E Agustina?

Sim, um júri deve argumentar. Deve tornar o mais claro possível aquilo que juridicamente se chama o seu “itinerário cognoscitivo”. É por isso que quero aqui responder, em meu nome — um júri é sempre uma soma de nomes individuais, convém não esquecê-lo — à pergunta que algumas pessoas me fizeram por mail: que me levou a não preferir A Ronda da Noite?
Desde logo, esta nota curiosa. A pergunta envolveu sempre A Ronda da Noite, e não O Cemitério de Pianos. Provavelmente, mera coincidência. Mas acertada, no que me diz respeito. Considero José Luís Peixoto um autor de indiscutível talento, mas ainda à procura de poder “dizer qualquer coisa” com o talento que lhe calhou e que tem oficinalmente desenvolvido através de vários itinerários formais. Neste momento, José Luís Peixoto faz-me lembrar aqueles antigos patinadores de leste: potencial técnico irrepreensível, mas coreografia fria, com vida não vivida por dentro. O seu primeiro romance teve o sangue e nervos mastigados que nos romances seguintes como que se ausentou. O melhor que se pode desejar a um autor assim é que a vida não lhe seja fácil — sem que isto, naturalmente, seja desejar-lhe mal. O grande romance virá.
Agora A Ronda da Noite. Muito simplesmente, é uma obra-prima. Provavelmente, é também o melhor romance de Agustina. Isto não é um juízo eufórico, é um juízo, digamos, histórico. Porque esta obra-prima poderia ter sido escrita há oitenta ou cem anos atrás. Pelo tipo de personagens, eventos, reflexão e linguagem — nada em A Ronda da Noite nos abre directa e flagrantemente a contemporaneidade. Agustina não é contemporânea, é como as tragédias gregas – está lá tudo, só temos de “traduzir” isso para o nosso tempo e os nossos termos.
Com todos os riscos que isso envolve — e são muitos, e farão de nós, no futuro, críticos que erraram o seu tanto — um prémio de romance de 2006 deveria ler 2006 sem a mediação do “clássico”. É uma forma de dizer. Mas é a minha forma de dizer, e é a minha assinatura que está lá. E a assinatura, podendo ser entendida como vaidade (que também é) e como responsabilidade (que também), é mais radicalmente a marca da contingência.

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