de ilimitadas liberdades poéticas.
Eis então:

O Macaco pensa nesse tema
"Porque será tão atraente - pensava o Macaco noutra ocasião, quando lhe deu para a literatura - e ao mesmo tempo tão desinteressante esse tema do escritor que não escreve, ou o do que passa a vida a preparar-se para criar uma obra-prima e que pouco a pouco se vai transformando num mero leitor mecânico de livros cada vez mais importantes, mas que na realidade não lhe interessam, ou o já conhecido (o mais universal) do escritor que quando aperfeiçoa um estilo descobre que não tem nada a dizer, ou o daqueIe que quanto mais inteligente é, menos escreve, enquanto à sua volta outros talvez não tão inteligentes quanto ele e os quais ele conhece e de alguma forma despreza publicam obras que toda a gente comenta e que de facto às vezes até são boas, ou o do que de alguma forma conseguiu fama de inteligente e se tortura a pensar que os seus amigos esperam dele que escreva alguma coisa, e fá-Io, tendo como único resultado os seus amigos começarem a suspeitar da sua inteligência, o que o leva ao suicídio de vez em quando, ou o do parvo que se crê inteligente e escreve coisas tão inteligentes que os inteligentes ficam admirados, ou o do que nem é inteligente nem parvo nem escreve nem ninguém o conhece nem existe nem nada?"
Augusto Monterroso. A ovelha negra e outras fábulas.
Trad. de Ana Bela Almeida. Coimbra: Angelus Novus. 2008. p. 77.

Vir

"Pires com a sua clareza flamejante reforçou a nossa percepção da grandeza de Chopin", diz alguém na Gramophone. Os termos não podiam ser mais exactos, sobretudo "clareza flamejante". Clareza: o contrário da percepção comum do romantismo como arrebatamento. Flamejante: sim, a alma arde, e só ela pode arder.

Aquele órgão só de professores doutores por extenso # 10 [3ª parte]

Vivemos numa caixa fechada, mas
nunca cessa em nós a obsessão
com o cimo secreto das montanhas,
com os oceanos infinitos. Debaixo
do céu limpo das praias desertas,
(...)

João Camilo, O som atinge o cimo das montanhas, Ovni, p. 85

Aquele órgão só de professores doutores por extenso # 10 [2ª parte]

Ok, vês pessoas mortas. Muito bem. Mais interessante seria deixares-te ver como pessoa morta. Isso sim, seria avisado.

Aquele órgão só de professores doutores por extenso # 10 [1ª parte]

(...) Não aprendi ainda
a lição, a terrível lição: enquanto
for tempo de durar, dura; olha
enquanto for tempo de ver. Se
for tempo de estar, está. Sofre,
se for tempo de sofrer. E odeia
também, se te apetecer e for
preciso. Não descures os
(...)

João Camilo, O som atinge o cimo das montanhas, Ovni, p. 48

Ir

Às vezes dá mesmo vontade de voltar ali num instantinho aos dezoito anos que nunca assim tive e alinhar umas cenas à maneira...

Pequena teoria da literatura para uso doméstico # 12

Por vezes, a realidade só é real porque sobre ela desce a força onírica de um quadro. Por vezes, a realidade é tão dilaceradamente fugidia que a fazemos ascender à eternidade de um quadro. Não importa por onde começas, porque começas sempre pelo que tens e pelo que te falta. Sem saber distinguir entre ambos.

Os livros ardem mal

O inquérito

Pequena teoria da literatura para uso doméstico # 11

Percebe-se que a impessoalidade de um hotel de luxo possa ser atractiva para o desapego doméstico que historicamente parece caracterizar a mentalidade masculina. E se sobre isso se diz “fuzilar o doméstico”, o sintoma soa tão notório que todas as dúvidas se tendem a dissipar.
Ora, o que há de desconcertante em Agustina é a atenção ao pormenor — essa atenção capaz de fazer de um qualquer pormenor uma epifania — nunca ser uma atenção sentimental, típica e historicamente feminina, e poder conviver com a impessoalidade dos grandes juízos sobre a civilização, a alma, o desejo, e demais vícios de que se ocupa.
É bem provável que, nos seus romances, Agustina nunca tenha descrito um quarto de hotel de luxo, embora quartos com algum luxo não faltem nas mansões burguesas que traça em meia dúzia de frases vigorosas. Mas na medida em que Agustina é a nossa romancista que mais simples, despudorada e inocentemente se senta no lugar de Deus, o lugar donde assiste é invisível em si mesmo, porque é apenas o lugar donde tudo se vê.
Um quarto dum hotel de luxo devia ser igual e igualmente anódino em qualquer parte do mundo. Quando se escolhe um quarto de um hotel de luxo em detrimento de outro, já estamos a comportar-nos segundo a perspectiva da casa e do doméstico. Agustina nunca escreve a partir de uma casa. Pode dizer-nos que tem as panelas ao lume, mas isso não diz do lugar onde está, diz do lugar para onde nos levou.

