Sabes aquele momento em que as coisas mais estúpidas de repente significam tanto que até sufocam? Uma coisa tão estúpida, mas tão estúpida mesmo como aquele título piroso, as palavras que nunca te direi?
Driving Miss Laura # 7
Autógrafos. Sorrisos. A manager da editora, um pouco incrédula: mas acha mesmo que não estava nenhum padre na assistência? Mandei mails para tudo quanto era ecclesia, é braga... Miss Laura: não reconheci nenhum. Mas recebi agora esta mensagem de um padre amigo: pus-me a ler o seu diário e nem dei conta que passou a hora do lançamento, desculpe-me. Sorriram ambas.
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Driving Miss Laura # 6
Perguntas e respostas. Um livro que não queria ler, embora o tivesse escrito. Mas quem escolhe, quem pode escolher? Há dor que ensina, há dor que humilha e não faz sentido. Tomara podermos escolher. Há um medo que nos chama até onde não sabemos, há um medo que nos avisa com sabedoria. Tomara podermos distinguir. Perguntas e respostas. E aquela pergunta: vai haver mais volumes do Diário, não vai? Miss Laura sorriu.
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Driving Miss Laura # 5
Livraria Centésima Página, Braga. Cinquenta pessoas. Aparentemente, nenhum padre na assistência. Frederico Lourenço fala e leva uns papeis de que pede desculpa: “a autora diz no livro que prefere as comunicações faladas às lidas, estão a ver, é um problema...” Começa a chamar à autora Laura Ferreira dos Santos, acaba em Laura — é assim o movimento da interpretação, cogita no seu canto o motorista. Religião, doença, dor. Andamento autobiográfico sem auto-comiseração. A velha lição do mundo: a realidade é muitas vezes mais espantosa que a ficção. A melómana: ah, as cantatas de Bach, essa prova tão simples da existência de deus... Simpatia & provocação. Razões de queixa do catolicismo — sim, compreende-as, também as tem. Aliás... Aliás — talvez as tenha mais. Quem mais ostracizado? A Igreja comporta a feminista enquanto feminista, não o homossexual enquanto homossexual. Mas tudo está para além disso, sem que isso deixe de ser importante. No fundo, o combate com a descrença. A dor ensinou-a? É verdade que a dor nos pode aproximar do essencial? A palavra a si, Laura.
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Aula teórico-prática
Sim, estou a ler devagar, como se impõe. Tenho coisas a dizer, mas não tem de ser necessariamente aqui. Nem aliás em lado nenhum. Esse é o grau da minha liberdade, tenho-o compreendido nos últimos tempos. Mas não convém misturar as histórias, se bem que isso também não tenha importância por aí além. Entremos em matéria.
A páginas noventa e sete, um micro-conto intitulado “Maçã”. A gente lembra logo o conto inicial: “Literatura. Uma macieira que dá laranjas.” Re-começo, agora sem desvios? Pouco provável, ainda que já se tenha visto. Mas haverá sequer alguma ligação com o primeiro micro-conto? Virá esta maçã da primeira macieira, depois de ela ter dado laranjas? As perguntas poderiam continuar pachorrentemente especulativas, não fosse o livro estar ali aberto e haver conto (micro) por debaixo do micro-título. Nesta luta entre pensar/especular e ler, ler acaba sempre por levar vantagem — o que não é grave, apenas natural. Mais do que isso: necessário. Para depois se poder re-ler, que é uma forma já programática (ou será apenas consentida?) de pensar/especular. Portanto, “Maçã”.
A coisa é simples. “Um homem decide plantar-se no meio dos campos à espera de dar fruto”. Passados tempos, “uma prodigiosa laranja irrompe de um dos lados da cabeça.” Mas alguém explica que aquele fruto é afinal um pêssego. Não, um limão. Então o homem “Decide acabar com aquilo. Desfaz em pedaços a maça prodigiosa que tinha nascido da sua cabeça. E desta vez tudo se torna claro a seus olhos. E levantando a voz diz: «Então era isso!»”.
De alguma maneira, apetece re-começar: Literatura. Uma macieira que dá maças que parecem laranjas, não, pêssegos, não, limões, não, qualquer coisa cuja vantagem é poder ser desfeita em bocados, como qualquer fruto. E comida. Na evidência da digestão, pode acontecer que alguém diga: Então era isso. E era, de facto: uma forma de salada de frutas. Mais do que desvios — intercessões. E de como a coisa compõe sem compor uma teia de re-envios e de projecções: fatalidade incontornável de uns quantos micro-contos se encontrarem dentro de um livro. Perdão, de uma caravana.
