Os que não mudaram # 3


- O que eu gostava de saber, Leitora, é que Moby Dick ou que A Montanha mágica se leu antes para que não tivessem produzido efeito quando se leram.
- Achas então impossível que não produzissem efeito?
- Basicamente, acho. Em leitores assim, entenda-se. Moby dick não mudou a minha vida, aliás ficou a meio, verdade seja dita, mas sei exactamente porque é que isso aconteceu.
- Conta lá, sem ser pessoal... Ou mesmo que seja...
- A questão é que apanhei com Apocalipse now pelo meio, e no dia seguinte devorei o Conrad de O coração das trevas.
- Estou a ver, compreende-se.
- Moby dick foi a obra errada no momento errado. Mas percebo muito bem que possa mudar uma vida, e só não mudou a minha porque ela já se tinha mudado para o lugar para onde ela me ia mudar.
- Quer dizer, recomendas ainda?
- Sempre. E se os livros remetem todos uns para os outros, a minha Moby dick foi O coração das trevas/Apocalipse now.
- Como para outros O coração das trevas/Apocalipse now pode ter sido a Moby Dick.
- Sem que a coisa seja propriamente comutativa.
- Pois, já estava a achar demasiado fácil. (risos) Mas se não é exactamente comutativa, como é que tu mudaste exactamente para o lugar para o qual supostamente irias ser mudado?
- É comutativa só numa parte, naquela parte que seria essencial no momento. O horror, por exemplo. Naquele momento o essencial era o horror. Tê-lo-ia visto pior a partir de Moby Dick, por ser no alto mar. Gosto do mar a partir da praia, percebes? É uma coisa pessoal, uma coisa de afectos.
- Mas terias visto na mesma a partir de Moby Dick?
- Não só teria visto como percebo que se veja sem qualquer necessidade de se vir a comutar por outra coisa qualquer. Porque a verdade, quer dizer, a minha verdade, é que mesmo que tivesse visto a partir de Moby Dick, seria sempre para vir a comutar por alguma coisa cujo contexto fosse do lado do “mar visto a partir da praia”. O horror em terra, se quiseres. Dirás que não é o essencial, e não é o essencial, mas só chegamos ao essencial através do nosso particular.
- Queres as histórias de cada lista, é isso. Já tinhas dito, não já?
- Já, já tinha dito.
- É uma lista de particularidades.
- Ou de singularidades. E é uma história daquilo a que Foucault chamava os fundadores de discursividade.
- Marx, Freud, lembro-me disso...
- Voltas sempre lá, estás sempre a recomeçar, para prosseguir, ampliar, recusar, substituir, mas estás sempre dentro daquela discursividade.
- Moby Dick, ou outro título qualquer assim reconhecido, como uma maneira de recomeçar a literatura daquela maneira, com o seu comentário, a sua ampliação, a sua recusa...
- Isso, isso. E nós uma pequena história fazendo-se nos interstícios dessas histórias. O mar visto a partir da praia também a sua versão muito própria de perdidos no alto mar.
- Sim, penso que sim... (pausa) E a lista, Luís?
- Calma, ainda estamos no terceiro considerando. Há mais problemas.
- Pois, já estava à espera... (risos)

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