Companhia nocturna # 74


A liberdade de ir pelo conhecido fazendo-o novo. Tomara aprender. Mas desconfio que mesmo quando se aprende, ou quando os outros nos asseguram que alguma coisa disso aprendemos, só o vemos perfeito fora de nós. Como aqui.

Um tostão ou um milhão

Havia uma tira do Quino que era assim: na hora do almoço, um pobre pedia dinheiro para comprar um pão; um transeunte mais apiedado dá-lhe uma nota; o pobre mal crê na sua sorte, entra todo risonho no restaurante e pede todos os pães que a nota pode comprar. 
Com a corrupção acontece qualquer coisa de análogo. Os que vêm de muito baixo, os que tendo subido nunca perderam os tiques de terem vindo de baixo, medirão sempre o seu preço a pães. Os outros, nas mesmas condições, exigirão diária completa e por um período substancial.

bloco-notas # 3

Há mil e uma formas de um livro nos fugir, apenas duas ou três de nos obrigar a ficar com ele — tão poucas são as coisas que realmente nos interessam. O verdadeiro milagre é encontrá-las, apesar de tudo, em tantos e tão diferentes livros.

Fora de tempo # 52

“Este pequeno espelho rectangular dentro do carro, Sr. Jiabao... Será que nunca ninguém reparou até que ponto pode ser embaraçoso? Como é que, de quando em vez, quando os olhares do patrão e do motorista se encontram neste espelho, ele se abre como uma porta para um quarto de vestir e, de repente, ele se apanham um ao outro nus?” (O tigre branco, p. 149).
Embaraçoso é aqui uma palavra... embaraçada. O termo correcto seria violento, de uma violência facilmente assassina. A possibilidade do reconhecimento em nua humanidade é um mito. A nudez imprevista de dois seres atirados para a presença um do outro só tem dois resultados possíveis: sexo (uma forma de violência accionada pelos mecanismos da reprodução) ou luta ( a violência gerada pela defesa do espaço vital). Todo o reconhecimento é social e laboriosamente construído como um patamar de civilização. O erotismo também. São artefactos, e assim os sentimos. Daí o misto de desencanto e segurança com que os vivemos: não são a coisa natural (que está para sempre perdida), mas precisamente por não serem a coisa natural podemos experimentá-los e sobreviver-lhes.

Fora de tempo # 51


“Eis um facto estranho: assassinamos um homem e passamos a sentir-nos responsáveis pela sua vida — possessivos, até. Sabemos mais acerca dele que o próprio pai e a própria mãe; eles conheceram-lhe o feto, mas nós conhecemos-lhe o cadáver. Somos os únicos em condições de completar a história da sua vida; os únicos a saber por que motivo o seu corpo tem de ser empurrado para a pira antes da hora prevista e os dedos dos seus pés se encarquilham e se batem por mais um instante neste mundo.” (p. 42).  
A elucubração vem a propósito de um desses crimes de classe (simplificando, empregado que mata e rouba patrão) e abre caminho àquilo que será uma gestão irónica da culpabilidade. Reconhecemos o ar dos tempos: não há hoje culpabilidade que não seja mediada pela ironia e até pela irrisão mais completa. O que não é inteiramente negativo, mas o meu ponto é outro. O meu ponto é que a gestão irónica da culpabilidade não anula a fórmula original em que ela se coloca: se tomarmos o facto estranho à letra, na sua seriedade, estamos naturalmente no princípio de uma qualquer religião. O facto estranho continua lá, é em parte por isso que as religiões regressam ciclicamente.

Fora de tempo # 50


Escorreito, irónico e romanesco q.b.. O meu interesse de partida era mais sociológico do que propriamente literário, e nisso não me desiludiu. Não substitui os documentários e os ensaios sobre o “milagre indiano”, mas só a ficção nos dá vidas e pessoas concretas (sim, sim, concretas). Radicalmente, um país não existe. Embora ajude saber coisas sobre isso a que se chama um país. Mas no fim, é sempre sobre pessoas e as suas circunstâncias. E sim, morre-se sempre sozinho, perdendo as pessoas e as circunstâncias.

