Um vidrinho de cheiro não é um perfume em mais pequeno e mais barato.
Psicopatologia da vida quotidiana # 26
Já só os bancos são capazes de nos dizer, olhos nos olhos: você é o tipo de cliente que nos interessa.
Multiplex 30, take two
- Acreditas neste rosto como rosto que te dá a ver a urgência da actualidade?
- Sim, acredito.
- Um filme também é isso.
Multiplex 30, take one
- Vi-te muito como aquela jovem que tem a enorme urgência de fazer o filme sobre Berlusconi, Leitora.
- Sim?..
- A urgência de quem tem algo ainda para dizer, de quem não aceita desistir.
- Mas o problema até pode não ser bem desistir, mas conseguir dizer alguma coisa pertinente sobre alguém que apostou a sua carreira política precisamente na construção de uma personagem cujos principais atributos são a transparência mediática, uma suposta transparência mediática.
-Dizes bem, Leitora. A partir de um certo momento, a sobre-exposição mediática simula a transparência. Na verdade, esvazia o sujeito da sua história pessoal, e torna-o disponível para os vários e diferentes investimentos das massas. Berlusconi representado por quatro actores diferentes é a metáfora dessa disponibilidade e o que existe de arrepiante na recepção dessa disponibilidade: ninguém é publicamente, politicamente, o que Berlusconi foi sem encarnar alguns aspectos fundamentais das massas. Quer dizer, de nós.
- A velha questão de que cada país tem o governo que merece?
- Eu diria mais que tem o governo em que se reconhece. Parece o mesmo, mas é um bocadinho diferente.
- Menos moralista...
- E mais realista e possivelmente trágico.
- Mas do filme, Luís, não gostei assim muito. Quer dizer, dispara bem, mas em muitas direcções. À força de evitar as várias tentações, do documentário empenhado à metáfora burlesca, acaba por não conseguir acertar no alvo.
- Também achei. Mas o drama mesmo é que nestas coisas não há um alvo. Berlusconi, claro, era o alvo político do momento. Mas perde-se o essencial se se eleger Berlusconi como O Alvo. Tudo é mais eficaz em arte quando é indirecto. A carapuça fica lá para quem a quiser enfiar.
- E vê-se cada um a deitar-lhe a mão...
Rostropovitch
Não pugno por qualquer responsabilidade ética particular do artista. Como a todos nós, assiste-lhe o simples direito de cidadania de aos costumes dizer nada. Mas poucos, enquanto figuras públicas, estão em tão boas condições de um gesto ético pertinente — simbolicamente pertinente, entenda-se. A muitos anónimos terá apetecido tocar e cantar enquanto o Muro de Berlim era derrubado — e certamente fizeram-no. Mas nenhum deles se chamava Rostropovitch, nenhum deles poderia fazer com que um violoncelo transformasse um muro numa praia de pedras, primeiro, e numa maré de pessoas, depois. Nenhum deles poderia assim unir sem dominar, como só a arte é capaz.
Epifanias # 64
Uma trovoada, na noite de 24 de Abril, levou-me o router. Mas ainda trabalhei madrugada fora no Imac. Que a 25 de Abril colapsou, pedindo-me login e password — claro e grave erro do sistema, que sempre foi transparente na sua abertura. Agora, de portátil mais antigo e modem manhoso, depois de umas quantas tentativa e erro, a conexão. Não vejo nisto qualquer metáfora. O outro 25 de Abril já ninguém nos tira. Paciência para discursos de parlamento já não tenho há muito, desfiles não fazem o meu género nem vejo a urgência ou utilidade deles agora.
Li muito com Bach em fundo. Valha a verdade, nem sei bem porque vim aqui. Se calhar também não preciso de sabê-lo. Mas vim por mim. Volto à leitura.
Dar a volta à coisa # 10
Um rabo de saias não é a mesma coisa que um rabo de calças, mas a diferença está só na roupa e na “coisa mental”.
Dar a volta à coisa # 9
O bexigoso é que é o verdadeiro trinca-espinhas.
Dar a volta à coisa # 8
Ele nem é burro nem seria capaz de fazer-se.
Multiplex 29
- As saudades que tinha deste cinema, Leitora.
- Mas se tinhas saudades, é porque já houve este cinema. E isso é talvez mau para um filme de hoje, ver-se nele as saudades do cinema que já houve.
