- E agora, Leitora?
- Agora respondes ao repto gentil do Eduardo Pitta e fazes a lista dos dez livros que não mudaram a tua vida. Qual é o problema?
- Mas são vários problemas... Vários, até demasiados. No antigo clube isto dava logo uma reunião de emergência, uma crise maior do que a do BCP, uma declaração de calamidade pública, uma...
- Calamidade pública?!
- Porque isto é grave, muito grave, eu sei lá... Grave, pronto.
- Por exemplo? Vá, só para ver se te percebo, um exemplo...
- Um exemplo, dizes tu?
- Sim, um exemplo. Vá lá, um exemplo. A ver se te entendo. Grave, muito grave, como por exemplo...
- Mas tu farias nas calmas uma lista dos dez livros que não mudaram a tua vida e a tua relação com a literatura?
- É como dizes, nas calmas.
- Sem quaisquer considerandos epistemológicos, digamos assim?
- Oh, então é isso!.. Já estou a ver, vais considerar tanto que vais concluir que é epistemologicamente impossível fazer essa lista.
- Mas é que há problemas, vários problemas, demasiados até... Por exemplo... Querias um exemplo, não era?
- Hum hum...
- Por exemplo, o Ulisses, do Joyce.
- Muito bem, o Ulisses, do Joyce. É um bom exemplo, suponho, porque foi eleito como não tendo mudado a vida nem do Eduardo Pitta, nem do Francisco José Viegas, nem do Rui Bebiano. E no caso do Eduardo e do Francisco nem mudou sequer a relação com a literatura.
- Pois, mas mudou, olá se mudou...
- Mentiram, eles?!
- Não, que ideia! Se o Ulisses também não mudou nada na minha vida!.. e contudo, mudou, e muito... olá se mudou... é o problema do armazém do Esteves, percebes?
- Armazém?! Não era uma tabacaria?
- Isso era o Esteves do Álvaro de Campos. Este Esteves tinha um armazém de roupa, a minha mãe levava-nos lá. Eu barafustava sempre, porque o Esteves não tinha as gangas da Levis.
- Tu ligavas às marcas? Não imaginava...
- Levis e cigarros Marlboro, ok? A questão é que andei sempre de ganga, mas nunca foram Levis. Até que um dia, lá teria de ser, fui comprar umas Levis com a minha mesada. Vesti-as, já estava a bainha marcada, mas alguma coisa não estava a funcionar, eram demasiado caras para não estar a sentir diferença nenhuma. Foi uma grande humilhação interior, nem te conto...
- Humilhação?!
- Porque tinha de reconhecer que a minha mãe tinha razão! (risos) Era ganga igual à outra, se não fosse a marca eu nem saberia dizer... Aí tens. As Levis não mudaram a minha vida. Não cheguei a comprá-las sequer. Mas de alguma maneira usei sempre Levis, é impossível explicar a minha adolescência sem as Levis.
- Excesso de expectativas?
- Como?
- Achas que o Ulisses não mudou a tua vida porque tinhas excesso de expectativas em relação precisamente a ele mudar a tua vida?
- E porque já a tinha mudado, entendes? Ainda não tinha lido o livro, e ele já me tinha mudado. Ou achas que algum de nós tropeçou no livro por acaso? Olha, um livro chamado Ulisses de um tipo chamado James Joyce, e se eu desse uma vista de olhos? Apostava qualquer coisinha que, por junto, antes de chegarmos realmente a lê-lo, já todos devíamos ter lido mais páginas sobre ele do que o tamanho que ele tem.
- É um livro grande...
- Eu sei, eu li-o.
- Mas vais fazer a lista ou não?
- Calma, ainda estamos no primeiro considerando. Há mais problemas.
- Graves, já sei... (risos)
Os que não mudaram # 1
Luís Mourão
4.9.07 |
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This entry was posted on 4.9.07
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