bloco-notas # 2

Quando ele diz que não sabe, não lhe interessa saber, não quer mesmo saber, o mais importante não é a ignorância. A ignorância nunca seria capaz desta fórmula tão ostensiva de recusa. O importante é o grau de saber a partir do qual ele diz que não sabe, não lhe interessa saber, não quer mesmo saber. Porque nesse grau de saber, o que ele sabe gostaria de não sabê-lo, interessava-lhe não sabê-lo, não quer mesmo sabê-lo. Mas é demasiado tarde. O problema não é a ignorância, é a angústia. Só ela pode formular uma tão ostensiva recusa do mundo. Que por acaso também chega sempre demasiado tarde, porque já estamos plenamente vivendo.

bloco-notas # 1

De um para outro, a repetição não existe. De poeta para poeta, de artista para artista, a repetição não existe. Existem coisas reiteradas, segundo os meios próprios que cabem a cada um. Podemos acentuar o que se aproxima ou o que se distancia, jogar na variação ou na diferença — mas temos sempre duas coisas de que falar, não apenas uma. De um para outro, não é sempre a mesma coisa. Aliás, nunca é a mesma coisa.

Companhia nocturna # 73


Como se fosse ainda a primeira e interminável vez, ombra mai fu.

Companhia nocturna # 72


A música não sabe do sacrifício, é um deus que não precisa de tais ofertas. Nem lhe servem para o que quer que seja. Antes ou depois, sabemos nós dos castrati. Mas durante, sabemos apenas da música. Não é a crueldade do esquecimento ou da indiferença, antes a inocência da arte onde o mundo menos pesa.

Fora de tempo # 49

A suspensão do juízo é uma forma precisa de ajuizar um determinado objecto particular. Não isenta de ambiguidade. A suspensão do juízo pode ajuizar em definitivo — sobre isso nunca saberei o que dizer, sobre isso nada há a dizer, sobre isso melhor será que nada se diga —, ou pode adiar o juízo até novos elementos esclarecedores.
Na crítica literária, a suspensão do juízo devia ser prática mais comum, nunca como modo de ajuizar em definitivo mas como modo de esperar pela continuação da obra. 
Por exemplo: a qualidade de um verso como “o resto é abaixo de gato” não se decide nele próprio nem na obra a que pertence. Será a próxima obra a esclarecer (possivelmente) o lado para que penderá: exemplo de variação fácil de um lugar-comum, ou exemplo de um largo trabalho de desconstrução dos lugares-comuns?

Fora de tempo # 48


“e uma data de poemas na cabeça / ligados por tubos de respirar” (p. 7)
a glória dos poemas na cabeça: não é o lugar nobre e apropriado para haver poemas, é apenas o lugar mais próximo da saída; a eternidade dos tubos de respirar: os cuidados intensivos são a última paragem antes da saída

“os poetas devem morrer de tuberculose, na miséria / isso ou artista doméstico / fato de treino e perversões de periferia / o resto é abaixo de gato” (p. 15)
a glória da parte maldita, a eternidade da recomposição do mundo normal

“nasce o dia / ao sair da cozinha tudo na mesa parece obra do diabo / copos por levantar, o cinzeiro usado, talheres sujos / e livros de poesia” (p. 23)
a glória da enumeração do trivial, a eternidade da parte maldita tornada quotidiano 

Companhia nocturna # 71



Reitero: nunca por nunca chegamos demasiado tarde à música. Ou a um livro que desconhecíamos, um quadro nunca visto, uma paisagem subitamente aberta a nosso lado. Mas à vida sim. E a algumas pessoas nela, mais ainda.

Companhia nocturna # 70


Nunca se chega atrasado à música. Anos, décadas, séculos, a sua paciência não tem limites. A vida sim.