- Não é bem ver nele o que já houve, embora Antonioni nos ocorra muitas vezes. É sobretudo uma opção radical por um certo modo de fazer cinema. História minimal, embora razoavelmente identificável. Intensidade dos actores, da emoção dos seus corpos, dos seus rostos, dos seus gestos. Significação extrema da paisagem, a física e a urbana. E nós termos de preencher os espaços vazios com a matéria da nossa própria existência.
- E como foi?
- Como foi o quê?
- Como foi preencher os espaços vazios com a matéria da tua própria existência?
- Isso seria uma outra conversa, Leitora. Havemos de tê-la, mas não agora.
- E de quem gostaste mais, dele ou dela?
- Gostei da tristeza e do desespero de ambos. Gostei da sobrevivência de ambos.
- Mas no fundo, de quem gostaste mais? Qual deles és mais tu?
- Boa tentativa, Leitora...
Paisagens possíveis # 34 [créditos finais]
A todos os meus demónios, incluindo aqueles que tento expulsar.
Paisagens possíveis # 33 [cenas cortadas # 6]
Sei que o que sinto é bom, mas não tenho ainda nome para isso.
Paisagens possíveis # 32 [cenas cortadas # 5]
- Há certas coisas que só se descobrem muito depois. Vais dizer-mas, nessa altura?
- Não sei. Tu queres?
- Não sei. Logo se vê.
Paisagens possíveis # 31 [cenas cortadas # 4]
- Queres que eu parta? Devias pedir-me para ficar, pedir-me muito, para ser mais fácil eu partir.
- Não seria justo para connosco.
- E quem falou aqui em justiça?
Paisagens possíveis # 30 [cenas cortadas # 3]
- Nunca me perguntaste isso.
- Nem vou perguntar. É problema?
- Não. Acho que não. Não sei.
- Depois dizes-me, sim?
Paisagens possíveis # 29 [cenas cortadas # 2]
- Foi bom para ti?
- Queres que te faça um desenho? (riso)
Paisagens possíveis # 28 [cenas cortadas # 1]
- Tu achas que o sexo é sobrevalorizado?
- Não, o sexo está bem. E a frequência ajuda. O problema é encher os espaços antes e depois (riso).
- Problema?
- O amor, porra. Grande dificuldade, não é?
- E tão simples, quando pode sê-lo.
- Por isso, por isso.
Paisagens possíveis # 27 [genérico final]
...
The fire fades away
But most of everyday
Is full of tired excuses
But it’s too hard to say
I wish it were simple
But we give up easily
You’re close enough to see that
You’re... the other side of the world to me
Can you help me?
Can you let me go
And can you still love me
When you can’t see me anymore
The fire fades away
But most of everyday
Is full of tired excuses
But it’s too hard to say
I wish it were simple
But we give up easily
You’re close enough to see that
You’re... the other side of the world to me
...
KT Tunstall, The other side of the world
Paisagens possíveis # 26
Ele chamava-lhe gestos definidores. A forma como ela reservou para si tudo o que poderia ter dito acerca do princípio do fim. Como o olhava nos olhos e tacteava para além dele — o resto imenso da sua vida. Não importava o que isso pudesse querer dizer: a intenção dela ou o que ele julgasse. Ela tinha desenhado uma coreografia, atravessado o olhar, iniciado a história do mundo no seu tacto. Eles já não estariam lá, ela sim. De olhos bem abertos.
Paisagens possíveis # 25
Ela chamava-lhe gestos definidores. A forma como ele construiu aquilo a que chamava o quarto do princípio do fim. Esse olhar sereno que a atravessava e se perdia na luz da noite. A mão no seu ombro, quando ela acordava inquieta. Não importava o que isso pudesse querer dizer: a intenção dele ou o que ela julgasse. Ele tinha desenhado uma coreografia, interrompido por um breve momento o inevitável afastamento dos corpos depois do amor, iniciado a continuação da história quando eles já não estivessem lá.
Paisagens possíveis # 22
Não sabes. Mas melhor seria que fosse já outra história.
Paisagens possíveis # 21
E como sabes que o fim do fim não renasce?
Paisagens possíveis # 20
Quando decides. Quando decides e voltas a decidir por tempo suficiente. Quando já não precisas de voltar a decidir com tanta força. Quando te esqueces de decidir porque já está decidido.
