Foi o mais longo tratamento anti-depressivo a que me sujeitei. Começou ainda antes deste blog nascer. Agora acabou. What a dam!
esboço # 14 [construções na areia]
A criança tem a intuição livre e perversa do jogo do mundo, desde que o imediato da sua sobrevivência não esteja em causa. É vê-la como constrói na areia da praia, como conjuga o cálculo firme do arquitecto, as mãos práticas do fazedor e o espírito gozoso e cruel de um deus antiquíssimo— ela sabe e deseja a onda destruidora que tudo varrerá, sem esse lance derradeiro a sua brincadeira não se dará por terminada e a birra é certa. É o adulto, vergado ao dever de protecção e que esqueceu já as delícias e a impertinência de não ter futuro próprio, quem recomenda mais uns muros em volta do castelo e um túnel que desvie o ataque das ondas. Não há nada de idílico nas brincadeiras entre crianças e adultos a não ser que os adultos se esqueçam de si mesmos — coisa que, bem o sabemos, tem perigos demasiados para ser recomendável.
esboço # 13 [coisas práticas]
Nós sabemos que não nascemos para sermos compreendidos, mas para compreendermos; ninguém nos conhece, e vamos triunfando no conhecimento do mundo. Como todas as verdades ingratas, isto é inaceitável e até um pouco ininteligível; mas como todas as verdades da nossa condição, é assim que as coisas acontecem, e a nossa vontade rápido ladeia os obstáculos intransponíveis para se fixar em coisas práticas.
esboço # 12 [Fausto, uma ressalva]
Também pode acontecer que Fausto, já investido dos novos poderes que o pacto diabólico lhe outorgou, tenha escolhido Margarida porque a amava deveras. Se um jovem não confia nos estritos poderes da ciência e por isso pactua, bem menos razões terá para confiar que os desejos do seu coração sejam correspondidos por uma coisa tão lábil quanto um ser humano (e sublinhem que eu não digo humano e ademais mulher). A um jovem assim, quanto mais ama mais lhe parece impossível a concretização desse amor, e Fausto era seguramente um jovem desses. Goethe é que não o compreendeu, e por isso Margarida em nada interfere no confronto posterior entre Fausto e Mefistófeles. Goethe já tinha arrumado o amor com o jovem Werther, pensava-se livre para o confronto desassombrado com o conhecimento. Fausto poderia ter ensinado Goethe sobre os limites do amor, com o que talvez tivesse antecipado alguns lances que Cronenberg inscreve em A mosca, essa sim uma verdadeira história de amor a expensas do conhecimento. Mas creio que Goethe era demasiado orgulhoso para se deixar ensinar por uma personagem masculina, o que é dizer que se detestava em demasia para aprender com as suas humilhações reais, preferia o desvio da autobiografia interposta e idealizante. Isto em nada diminui o seu génio, e esse é o maior mistério.
esboço # 11 [uma suspeita]
O lapsus é uma afirmação mais franca do que a mais transparente e literal confissão, mas não se deve assentar sobre ele qualquer juízo de carácter. O inconsciente humano é um fardo, todos o sabem, melhor é tratá-lo como o trânsito intestinal, remetendo-o para wc’s limpos, desinfectados e com algum design avançado. Em todo o caso, o lapsus pede interpretação, e não é preciso ser freudiano para saber que qualquer análise toma as suas demoras na exacta proporção da delicadeza das matérias. Pode-se, assim, sair incólume de um lapsus, mas não sem um vago odor de suspeita. Bem administrada, uma suspeita é rentável na troca social, porque nos distingue com capacidades vagamente temerárias — isso basta para que alguns se predisponham a dar-nos aquilo que talvez nem pensássemos pedir-lhes.