Companhia nocturna # 69



Fora de tempo # 47


Ottinger detém-se aqui. O quadro de relações é demasiado complexo, e de alguma maneira demasiado doméstico e privado, para caber numas “hipóteses elementares”. De Lacan a Duchamp, com segredo, velatura e sexo, sendo que o segredo e a velatura não são, de forma nenhuma, apenas causa ou consequência do sexo. Tudo por junto, é demasiado matricial para não transbordar o elementar.
Porém, uma coisa me interessa, que propriamente talvez até não pertença a esse quadro de relações, embora lhe subjaza como enquadramento ou situação incontornável. Chamemos-lhe o obtuso sociológico (sendo que o óbvio é a remissão para L’Origine du monde): pulsionalmente, a figura de Le gaz d’éclairage é uma figura morta, ou pelo menos fria, e a natureza que a rodeia está mais próxima de uma natureza-lixo ou natureza-baldio, do que da voluptuosidade carnal de Courbet (mesmo quando é apenas a natureza que pinta). De Courbet a Duchamp, aproximamo-nos da morte: mas Imre Kertézs já tinha avisado o quanto o século XX nos mostrou o rosto verdadeiro da nossa existência. 
Resta a ironia involuntária, afinal também ela apropriada a esse mostrar: Le gaz d’éclairage apareceu ao grande público primeiro que L’origine du monde.

Fora de tempo # 46


A segunda hipótese de Ottinger, sintetizando e fazendo avançar outros: há uma ligação entre L’Origine du Monde, cujo original Duchamp viu na casa de Lacan, e Étant donnés: 1. La chute d’eau 2. Le gaz d’éclairage.
Na casa de Lacan, L’Origine du monde estava velada por uma pintura de Masson, seu cunhado, para obstar ao excesso da tela de Courbet. Étant donnés é uma instalação. Há uma enorme porta de madeira, aparentemente maciça, incrustada na parede (La chute d'eau). Quando nos aproximamos, há um pequeno rombo de contornos irregulares numa das faces da porta. Alguns julgam tratar-se apenas de deterioração material e não se acercam mais. Outros aproximam-se para espreitar, habituam a vista ao escuro e acabam por vislumbrar a cena: Le gaz d’éclairage. A figura central lembra de facto L’Origine du monde.

Fora de tempo # 45


O elo entre natureza e sexualidade nunca foi natural. Mas houve uma época em que funcionou com vantagens mútuas, desembaraçando a natureza das suas metafísicas românticas e a sexualidade das suas reprodutibilidades sociais. Por assim dizer, variações da carne tornada extensa: ficavam os humanos com um vasto campo de experiência maior do que eles próprios, repousava a natureza na sua condição terrena, frágil e desejante. Foi esse elo que Courbet pintou, ou de que falaram D. H. Lawrence ou Kerouac. Foi visto pela última vez em Woodstock.
A quase ninguém interessa hoje esse elo. A natureza é preocupação, empecilho ou cenário de jogging. A sexualidade é também preocupação, empecilho ou cenário de fantasmas.
Bem entendido, sou um fóssil. O que vale é que mesmo numa espécie em extinção, ainda se pode morrer aos pares.


ao cimo, La source de la loue e L’origine du monde.

Fora de tempo # 44


A primeira hipótese de Ottinger, sintetizando e fazendo avançar outros: se tomarmos os nus de Courbet, mantivermos os seus agenciamentos essenciais e estruturais, mas transformarmos os segmentos humanos em rochas, bosques e por aí adiante, obtemos as paisagens que lhe interessavam profundamente. Se colocarmos La source de la loue de pé sobre o seu lado direito, vemos que a composição é exactamente a mesma que foi usada para L’Origine du monde.

Da exigência

Não, o eleitor do Bloco não é um feroz anti-PS que não perdoa o mínimo desvio. É outra coisa que exige muito mais cuidados nos caminhos que se escolhem. É bem mais exigente do que isso.

Não me queixando sequer do Roth, que a gente já sabe como é

Má jogada, a do Nobel da Paz. Não se deve premiar o presidente da nação mais poderosa do mundo democrático por estar fazer aquilo que deve ser feito — e honra a Obama por isso. Mas a Paz necessita de trabalho extra-curricular, e é esse que é urgente conhecer e reconhecer.
Ainda assim, dentro das más jogadas, Obama é a melhor possível.