Não é contagioso, mas pode ser viciante
Enquanto o informático não me vem ajudar na barra dos links, que isto está tudo pendurado por um fio, vou lendo com o café da manhã. E às vezes também com o da tarde.
Companhia nocturna # 8
Lentamente, vai-se desprendendo a música da poeira de lugares longínquos, do sol longo cheio de cores nítidas, até ser aqui esta noite de água — e a tua mão marinheiro [é um verso do Eugénio, não é? saltou tão nítido na frase que esqueci de todo o que ia escrever em seu lugar — sortilégios da música (e da tua mão)].
Bem me queria parecer
Estão definitivamente esclarecidas as diferenças programáticas que dividem Obama e Hilary. É tudo uma questão de antepassados remotos. Brad Pitt e Obama terão tido antepassados remotos comuns. Madonna, Angelina Jolie e Hilary terão tido também antepassados remotos comuns. O estudo não vai tão longe, mas é possível que os antepassados remotos de cada um destes antepassados remotos comuns tenham sido também comuns. E muito remotos. Para aí anteriores à descoberta da América. Cherchez l'europe... Ou por aí.
Cesário # 4 [arrumado]
Há uma falácia demasiado comum em estudos literários e que aparece em todo o seu esplendor neste livro de Filomena Mónica: é a que consiste em sublinhar o génio de um autor por cotejo com a paupérrima produção da sua época. Como se para a literatura fosse condição suficiente ter um olho em terra de cegos. Ou como se me valesse de alguma coisa ser o maior escritor da minha rua.
Qual a vantagem
de fazer críticas ou lá o que é que são maiores que os micro-contos, disse ela já sem hesitações.
Mas o problema
mesmo é por serem muito compridos, voltou ela a dizer.
Cesário # 3 [preparar para arrumar]
Este post esteve meio-escrito tempo demasiado. Foi sendo ultrapassado pelos acontecimentos críticos. Já tinha desistido. Mas não consigo arrumar o livro sem arrumar isto.
Comprei-o mal saiu. Um impulso. A beleza do livro enquanto objecto, a vontade de voltar a Cesário, o lado biografista. Nem o título desastrado me afastou, pu-lo na conta de marketing banal para hipermercado em tempo natalício e saltei por cima.
Pedro Mexia e António Guerreiro já há muito que puseram o livro no seu devido menor lugar.
A minha questão é outra. É Filomena Mónica reivindicar para Cesário um lugar icónico semelhante ao de Pessoa. Note-se que não se trata de dizer que Cesário mereceria um lugar canónico idêntico ao de Pessoa: essa questão judicativa estará sempre em aberto, como por definição o cânone o está, ainda que se apresente a mais das vezes como fechado — ou não fosse cânone, precisamente. A questão é reivindicar uma fortuna de público para Cesário como aquela de que Pessoa goza — o que já não é uma questão de literatura, mas de sociologia. Sociologia do gosto, seja — mas sociologia. Ora, enquanto questão sociológica parece-me óbvio que Cesário já não fala o “espírito deste tempo”, nem falará nunca o espírito de qualquer tempo que venha. Isto nada retira ao seu génio, apenas diz que esse génio viverá apenas naquele território em que a cultura permite traduzir para o tempo que nos calhou viver aquilo que o submete a crítica, que o põe em contra-luz.
Cesário descreveu um tempo que se fechou rapidamente, salvo duas ou três anotações fulminantes de pendor “metafísico”. Pessoa fez falar a matriz de um tempo que lentamente, muito lentamente, se vai fechando. Como é que uma socióloga não percebe isto?
Multiplex # 42 (dois)
Multiplex # 42 (um)
Nada de equívocos. Levantar-se de noite para regressar ao lugar do “crime”, levando água a um moribundo que não se socorreu em devida altura e que já deve estar morto, já foi episódio capaz de sustentar todo um filme sobre o edifício do rebate de consciência (ou desejo inconsciente de punição, tanto faz). Não é aqui o caso. Mesmo não regressando ao lugar do “crime”, ele seria sempre encontrado, é para isso que a mala do dinheiro tem um chip localizador. O capitalismo avançado não depende de rebates de consciência nem de dramas éticos, simplesmente dir-se-ia que avança mais depressa para os seus fins onde houver tais rebates ou dramas. Este mundo não é para velhas questões. Mais vale sair quanto antes e conforme se puder.
Aula teórica
Considere-se ainda o primeiro micro-conto de Rui Manuel Amaral in Caravana:
LITERATURA
Uma macieira que dá laranjas
O acerto da definição provém do grau de desvio: é suficiente, na medida em que se passa de um género a outro, mas mínimo, porque se mantém dentro da mesma família. Isto prova-se no supermercado, para não irmos mais longe: maçãs e laranjas estão no mesmo apartado, às vezes lado a lado.