Enquanto o outono

Enquanto o outono assim caminhar, com as montanhas bem visíveis do lago, ler neste barco.

Companhia nocturna # 35

Começar assim em cd é já começar muito alto. Estes são projectos do meio de uma carreira, a modos que um fazer o ponto da situação: pegar de improviso em parte do que se transporta consigo e ver o que dá. São também projectos de “aliança”, porque de alguma forma prometem que daqui a dez ou quinze anos se voltará a pesar a forma como o tempo transforma a nossa memória musical. Seria bom um reencontro com este material daqui a uma década. Com outras etapas pelo meio, já agora.

Pequena teoria da literatura para uso doméstico # 10

Comentários só depois, agora apenas a “improvável” autora deste desejo:

"Eu gostaria de escrever os meus livros em quartos de hotéis de luxo. Este mesmo comecei-o a escrever num desses hotéis, num sétimo andar alcatifado, algo tenebroso como os casinos clandestinos, com luzes abafadas em cores densas, com passos abafados, um súbito deslize dum trinco, um cartaz pendurado no fecho da porta pedindo café e torradas. O doméstico é eliminado, fuzilado às seis da tarde nos corredores quentes e silenciosos. Não pronunciam o nosso nome, a impersonalidade reina no quarto onde gela a água num frigorífico que parece um cofre, tem uma chave, como um cofre. Sobe das avenidas um ruído apagado, quase doce, e que pode ser um comício que passa, ameaçador e delirante. Mas ali, ele parece um murmúrio de velhas num templo. Não há livros à vista, só uma Bíblia bilingue e a lista dos telefones."

Agustina Bessa-Luís, Dicionário Imperfeito, Lisboa: Guimarães, 2008, p. 245

Sete da manhã

A lua num céu de cinza às sete da manhã.

Isto é mais um duo com outros à volta

Cassandra Wilson regressou aos standards, e assim de repente não me ocorre outra voz que neste momento se lhe possa equivaler nesses terrenos. Tudo é inventivo e fresco. Mas é mais que justo dizer que uma parte decisiva dessa inventividade e frescura passa pelo piano de Jason Moran. Ouça-se Caravan, como exemplo supremo de ambas as coisas —Ellington deve estar deliciado, that’s for sure.

Pequena teoria da literatura para uso doméstico # 9

Eu sei, eu sei... mas trabalho, trabalho, trabalho. Quase estilo braçal, como às vezes os escritores têm de fazer nos quartos de hotel de luxo (mais nos outros, para sermos verdadeiros). Passa-lhes alguma coisa pela cabeça e vai daí descascam a parede. Por baixo da casca há outra casca, e debaixo dessa outra ainda, tudo o que divide não é senão casca. Isto nada tem que ver com cebolas e Agostinho de Hipona. Eu sei, eu sei — para dizer isto era melhor estar calado.

Um mix, why not?

Cole Porter é como o Algarve: o território é de excelência, mas o que têm feito por lá é por vezes de bradar aos céus. Vale que Patricia Barber é incapaz de um álbum mau. Mesmo assim, a uma primeira passagem, destaque apenas para os solos de Chris Poter, o único a parecer possuído do espírito barberiano de outros álbuns, e para o penúltimo tema, “Miss Otis Regrets”, por acaso dos que menos gosto do cancioneiro de referência de Porter mas que aqui é o exemplo conseguido da re-leitura que se esperaria de Patricia Barber: um som sujo, enegrecido, e uma voz que sublinha com secura o que em cada esquina da existência há para perder de uma vez por todas. O resto pareceu-me um desses hotéis que promete um je ne sais quoi, mas que se revela afinal mainstream sóbrio e de impecável bom gosto. E mesmo quando a uma audição mais atenta se percebe que o bom gosto é até uma re-leitura subtil e que Patricia Barber se permite à-vontade em terrenos que não costuma frequentar, fica sempre a sensação de que era bem outro o álbum que nos era devido. Dito isto, diga-se também, em abono da verdade, que este mix não desiste tão facilmente como isso de se insinuar por entre as cores ainda quentes deste Outono.