Paisagens possíveis # 19
Mas quando se sabe que é mesmo o fim do fim?
Paisagens possíveis # 18
Paras. Mudas de direcção. Um parte, outro fica. Partem ambos, mas não um com o outro. Há tantas maneiras.
Paisagens possíveis # 14
Ele tinha desenhado uma coreografia, interrompido a normal proximidade dos corpos depois do amor, iniciado a continuação da história. Escrevia-lhe no corpo o princípio do fim. Também é história, até ao fim do fim, disse ele.
Paisagens possíveis # 13
Ela tinha desenhado uma coreografia, interrompido o olhar, iniciado a história do tacto. Escrevia-lhe no corpo o princípio do fim. Também é tempo, até ao fim do fim, disse ela.
Paisagens possíveis # 12
Há coisas que só vêm ter connosco muito depois, disse ele. Mas agora ele não queria descobri-lo depois. Queria sabê-lo desde já. As histórias começam quando ainda não sabemos delas. Não podemos alterar o começo, mas podemos sempre recomeçar. Foi o único momento em que ela ouviu desespero na voz dele. Ténue, como se fosse um engano, mas inconfundível. Também um pedido: não me obrigues a mostrar-to.
Paisagens possíveis # 11
Há coisas que só se descobrem muito depois, disse ela. Mas isso ela não queria descobri-lo depois. Queria evitá-lo desde já. As histórias começam quando ainda não sabemos delas. Não podemos alterar o começo, mas podemos alterar o final. Foi o único momento em que ele ouviu desespero na voz dela. Ténue, como se fosse apenas um pequeno acidente, mas distinto. Também um ultimato: não me obrigues a mostrar-to.
Paisagens possíveis # 10
O princípio do fim?, perguntou ele. Ela ficou em silêncio.
Paisagens possíveis # 9
O princípio do fim, foi isso que ela disse. Ele ficou em silêncio.
Paisagens possíveis # 8
Havia uma linha invisível, disse ele. Mas não saberia falar sobre o assunto. Pelo menos, não hoje, disse ainda. Nada os separava antes, excepto nunca terem pensado que fosse possível, assim, como se nunca tivesse sido de outro modo, naquela penumbra de quem já se sabe de cor. Nada os separava agora, a não ser que não sabiam bem como sair dali, como encontrar a ponte para a vida lá de fora. Ele, sobretudo, achava tão árdua a improbabilidade de todas as histórias, que se esforçava por nunca começar nenhuma. Temia o momento em que acontecesse. Porque ia ter dificuldade em parar antes do fim. E o fim não é apenas o preço a pagar, é a falência irremediável. Havia uma fronteira, e não estava entre eles. Não estava naquele quarto anónimo, num pé frio que procurava uma perna quente. Não, não era isso. Mas agora não quero pensar, disse ele. Abraçou-a e escondeu-se nos seus cabelos.
Paisagens possíveis # 7
Havia uma fronteira, disse ela. Mas não queria falar sobre o assunto. Tu percebes, disse ainda. Nada os separava antes, excepto nunca terem pensado neles assim, daquele modo, um ao lado do outro, naquela penumbra. Nada os separava agora, a não ser que não sabiam bem que fazer quando saíssem dali. Ela, sobretudo, achava árduo recontar as histórias em direcção a algo comum. Temia o momento em que isso começasse a acontecer. Porque ia ter dificuldade em parar. E nunca nada de bom poderia nascer daquela necessidade de serem os dois em contiguidade. Havia uma fronteira, e não estava entre eles. Não estava naquela cama, na pele quente que procurava a pele quente. Não, não era isso. Mas agora não quero pensar, disse ela. Abraçou-o e escondeu-se no seu pescoço.
Siga
Pouco há a dizer. Comprei ontem, pela última vez para os próximos (longos?) anos, o DN (que só comprava às sextas). Só para verificar mesmo que o 6ª tinha desaparecido. Nem comentei na altura o Ípsilon, que ficou raquítico na literatura e colaterais do defunto Mil Folhas. Há muitas maneiras dos berlusconis ganharem. A nós, resta-nos mesmo continuar.
A Leitora, no seu infinito particular (LVI)
- A tua questão não é o sangue nas unhas, pois não?