A partir deste grau mínimo de desvio é possível gerar desvios cada vez maiores, dando conta da pluralidade das literaturas. Se considerarmos uma concepção do tipo “Literatura. Uma pereira que dá nozes.”, sendo evidente que estamos ainda em presença da literatura [o título não engana quanto a isso], o grau de desvio consideravelmente maior [basta atentar em que alguns supermercados têm frutas frescas mas simplesmente não têm frutos secos] indiciará, talvez, que entramos já em terrenos da para-literatura.
Por esta lógica, será possível também alcançar uma concepção razoável de não-literatura. Por exemplo: “Não-Literatura. Uma árvore qualquer que secou.” Ou ainda: “Não-Literatura. Uma árvore tão carcomida por dentro que nem se aproveita para lenha, mas que deu paulo coelho.” Esta última concepção, porém, tem a característica muito particular, deveras idiossincrática, de ser demasiado verdadeira, por isso singular, o que não será muito aproveitável quando se quer fazer sistema. São os limites da teoria, já se vê.
Aula prática
Considere o primeiro micro-conto de Rui Manuel Amaral in Caravana:
LITERATURA
Uma macieira que dá laranjas
- Discuta esta concepção de literatura perante outras concepções concorrentes, enquadrando-as na sistemática teorética do fenómeno literário.
- Examine a lógica contra-factual da inversão possível do micro-conto: “Literatura. Uma laranjeira que dá maçãs.”
Micro-ficção em andamento
Estamos tão habituados a sofrer ou a vergastar o absurdo do país, que nos esquecemos que há um absurdo maior, tão antigo quanto a humanidade e tão salutar quanto arreganhar os dentes à ordem do universo. Os micro-contos de Rui Amaral fazem-nos rir de uma forma metafísica e perfeitamente natural. Eis um autor que sabe que o absurdo é irmão gémeo da lógica do mundo, e não receia experimentar a sua companhia. Não há muitos em língua portuguesa. Devíamos tratá-lo como espécie protegida.
Isto foi o que escrevi para a contra-capa a partir da leitura das provas. Agora vou re-ler em livro — faz a sua diferença, como sabem todos os que gostam de livros. Depois eu conto.
De vez em quando # 2
De vez em quando a nostalgia. Natural como a luz ter a sua noite. [Eu sei, é um lugar comum. E de uma verdade duvidosa: quanta nostalgia em certas inclinações da luz, quanta paz em certos recantos de sombra.] Mas a nostalgia tem em nós o seu caminho próprio. E de Mayra Andrade passei num ápice a Bonny Prince Billy: and then I see a darkness, and then I see a darkness, and then I see a darkness, and did you know how much I love you, and then I see a darkness, and then I see a darkness, and then...
quatro movimentos
primeiro movimento: o carro entre montanhas e árvores
segundo movimento: a bicicleta entre montanhas árvores e água
terceiro movimento: os trilhos para o andar do corpo
quarto movimento: descansar no começo do mundo: água pedra vento
se isto tivesse tags: campo do gerês, mata da albergaria, dia mundial da poesia
Nunca veio
Vida e morte na Europa: Chantal, Claus, Kazemi
Também ontem, na vizinha Bélgica, o escritor, cineasta e pintor Hugo Claus, atingido por Alzheimer, pôde beneficiar daquilo que foi negado a Chantal: através de directiva antecipada, determinou o momento da sua morte, pedindo eutanásia, prática legalizada no país desde 2002.
Entretanto, Madhi Kazemi, jovem iraniano homossexual que corria o risco de ser deportado pelo governo inglês para o seu país de origem, aí enfrentando muito provavelmente a morte (como já acontecera ao seu companheiro), viu ser adiada a sua sentença. Para isso, muito terá contribuído a pressão de posições como as expressas entre nós por Eduardo Pitta (e vale a pena dizer que soube do caso pelo seu blogue antes de o saber pela Amnistia Internacional). Mas é preciso continuar a insistir.
A Europa em que me reconheço protege a vida dos perseguidos e ameaçados, dando-lhes condições para preserverar, e protege a ideia de vida dos que estão à beira da morte inevitável, concedendo-lhes o direito de morrer segundo os seus próprios termos e convicções.
E outra deriva, em todo o caso
Como uma ressalva. Porque o alentejo existe (é um exemplo empírico). Ou o mar (é outro exemplo empírico). A noite sobre o alentejo, a noite sobre o mar. Porque isso existe: a terra não se distinguir do mar no rumor da noite (é também um exemplo empírico). Existe ainda a noite por debaixo de mar e terra, curvando, erguendo o nosso sono até à manhã alta.