esboço # 10 [o respeito por um adversário]
A comunidade política aborrece a franqueza. Como lhe falta imaginação para o pensamento verdadeiro, põe toda a sua esperança na intriga e no puzzle palaciano, essa espécie de telenovela do espaço público. Ora a franqueza cerceia toda a efabulação, porque coloca a comunidade perante o facto consumado e escandaloso de alguém pensar exactamente o que diz. A franqueza não se presta a interpretações, apenas a leitura, embora esta distinção seja em regra impossível de estabelecer e não seja prudente defendê-la nos fóruns da especialidade. Sem a efabulação, uma comunidade não pode treinar o sentido do seu futuro. A franqueza quer-se apenas na vida privada, ainda que dentro de limites práticos que não ponham em causa a reserva que cada um deve a si mesmo. Para estes efeitos, o amor está para os sujeitos como a política para a comunidade, ambos foram inventados para dar forma e contenção ao desejo e à violência. O respeito que se tem por um adversário, que é a consideração exacta da sua inteligência e da sua capacidade de fazer o mal, convém que seja ainda maior dentro do círculo do amor, porque o estado de indefesa é aí de regra. Não é por acaso que quando o amor se faz notar na cena política todas as histórias terminam em escândalo e sangue. Na verdade a política liberta o inconsciente violento e ancestral do amor, quando ele era a forma política de administrar uma comunidade reduzida ao mínimo, como no caso de Adão e Eva, que geraram filhos na discórdia e no confronto: onde poderiam Abel e Caim ter aprendido a inveja e a rivalidade, se não tinham outros modelos a não ser os pais?
Quem disse que este era o mês mais cruel?
A caravana estacionou na Colóquio Letras.
A vida com árvores # 5
O jardineiro, imitando o meu ar sério de completa ignorância destas coisas: Esteja descansado, sr. doutor, tecnicamente, a laranjeira pegou.
esboço # 9 [desproporção]
Grave seria, na Primavera, os pássaros não voltarem ao primeiro plano das árvores e as noites encurtarem. Os ciclos da natureza são-nos tão breves e tão certos na sua repetição, que nos esquecemos que também o universo muda irreversivelmente quando considerado na escala de grande duração. Decerto intuímos que tudo se encaminha para um fim generalizado e derradeiro, mas não há meio de sabê-lo com certeza, tal a desproporção entre a paciência vagarosa da vida e a ironia com que o nosso corpo se apressa a levantar graves suspeitas sobre qualquer desejo de perdurar.
esboço # 8 [mesmo ao cair do pano]
Cair em desuso não é tão grave assim, ainda que algumas pessoas se sintam despeitadas ou ameacem deprimir quando saem das primeiras páginas da vida. Mas porque haveria o mundo de não procurar novos motivos de distracção, se foi essa a lei que nos permitiu nascer? A bênção do anonimato e, sobretudo, a desobrigação de corresponder às expectativas próprias e alheias, bem pode ser o pequeno quinhão de liberdade que nos é oferecido mesmo ao cair do pano.
esboço # 7 [essa pequena varanda de superioridade moral]
Aquele ar triste e de profundo desprezo durou até perto dos cinquenta, quando por fim percebeu que o mundo rolava em silêncio segundo um destino que estava bem para lá das acções e das expectativas humanas. Achou-se um idiota por não o ter compreendido há mais tempo, mas logo se acautelou contra esses despropósitos da auto-recriminação. Devia antes dar graças pela astúcia bondosa do mundo, pelo engenho posto em enganá-lo sem lhe exigir crenças que poderiam ter sido terríveis. A verdade é que uma tal lucidez antes do tempo tê-lo-ia simplesmente destruído, a ele e aos que estavam à sua volta. Essa pequena varanda de superioridade moral em que se sentava todos os fins-de-tarde, observando clinicamente as misérias humanas e a indiferença quase generalizada aos ditames da consciência recta, eram afinal a aliança possível com essa verdade negra que agora se sentava à sua frente e que finalmente podia olhar face a face. Nada na sua vida fora mais perturbador do que este reconhecimento, que afinal não era tardio porque o trajecto da verdade é necessariamente longo e constituído de insuspeitas partes de logro. Cabia-lhe agora ser cúmplice no enredo. O seu lado estava escolhido há muito, e compreendeu rapidamente as consequências. Na lucidez de que era capaz, a tristeza tornava-se afirmação céptica e o profundo desprezo compunha uma bondade não sentimental que reclamava justiça reparadora, não para o mundo mas para as acções dos humanos em trânsito pelo mundo. Sabia sobejamente que pequenos nadas o teriam de reparar a ele, mas tinha muito por onde escolher desde que se dispusera a encarar a inteligência humana como acaso fortuito e não como exigência da vida. Como alguém mais afoito diria, cortando cerce os devaneios da literatura, ele tinha escolhido olhar o seu copo como meio-cheio, guardando exclusivamente para a sua solidão protegida as conversas com o vazio restante.