- É e não é. Não tenho essa experiência, mas o importante na experiência literal do sangue nas unhas não é o sangue nas unhas, mas o que isso significa. A vergonha de existirmos, de alguma forma. O morrermos um pouco, e ser tentador querer morrer tudo. Ou querermos matar, que é a mesma coisa, ainda que se pense que não. Mas espera, é isto e também não é isto.
- Eu espero.
- Há um tempo em que tudo o que vivemos é visto a partir daquilo que poderemos construir com isso que estamos a viver. Fazer planos, ter um projecto de vida, como se dizia.
- E?
- As coisas falham. É a coisa mais natural do mundo, mas é sempre inesperado. Terrível. Insuportável, de alguma forma. Sempre insuportável. Por isso as coisas mudam. Não é que deixes de fazer planos. Há uma parte da tua vida em que há sempre planos a fazer. Mas há também uma parte da tua vida em que agora vais apenas viver cada coisa por si própria. Acendes a vela para ler o livro, e isso não é parte do plano nacional de leitura. Estás só a ler o livro. Nem sabes se acabarás. Nem isso importa. Cada minuto de leitura é teu. Nada nem ninguém te roubará jamais a felicidade desse minuto. Não a somas para o futuro, não a conjugas no passado.
- Estás-me a falar da nossa diferença de idades?
- Sim e não, Leitora.
- Preferia quando tu citavas Celan: não separes o sim e o não.
Escrever contra # 4 [de certa forma]
— Faulques, o ex-fotógrafo, o pintor de batalhas, confessa que depois de assistir a uma cena de horror o que lhe apetece é fumar um cigarro, beber um copo, fazer amor... É algo que o faz voltar à vida, regressar à normalidade? Algo que Pérez-Reverte também faria?
— São consolos. É como uma aspirina, um analgésico. (Hesita). Não se pode mudar a dor, e drogar-se para a evitar é perigoso, porque a droga tira a consciência. O analgésico não. O analgésico permite saber o que é a dor, suportá-la e seguir caminhando. Se estiver drogado piso a mina. O cigarro, o copo, o que seja... dou tanta importância às coisas que nos fazem suportar a dor: a cultura, o livro. Quando estava em Sarajevo, depois de dias duros com 20 ou 30 mortos no telejornal, com sangue nas unhas, chegava ao quarto, acendia uma vela e sentava-me a ler no chão para que os franco-atiradores não me vissem pela janela. Ficava num canto, abria um livro e lia Stendhal, A Cartuxa de Parma, A Montanha Mágica, de Thomas Mann, O Leoprado, de Lampedusa, e o sangue das unhas tornava-se suportável. A palavra é tornar essa realidade suportável, chegar ao final e continuar suportando. O mundo não resiste, não há lucidez e a falta de lucidez torna as coisas insuportáveis... Se é Deus que está a organizar isto quero apanhá-lo e dizer “adonde está Dios que me voy a cagar en su puta madre!”. Quero organizar o caos, entender a sua simetria. Essa é a questão. É muito difícil de suportar. Por isso faz falta o cigarro, o amigo, o amor, o sexo, a cultura, o quadro... Florença.
Entrevista de Artur Pérez-Reverte ao Diário de Notícias, 13 de Abril de 2007
Paisagens possíveis # 6
O culpado, disse ele, dando-lhe o cd que ela pôs a tocar no portátil. Sorriram ambos. Depois ele foi para a casa de banho, mas a música sobrepunha-se à agua do chuveiro. Ela ia passando as imagens da sua pequena máquina digital. Desde a saída do restaurante todos os passos estavam registados, como se tivessem entrado num outro tempo. O que sabiam um do outro era recontado a grande velocidade, no mais recôndito da decisão que tinham tomado. Tudo tinha agora um outro sentido, e estavam a ser guiados para ele, para esse desconhecido a que não opunham resistência. Não ficaram naquele motel, decidiram-no também em silêncio. Retomaram viagem e foi a canção quem decidiu. Quando ouviu “e por vezes num segundo se evolam tantos anos”, ela disse: estes somos nós, põe outra vez. Quando a canção acabou estavam em frente de um hotel. Olharam e decidiram em silêncio. Ele beijou-lhe o ombro no elevador. Foi o primeiro beijo. Não iriam esquecer. Mas isso não precisaram de o decidir.