Em todo o caso, uma deriva nocturna
Como as unhas que crescem se retorcem sobre si mesmas, assim o mundo, tendo crescido até à sua completa globalização, se fragmenta para dentro de si próprio. Onde o navegador via o espaço aberto e sem sinais do infinito, ou o aventureiro no alto da montanha sentia a vertigem de picos infinitamente mais altos, há agora um labirinto acabrunhado que não é campo da imaginação ou do imprevisível mas apenas cansaço de uma viagem sem ponto de fuga.
Em todo o caso, dois poemas
recta
é o labirinto
porque
entre
cada dois pontos
está o infinito.
**
No metro
cruzam-se as pessoas
como cartas de jogar
postas sobre a mesa
Uma capa que vale o livro...
He never asked to be raised up from the tomb
Ninguém te perguntou nada, Lázaro. Se realmente querias ressuscitar. Pediram por ti, mas ninguém te perguntou nada. Estavas morto. E quem pediu por ti nada sabia da experiência de estar morto. but what do we really know of the dead & who actually cares?! Pediram por ti, mas ninguém te perguntou nada. E nada mais sabemos de ti. Como viveste depois, como morreste outra vez, o que disseste e o que calaste. dig yourself, Lazarus (dig yourself back in that hole).
Cinemateca 1 - Piercing 0
Portanto, para os que dizem que o governo endoideceu, responda-se-lhes que não é verdade, as partes cinematográficas estão bem e recomendam-se.
Multiplex # 41
Manter a conversa em dia
Da perfeição com improviso
Driving Miss Laura # 4
Autógrafos. Sorrisos. Noite adiantada. Regresso devagar. Miss Laura acha que correu bem, mas quer saber o que pensa o motorista. O motorista também acha que correu bem. Então Miss Laura quer saber o que foi melhor e o que foi pior. O motorista hesita. Mas sempre adianta que, talvez bem pesadas as coisas, o pior seja sempre o ter de haver ainda livros. Miss Laura não protesta, pergunta apenas do fundo do seu cansaço: e o melhor? O motorista acha que, bem pesadas as coisas, talvez o melhor seja também o ter de haver ainda livros. Miss Laura sorriu.
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Driving Miss Laura # 3
Perguntas e respostas. Cancro, sofrimento, mulheres na igreja, clericalismo patriarcal, cidadania, missas decentes, seres humanos decentes, diferenças de género e estereótipos, liberdade. A abrir, a oferta do “Pai Nosso” rezado pela comunidade, que começa assim: Pai nosso e nossa Mãe. Miss Laura sorriu. Quase a fechar, a pergunta e afirmação de José Manuel Pureza: pode haver cristianismo depois da barbárie sobre as mulheres e sobre a ciência? O cristianismo é parte da crítica ou parte do criticado? Do seu ponto de vista, o cristianismo é parte da crítica, desde que não se entenda por cristianismo as igrejas. Miss Laura sorriu.
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Driving Miss Laura # 2
Comunidade de Acolhimento João XXIII. Meio católico progressista, universitário. Predominância de mulheres. Trinta e cinco pessoas no início. Anselmo Borges começa por explicar como conheceu Miss Laura: troca de mails a propósito de textos de ambos no Público. Leitores mútuos. Entra na obra. O seu carácter intimista sempre dobrado de reflexão existencial. Os seus eixos críticos: crítica da universidade, crítica das instituições de saúde, crítica da igreja católica. Dá exemplos cáusticos, há risos francos. Mas também um livro construído a partir do sofrimento. Dá exemplos, e há um silêncio denso a toda a volta. Um livro que não teme as questões últimas, aquelas que são maiores do que as respostas que há. Descrença? Tremendo combate com Deus, mas é isso a fé. Raramente vi tanta fé num livro. E o anjo do acolhimento pairou sobre a comunidade.