esboço # 6 [Fausto]
Já não sei quem disse que Fausto é uma personagem pouco crível, porque depois do pacto com o Diabo, podendo ter a mulher que quisesse, escolhe uma Margarida, criada de estalagem, que já estava ao alcance dos seus poderes simplesmente humanos. É bem observado, mas parece que Goethe tinha medo das mulheres da sua estatura social, e procurava em criadas ou cortesãs aquilo que não poria em causa a sua virilidade. Há sempre algo de obscuro nos caminhos da libido, e pode-se imaginar com facilidade que Goethe se atreveria com essas mulheres a ser o diabo erótico que as fantasias masculinas lhe imporiam que fosse. Mas esta espécie de travestimento numa personagem de ficção de alguns pequenos segredos da vida íntima não diminuem Fausto. A obra de criação não tem um sentido dado, mas um percurso que recolhe dos percalços do tempo e das civilizações motivos que incorpora como se fossem seus de pleno direito. Por isso Fausto nos aparece hoje como um desses jovens cientistas geniais que vendem às grandes corporações todos os resultados futuros da sua alma exploradora. Em troca, querem em salário e tempo de antena aquilo que os aproxime dos ídolos de futebol, o que talvez seja desejar ainda menos que uma Margarida. Ou então, o que até é bem mais perturbador, Fausto fez um pacto diabólico com toda a possibilidade de conhecimento estritamente tecnológico, ao preço de uma ignorância deveras perigosa em todos os outros campos. A lenda amável do cientista distraído dos negócios do mundo, ou portando-se como uma criança inocente nos meandros do poder e do amor, reescreve-se na América imperial na vida de quadros altamente qualificados que militam em seitas fundamentalistas e carismáticas. Como Goethe bem compreendeu, não há pacto diabólico para a sabedoria, apenas para o poder, sob todas as suas formas. O seu Fausto era um ser isolado, Margarida uma rapariga inofensiva que merecia talvez um homem mais apropriado, e de toda a ilusão que ali se desenrola se pode extrair alguma moral proveitosa. Os Faustos de hoje são membros do corpo orgânico da ciência, Margarida não entra na história, e as seitas fundamentalistas e carismáticas pretendem que o poder seja tomado como detentor da única sabedoria. Enfim, os tempos estão mais perigosos.
esboço # 5 [mulher prática]
É verdade que tudo aquilo nascera por tédio e falta de imaginação. Ela escolhera-o ao acaso, por estar mais perto naquele momento, sem sequer apresentar à sua consciência a desculpa de querer alargar o seu campo de experiência. Era uma mulher prática e lúcida acerca das suas limitações. Por isso não se perdoou que dali tivesse nascido uma paixão e um desejo que parecia resistir a todos os cálculos da razoabilidade. Era demasiado obscuro para ser confiável. Não se surpreendeu que lhe fosse tão difícil terminar. Mas também nisso era uma mulher prática. Sabia que, uma vez tudo acabado, poderia cobrar à sua consciência um luto razoável e até permissivo em outras maldades mais inocentes.