Companhia nocturna # 68


Fora de tempo # 43



Primeiro elogio: o Pynchon segundo Rogério Casanova parece-me de longe bem mais interessante que o próprio Pynchon. Segundo elogio: a sova no Updike devia tornar-se um case study. E mais um: a leitura de Todo-o-Mundo, de Roth, é uma recensão modelar.
Ironia, desembaraço, fórmulas inesperadas e certeiras — sim, tudo isso também. Nos melhores casos, sobre terreno culto, o que deixa qualquer coisa para pensar; noutros casos, é puro incêndio sardónico do quotidiano: alto estilo de devastação, passe-se ao episódio seguinte.
De todos os estilos, é sempre este que tem um prazo de validade mais apertado, embora alto rendimento imediato. Impossível manter-se a vida inteira nisto. Quer dizer, impossível não é, mas este estilo sofre inevitavelmente do síndrome do “Vêm aí os lobos”. Lembram-se da história? O rapaz lançava o alerta, e não era; depois outro alerta, e também não era. Essa história.
Portanto: bem-vindo, Mr. Casanova. Já provou suficientemente que existe. E agora, como é que vai continuar a existir?

Fora de tempo # 42



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Fora de tempo # 41


“escrevo esta carta no início do verão, uma mão litoral no cabelo enquanto hesito. o automóvel está estacionado à porta de casa, o resto a caminho do sul. no final hão-de restar apenas as estrias de sal sobre o dorso, a interpretação desses mapas.” (Tiago Araújo, Livre arbítrio, p. 42)

A poesia (a arte no seu todo) é também (entre muitas outras coisas, algumas das quais ainda mal detectadas) esta possibilidade de um texto que absolutamente nada sabe de nós nos descrever num gesto preciso, fixado num tempo que ainda se não perdeu de todo. A poesia é esta forma de libertação: o texto que nada sabe de nós incorpora o que de nós sabemos como excesso e peso, mas como se fora de um outro, libertando-nos. Transfert involuntário, imensamente disponível; análise terminada, porque deslocada.
Se poesia, entre muitas outras coisas, é isto, crítica, entre outras coisas (mas em menor número), é falar deste transfert acidental como se não houvesse transfert, apenas leitura, e todo o acidental fosse a superfície de uma necessidade escondida que a pouco e pouco se vai iluminando.

Sair


Fora de tempo # 40

A DROWNING

Vinte anos de porfia
para cem, duzentos versos
estimáveis, o fastio
dos aplausos, seis amigos,
quando minto, trinta euros
de chamadas por semestre.
Arrependido? Nem sequer.
Desapontado, se quiserem.

A sensação de ter quebrado
o último brinquedo.
 [José Miguel Silva, p. 35]

Pano. Um segundo acto brilhante, com um fim que em muitos não alcança sequer ser final. Parada alta para o terceiro acto. Supondo que o haja (mas o deserto ou a imolação capitalista já não são soluções defensáveis, e à distracção da vidinha falta a força e a disciplina da persistência, mesmo que apenas para perseverar no desistir).

Fora de tempo # 39


Como sempre na melhor poesia “especulativa” ou “pensante”, a questão não é a da verdade, da justeza de uma afirmação que possamos brandir em direcção a um silogismo, mas a da potência de uma linha de sentido. Uma linha não é o desenho todo, uma linha é apenas uma linha. Como uma rua não é a cidade toda, é apenas uma rua. Moramos numa rua, a nossa vida passa também por outras.
“So Goodnight” é uma rua que frequento bastante: “Não posso dizer que tenha aprendido grande coisa / nos últimos, digamos, duzentos anos. / Há muitas perguntas que vão perdendo altura / à medida que as pessoas tombam e também / as garras já não prendem como soíam. / (...) e por esta altura da minha queda já concedo / que seja o silêncio a condição natural / para uma ave sem nome que Setembro chamou / e que há duzentos anos não aprende nada.” (José Miguel Silva, p. 32). 
Não moro nesta rua. Mas “So Goodnight” é o marcador que uso no deleuziano “O que é a filosofia?”, por exemplo. A ave não tem nome, o seu dono é apenas memória ida, mas o seu vôo nocturno continua a inventar Setembro.

Fora de tempo # 38


A urgência que tinha da poesia do José Miguel Silva. Sobretudo isso, imensamente isso. Distinguem-se quase sempre bem as vozes, não é preciso ir ao índice final ver o que é de quem, há um mundo próprio em cada um. Que aconteceu ao José Miguel Silva para andar desaparecido dos livros em nome próprio?