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Driving Miss Laura # 1
Viagem em pausado cruise control, mas com duas horas de paragem forçada por despite de um pesado. Miss Laura aproveitou para se inteirar das últimas notícias sobre Chantal Sébire. Professora, 52 anos, mãe de três filhos, sofre há oito anos de neuroblastoma olfactivo, um tumor degenerativo raro (200 casos registados no mundo em 20 anos), incurável, que ocorre na cavidade nasal e vai deformando o seu rosto. Chantal Sébire já está cega, já perdeu o olfacto e o paladar, e sofre de dores atrozes. Através do seu advogado, entregou ao tribunal de Dijon um pedido de suicídio assistido e apelou ao presidente Nicolas Sarkozy. Chantal Sébire trava o seu último combate. O que parece mais estranho a algumas pessoas é que Chantal Sébire, ainda perfeitamente autónoma nos seus movimentos, não resolva as coisas por si mesma. Até a Ministra da Saúde francesa, depois de muito enfaticamente recusar qualquer alteração legislativa no sentido da eutanásia, diz como quem não quer a coisa que o suicídio é um acto individual que ela respeita. Miss Laura sorri melancolicamente e eu compreendo-a bem. Chantal Sébire não quer suicidar-se, Chantal Sébire está a morrer, o que é coisa bem diferente. Chantal Sébire quer ser tratada no seu sofrimento, tem esse direito. E reclama o direito a definir, segundo os seus termos e convicções, a fronteira a partir da qual o seu sofrimento não faz mais qualquer sentido para si mesma.
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Companhia nocturna # 5
Psicopatologia da vida quotidiana # 36
É de mim, ou o horóscopo devia elucidar-nos acerca do imprevisível? Tipo: você hoje sente-se bem, mas acautele-se, o céu vai desabar-lhe em cima da cabeça. Ou tipo, sei lá: você sente-se normal, mas vai sair-lhe o totoloto ou ser chamado para aquele emprego cuja entrevista nem chegou a acontecer. Qual a vantagem de o horóscopo nos dizer aquilo que já sabemos? A gente folheia o jornal enquanto toma o café da manhã e lá está: carta da derrota, o seu sistema nervoso anda fora dos gonzos, má onda em matéria amorosa, cautela com as finanças. E eu não sei? Hello!!
Companhia nocturna # 4
Ouves um pouco o vento, a impressão de chuva, os cães muito ao longe? Tudo é música. Suspiras, e não sabes se é uma angústia difusa que já há muito perdeu o nome ou apenas excesso de atenção ao duello. Respondem-te ambos, sem nada saberem de ti. Não há outra compaixão mais alta nem humanidade mais perto que essa música, pensas por momentos. O suficiente para caminhares para o sono, o vento um pouco mais longe, a vaga impressão de chuva, os cães quase inaudíveis. Mesmo o duello é já só um sussurro entremeado à tua respiração. E o suspiro aquele acorde em que ambos se extinguem para que do silêncio nasça outra música.
Multiplex # 40
Um dos poucos filmes sobre a temática do Holocausto, que me lembre, que mostra aquilo que Primo Levi disse sobre o carácter dos prisioneiros nos campos: que havia um pouco de tudo, tal como na vida em liberdade. A vantagem, aqui, é que esse pouco de tudo está logo no carácter da personagem central. A sua mágoa primordial, a sua cultura escondida, a sua vontade de sobreviver até contra si próprio, poderiam dar, noutro contexto, uma grande personagem. Mas não pode haver grandes personagens em cenário de Holocausto, ou qualquer coisa está mal. Fica, sempre, a vergonha de ser humano, que tudo contamina, e a dificuldade em continuar.
Il duello amoroso
WC Lectures # 21 & 22
A partir de Frederico Lourenço — muito certeiro e pertinente, quase sempre —, fui a Teofrasto — que presumo igualmente muito certeiro e pertinente, quase sempre. Mas há três diferenças substanciais, pelo menos três, que separam os caracteres de Teofrasto dos caracteres de Frederico Lourenço: o dracma desapareceu, os penates também, e algumas almas mais optimistas garantem que os escravos são igualmente coisa do passado. De resto, é tudo reconhecível. A mim deu-me para rir, coisa que os tais optimistas da frase anterior garantem ser prova de siso. Quem sabe, talvez tenham razão.
Multiplex # 39
A única referência à guerra, nas palavras da realizadora, são os momentos em que a luz vai abaixo no salão de cabeleira e é preciso ligar o gerador. No resto, aquela Beirute de mulheres parece o Portugal do fim do Estado Novo, até no tom de comédia agridoce.
Lateralmente: não sei se depilar com caramelo em vez de cera será diferença de civilização que justifique grandes tratados. Mas é diferença suficiente de cheiros e sabores para despertar a rêverie. Ok, fiquemos por aqui.
Companhia nocturna # 2
É por dentro da noite que esse momento chega. A solidão de um homem encostado a uma parede no escuro, sangrando devagar até morrer. Ao longe essa música tão de outra vida. Que ele ouve cada vez mais nítida, mais contígua à parede em que repousa. Próxima da harmonia de que tem uma memória vaga. Alegre e irónica de um modo tão desinteressado e alheio. Essa música, diria ele, se tivesse ainda palavras.