esboço # 4 [D. Juan]
D. Juan era um narciso, como todos os que ousam alguma coisa, mas sem coragem de se olhar a um espelho vivo. Seduzia e partia, e essa fuga, que os modernos interpretaram como perseguição da morte, era um pretexto como outro qualquer para evitar medir a sua importância junto das mulheres. A qualidade de uma entrega erótica ou da conversação que a rodeia não se mede tanto por elas mesmas mas pelas coisas mais interessantes que se poderiam estar a fazer em vez disso. D. Juan nunca se permitiu saber desse veredicto nos olhos das mulheres que conquistava. Nunca soube se a mulher que tinha nos braços deixara por ele um romance a meio, interrompera uma receita imaginosa e irónica, ou se simplesmente viera por tédio e despeito de coisa vaga.
esboço # 3 [garotos]
Tinha um ar irado, como se o mundo fosse um desses garotos que não sabem portar-se à mesa e estragam todos os brinquedos em que tocam.
esboço # 2 [invariavelmente largas]
Era um desses homens tenso num corpo magro mas musculado, a quem as camisas pronto-a-vestir ficavam invariavelmente largas. Apanhava-as nas costas, dobrando-as como se faz nos manequins, e apertava-as sem folgas por dentro das calças. Andava sempre direito e liso, parecia um lord ainda não assaltado pelo tédio incurável da meia-idade ou, mais ao perto, um gestor que talvez não desdenhasse a frequência das passerelles. Porém, não era nenhuma dessas coisas.
O plot
Extraordinária imagem, a de Putin relatando a Medvedev as suas impressões da frente de guerra. Mais do que aquilo que é dito (a intervenção russa travou o genocídio étnico em curso na Ossédia do Sul), impressiona o cenário calculado para correr mundo. O despojamento tecnológico do face a face dos dois homens, reunindo em si um poder sem mediação e sem ressalvas; e a sóbria e antiga riqueza do salão onde tudo se desenrola, pronta a fazer da linhagem uma legitimação que se confunde com a própria natureza das coisas. A Rússia é um império antigo que está naturalmente de volta — eis o plot da peça que ali se desenrola. Não há quem não o perceba.
esboço # 1 [sucessivas revisões]
Tinha planeado atirar-se da janela e não voltar a tocar no assunto. Faltava apenas acertar um ou outro pormenor e decidir se levaria a fronha da camisa por fora ou por dentro das calças. Punha escrúpulo em todos os seus actos e isso atrasava-o no seu dever com justificações inatacáveis. Provavelmente, submeterá o seu plano a sucessivas revisões e não chegará nunca a executá-lo. A tanto chega a sua perfeição moral.
Foto-finish # 10
Mudam mais as razões que as conclusões que elas permitem alcançar. Quando escrevia que estamos sempre a ponto de começar, era a mistura da força final da juventude com o estoicismo de um corpo já sitiado pelo exército do tempo. Hoje, que a cidadela já foi há muito tomada, repito a conclusão por mistura de outras causas, ou de outros paradoxos: saber que bem poucas coisas (quase nenhumas) chegam realmente a começar, e que talvez aquilo a que chamamos começar seja apenas equilibrar-se num passo que por descuido, alegria excessiva ou força mal medida, escorregou para outro caminho.
Foto-finish # 9
Foto-finish # 8
O que sabes nunca chega para preencher o espaço que te separa do teu passado. Ou do teu futuro. E sabes tudo. Os segredos são pequenos acidentes, partículas de pó naquela inclinação da luz. Pouco importam. Sabes tudo, e não é suficiente. Nunca será. Mas percebe-se que também isso pouco importa à medida que.
Foto-finish # 7
Foto-finish # 6
Foto-finish # 5
A mão esquerda.
Dizem que a aliança se coloca na mão esquerda porque cada um dá a guardar ao outro a sua parte maldita. É provável que um cristianismo que queria ocupar todo o território pagão entendesse nessa parte maldita o dionisíaco, levando assim a sexualidade para a esfera da ordem. É provável que um cristianismo já mais desembaraçado dos terrores do corpo entenda nessa parte maldita tudo o que em nós está destinado a falhar, propondo esse escândalo verdadeiro de acolher no amor o que mais lhe resiste — os defeitos do outro, as imperfeições que nos ferem porque também nos espelham cruamente.
