Contaminação

Antes de magnas questões como liberdade de expressão ou feedback das irreverências dos assalariados face à imagem do empregador, talvez conviesse saber se a coisa não se passa a um nível mais prosaico de simples, ainda que dissimulado, abuso de poder.
Daniel Luís é um assistente universitário, neste momento equiparado a bolseiro para realizar o seu doutoramento. O seu vínculo profissional é precário. Se não realizar o seu doutoramento vai para a rua. Se o realizar, terá um contrato provisório por cinco anos, findos os quais lhe será dada ou não a nomeação definitiva (se lhe for negada, irá também para a rua). No júri de doutoramento de Daniel Luís, a maioria dos membros será normalmente de pessoas do seu departamento. O parecer que determinará a sua nomeação definitiva será dado normalmente por pessoas do seu departamento. Se Daniel Luís fosse catedrático com nomeação definitiva deste departamento, e tivesse a sua actividade humorística na bloga, alguém imagina que o departamento se daria ao trabalho de reunir e exarar em acta conselhos de bom-comportamento a Daniel Luís? E mesmo que o departamento fizesse tal coisa (ele há sempre gente muito convicta do zelo académico), que impediria Daniel Luís de simplesmente afirmar que a sua visão de Academia e Universidade é diferente, ou de calmamente os mandar meterem-se na sua vida? Consequências dessa atitude de Daniel Luís caso fosse catedrático com nomeação definitiva? Em absoluto, nenhumas.
Mas Daniel Luís é um assistente. O elo mais fraco e dependente. Tão fraco e dependente que o departamento nem precisa de obrigar, aconselha paternalisticamente. Afirma a sua ideia de Academia e Universidade pretextando a transparência da sua posição, mas a verdade é que o departamento nem precisa de aceitar conviver com ideias diferentes ou vir discuti-las academicamente, caso Daniel Luís persistisse, porque tem sempre o doutoramento e a nomeação definitiva para o ajuste de contas. Todos sabem disto, e é precisamente isto que permite a “imaculada posição democrática” do departamento: aconselha, apenas.
Poder-se-á dizer que presumo intenções. Mas se as coisas não são assim, como é que a nenhum dos quinze (ou lá quantos são) doutorados do departamento ocorreu a simples ideia de que para dar um conselho amigo, e dirigido à inteira liberdade de alguém, não é preciso reunir um “tribunal”?
Infelizmente, tudo isto é muito antigo: o maior comanda o quase-maior, o quase-maior domina o menor, e o menor tiraniza o sem-poder. Com esta agravante tristemente irónica: um dos objectos de estudo deste departamento é precisamente esta escala demencial de exercício de poder, na sua vertente escolar e administrativa. Acho que foram contaminados.

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