É naquele Siza Vieira junto ao rio, haverá luar

Hoje, pelas 21.30h, na Biblioteca Municipal de Viana do Castelo, apresentarei o romance Melodia Clandestina, de Maria Goreti Figueiredo.

Os infortúnios da virtude # 7

Tens as tuas qualidades. E tens o reverso das tuas qualidades. É no reverso que está inscrito o teu prazo de validade – que em alguns casos já foi ultrapassado.

Pequena teoria da literatura para uso doméstico # 8

Num hotel de luxo entra-se discretamente, deixa-se o embrulho (uma caixa?) à porta do quarto, desaparece-se. É um embrulho banal, sem remetente, sem destinatário, trazido por alguém que se esfumou. Existe à tua frente enquanto escreves. Um quarto de hotel de luxo é um desses lugares que te permite a liberdade de não precisares de tomar posse de nada. O embrulho existe à tua frente enquanto escreves sobre o que sabes como se escrevesses sobre o embrulho de que desconheces praticamente tudo. No fim, entregarás o embrulho nos perdidos e achados, mas anonimamente. A disciplina não consiste em escrever sempre, todos os dias algumas horas, mas em nunca abrir o embrulho.

WC Lectures # 28

É da era pré-Peanuts e tem aquela juventude das igrejas protestantes, classe média branca bem comportada. Não há piadas cáusticas — Schulz nunca foi cáustico, aliás —, e não há ainda o alcance simbólico que virá com Peanuts, lê-se mais como um trabalho involuntário de reportagem que nos faz sorrir de vez em quando. Uma coisa é incontornável: a juventude mudou mesmo.

Companhia nocturna # 35


Arrefeceu. A noite parece subitamente mais longa.
O trabalho avança de lado, sempre em derrapagem — pouco saberei dele no fim, pressupondo que lá chegarei. Mas escrever o que já se sabe importa muito pouco.
Um dia vou deixar a música a correr, baixinho, enquanto durmo na outra ponta da casa em silêncio. Como quem abre uma fresta da janela para arejar a casa.

Pequena teoria da literatura para uso doméstico # 7

Em todo o caso, se em Portugal não há uma realidade movente que possa ser “observada” desde um hotel de luxo, é indiscutível que há alguns hotéis de luxo. Pode-se fazer literatura num hotel de luxo português? Pode. Desde que não se seja português, não se escreva em português, nem se escreva “sobre” Portugal. Exemplo? Thomas Bernhard, em tempos ali para os lados de Sintra.

Pequena teoria da literatura para uso doméstico # 6

Miss Allen, interrompendo a sua panaceia helvética — o que muito honra o Manchas —, aposta em Daniel Abrunheiro. Percebo o ponto: segue a lógica de género da Menina Limão e tenta um nome pertinente. O que vale por dizer — era possível. Mas não é ainda este nome, e isto sem conceder no género...

Pequena teoria da literatura para uso doméstico # 5

Imagino que todo o escritor americano habita um quarto de hotel barato, ou mesmo um quarto de motel barato, desses que se pagam dia a dia e cuja manutenção depende de lances fortuitos entre amigos ou conhecidos de ocasião. Toda a América se move, como sempre acontece com todos os Impérios, e o quarto de hotel é não só o posto de vigia mais avançado como também a disponibilidade permanente para partir.
Um hotel de luxo é outra coisa. E outra coisa ainda em Portugal. Porque na verdade, parece que em Portugal não há condições sociológicas para esse mundo americano que é a quinta-essência da vida contemporânea. Um simples quarto de hotel não tem vista para nenhuma realidade movente, talvez apenas para uma praça deserta que em tempos medievos terá sido campo de feiras. E um quarto de hotel de luxo bem poderá ser, entre nós, a morada snob de quem decidiu definitivamente instalar-se na vida doméstica segundo o regime de aquisição de serviços.
Não será por acaso que Viagens na Minha Terra viaja tanto à volta do próprio quarto do autor, como não será por acaso que Kerouac foi americano.