Paisagens possíveis # 5
O verdadeiro culpado, disse ela, mostrando-lhe o visor da pequena máquina digital. Riram ambos. Depois ela veio fumar para a janela. Esticava o cabelo entre dois dedos, o fumo tomava o seu tempo a sair. Ele ia passando as imagens. Desde a saída do restaurante todos os passos estavam registados, como se tivessem entrado num filme. Como se aquela história fosse de outros, eles apenas os actores contratados. A culpa fora do anúncio. Estava por baixo do menu, um folheto de viagens para o Brasil, tinha um dístico de um motel do Rio de Janeiro: “Mais vale à tarde do que nunca”. Ele riu-se, “não há como os brasileiros”, deu-lho a ler. Ela fotografou, ampliando cuidadosamente. Ele já estava a olhar pela janela, sério. Do outro lado da rua havia um motel, da mesma cadeia do restaurante, mas nenhum deles o notara até aí. Ela seguiu-lhe o olhar. Decidiram sem palavras e sem olharem um para o outro. Ele agarrou-lhe a mão que segurava a câmara, ela libertou dois dedos para apertar um dele. Já tinham decidido.
Paisagens possíveis # 4
Dormiu mal. Acordou muitas vezes e encontrou-a sempre ali. Respirando. Às vezes acordada também, interrogando-o em silêncio, consentindo. Tocavam-se, beijavam-se ao de leve, adormeciam de novo. Mas via perfeitamente o táxi que vinha buscá-la, a mala breve numa mão, o gesto discreto da outra. Haveria de dormir com a sensação forte de uma presença e dizer peremptório ao seu sonho que não havia lá ninguém. Só a luz que vinha de fora, da cidade em volta, e ruídos dispersos. Ficaria quieto, enovelado. Acordaria cansado.
Paisagens possíveis # 3
Dormiu mal. Acordou muitas vezes e encontrou-o sempre ali. Respirando. Às vezes acordado também, sorrindo por dentro, olhando-a. Tocavam-se, beijavam-se ao de leve, adormeciam de novo. Mas via perfeitamente o quarto a recuar, ele a esvanecer-se. Haveria de acordar com a sensação forte de uma presença e não haver lá ninguém. Só a luz que vinha de fora, da cidade em volta, e ruídos dispersos. Esticaria o braço, tacteando nada. Adormeceria de cansaço.
Paisagens possíveis # 2
Ele chamava-lhe gestos definidores. A forma como ela fechou os olhos quando lhe tacteou o rosto. Não importava o que isso pudesse querer dizer: a intenção dela ou o que ele julgasse. Ela tinha desenhado uma coreografia, interrompido o olhar, iniciado a história do tacto.
Paisagens possíveis # 1
Ela chamava-lhe gestos definidores. A forma como ele rodou, os pés para a cabeceira, e deitou o rosto nas suas pernas, ficando a olhá-la lá de baixo. Não importava o que isso pudesse querer dizer: a intenção dele ou o que ela julgasse. Ele tinha desenhado uma coreografia, interrompido a normal proximidade dos corpos depois do amor, iniciado a continuação da história.
Escrever contra # 3
Simples coincidência. Net em baixo, afazeres da vidinha, excesso de cansaço — não abras o computador. Mesmo se haveria dois exemplos maiores de contra a falar: o cartaz do Gato Fedorento, e o concerto portentoso de Bonnie ‘Prince’ Billy no Theatro Circo, na última quarta-feira. Mas não abras o computador.
Escrever contra # 2
Fecha o computador. Ouve o verde. Vê o verde. Cheira o verde. Ouve contra o verde. Vê contra o verde. Cheira contra o verde. Não abras o computador. Não escrevas ainda.
Escrever contra # 1
“O que acontece quando a realidade se torna ficção?
Como se descreve a realidade? O que se passa na nossa cabeça? Será que estamos sempre dentro do cânone da ficção? O que é a ficção do ponto de vista da experiência? A violência ou a justiça farão parte da ficção? (...) Vamos ler, escrever e tentar compreender por que razão escrevemos contra. Vivemos contra. Somos contra.”
Escrever contra, workshop que Mafalda Ivo Cruz vai realizar na Casa d’Os Dias da Água, de 9 de Abril a 2 de Maio, às segundas e quartas, das 17h às 20h [via Público de 16 de Março de 2007, Ípsilon, p. 45].