Em cima, continua e continuará Barton Fink, dos Coen

Pequena teoria da literatura para uso doméstico # 4

Eu sei que os tempos vão maus, interessantes e maus, já nem sequer é Agosto com os seus inquéritos literários de verão (mas isso era também mais dantes), enfim — isto tudo para dizer que a adivinha que o Manchas lançou só hoje teve uma primeira e única resposta. Mas tal como Sodoma e Gomorra se salvariam caso houvesse um único justo, esta adivinha está já ontologicamente justificada pela única resposta que até agora suscitou. Via mail, e citando na íntegra o texto citado no post (o que só pessoas desatentas não percebem tratar-se de uma modalidade de pormenorizada análise de conteúdo), a Menina Limão conclui, com sublinhado a negrito, que a autoria é de um escritor. Não avança um nome, delimita apenas, mas com força, um género. Com uma tão alta probabilidade de acerto, o Manchas não pode dar quaisquer indicações de quente ou frio...

A imagem continua a ser de Barton Fink, dos Coen

Partido plural e sensível

O Partido Socialista, tendo reunido em plenário de militantes, decidiu impor disciplina estratégica e não participar nas operações que amanhã conduzirão à Revolução do 25 de Abril. Embora a maioria dos militantes não estivesse presente — o que se compreende porque os tempos são de crise e é preciso cuidar dos dinheiros tóxicos —, a maioria dos presentes decidiu acatar a ordem da direcção e vai-se pôr à margem dos acontecimentos revolucionários. Como sublinhou um destacado membro da direcção, o partido até concorda que se deve acabar com o fascismo e instaurar a democracia e a igualdade, mas agora não dá muito jeito, dada a urgência da crise financeira. Outro militante desdramatizou a situação: «Se o povo aguentou quarenta e oito anos, não é por mais um ano ou dois que as coisas vão ficar muito piores. E daqui por um ano ou dois acho que já conseguiremos ter definido todas as operações necessárias para fazer um 25 de Abril liderado por nós. Não nos esqueçamos que o assunto é muito complexo e fracturante. Além de exigir uma grande logística, coisa agora difícil atendendo à crise no imobiliário”. Apesar de ter decidido impor a disciplina estratégica, o Partido abriu excepção para os militantes com mais de oitenta anos: “Os militantes mais antigos vão poder juntar-se à revolução. Achamos que era demasiado cruel privá-los deste acontecimento com que sonham há tanto tempo. Atendendo à idade, pode ser a sua última oportunidade de verem a luz da liberdade. Fica assim mais uma vez demonstrado que o Partido Socialista é um partido plural e sensível.”

Pequena teoria da literatura para uso doméstico # 3

Coisas que se percebem melhor quando se lê num quarto de hotel.
O que lês nunca é sobre o teu ego (coisa estreita) ou mesmo sobre a tua pessoa (coisa um pouco mais larga). Mesmo quando o texto te tem como destinatário, não pode senão falhar nisso. O que lês é sempre sobre o fundo impessoal no qual nos recortamos como egos (coisa estreita) e como pessoas (coisa um pouco mais larga). Os rasgões, as pontas soltas, mesmo a alta costura com que te fizeste — , isso é apenas o deserto inalterável e soberano a perder de vista. O resto são equívocos, mesmo que os oásis sejam reais.

Imagem de Barton Fink, dos Coen

Pequena teoria da literatura para uso doméstico # 2


“Le souvenir d’une grâce passée peut être une nouvelle grâce”
Julien Green

No quarto do hotel, apenas o indispensável (isto também é uma definição do luxo, ainda que o ponto agora não seja esse). E para escrever, apenas o indispensável do indispensável: os artefactos materiais (computador ou papel e caneta ou qualquer coisa que tome os seus lugares), memória e imaginação. Talvez um objecto que induza partes da memória ou da imaginação, talvez mais do que um objecto, talvez nenhum. Um quarto de hotel não é a vida comum, mas precisamente por isso, pela sua distância protegida e pelo seu anonimato libertador, pode ser o lugar em que a memória e a imaginação da vida comum se faz literatura.

Em cima, a graça e a recordação da graça em Barton Fink, dos Coen

Companhia nocturna # 34

Por outro lado, até apetece colocar os dois pontos de exclamação no Satie, ou então usá-los para destacar a faixa 9, exemplo superior de como a teoria pode ser bela: citações explícitas de Satie e Bill Evans envolvidas num diálogo que tem o seu próprio caminho. É por isso, por ter o seu próprio caminho, que quando se volta a ouvir já se assimilou a teoria e simplesmente se vai andando pela beleza, a faixa 9 por dentro das restantes faixas.