Mas esta mão esquerda. Esta. A tua. À medida que a luz toma o teu corpo enlaças o teu passado escurecido. Enlaças, levas para dentro de ti. Definitivamente. Sempre à medida que.
Foto-finish # 4
À medida que a luz toma o teu corpo escurece o teu passado.
É o único mecanismo possível. Deves verificar a exactidão do movimento até à sua completude. Diz-se esquecer, apagar, remover o passado. Devia-se dizer outra coisa — mas que outra coisa? É o que há para dizer, e a impropriedade das coisas existe tão-só para que saibamos profundamente que não podemos nunca esquecer, apagar ou remover o facto de sermos humanos. Esse desamparo da luz e do negro que reparte a vida de forma desigual — a vida à medida que vai sendo vida.
Foto-finish # 3
Esquecer, apagar, remover o passado.
À medida que te despes, que a alça tomba mais, depois a outra, que os teus braços se afastam ligeiramente do corpo (apenas o suficiente para que o vestido caia), à medida que a luz toma a tua pele e escurece o mundo em volta — um processo lento, uma luz diferente (tão diferente a luz de cada olhar, tão diferente o sol pela janela ou os olhos de que te suspendes).
À medida que — tem o seu tempo próprio, medido por ti (o teu medo e angústia), pelo desconhecimento que a todos nos assiste, mas é exacto e inexorável no seu mecanismo.
À medida que.
Foto-finish # 2
Isto não é uma parábola. O mais interessante é quando nem a foto-finish consegue determinar o vencedor. Juízes de pista, atletas, representantes oficiais dos atletas ou dos países que os atletas representam, o mundo todo a olhar o negativo da realidade instantânea da chegada e abanando a cabeça em inconclusão. Isto é o mais interessante. O que nunca acontece, o que desde milénios está fora do acontecimento, é alguém perguntar-se se a ordem de chegada (ou de partida), se a ordenação (ou a estrutura), tem essa importância. Dir-se-á que uma inconclusão, ou várias que sejam, não invalida a ocorrência estatisticamente relevante de haver um vencedor. De facto, não invalida. Mas não era disso que falava. Uma inconclusão poderia levar-nos a levantar a pele da realidade. Mas também não estou bem certo de ser disso que estava a falar.
Epígrafe
A vantagem das histórias sobre o Acontecimento é que as histórias se podem repetir mil vezes, e mais mil vezes ainda — assim o tempo passa e a realidade se apaga docemente. O único problema das histórias é que elas não são o Acontecimento, e a cada mil vezes que se repetem impedem-no de acontecer. Mas o silêncio, que permite esperar e não impede o Acontecimento, tem como preço o vazio.
Reloaded # 4
- Sabes remover as vísceras?
- Não.
- Sabes por que se deve remover as vísceras?
- Não. Deve-se, mesmo?
- Sim.
- Se tu o dizes...
Reloaded # 3
- Nada nem ninguém.
- Eu sei. É essa a tua força.
- E a minha solidão.
- Mais do que isso. É a possibilidade do equívoco mais funesto. Quanta mais força fazemos, mais rejeitamos o que conhecemos e nos podia valer e mais ficamos à mercê do desconhecido que nos pode derrotar.
- Devo esperar alguma coisa ou alguém?
- Esperar predispõe igualmente para o equívoco, precipita a leitura dos sinais.
- Fico então com o nada nem ninguém, mas segundo um princípio de incerteza.
- Que não te preserva dos equívocos.
- Já tinha percebido.
Reloaded # 2
-Vês alguma coisa comum em todos os sítios onde estivemos?
- Comum?
- Sim, comum.
- Mas foram sempre sítios tão diferentes.
- Sítios de chegada. Para nós, foram sempre sítios de chegada. Becos sem saída. Nunca partimos dali para nenhum outro lado, nunca continuamos a partir dali.
- Não eram os sítios, éramos nós.
- Mas passou para os sítios. É mais fácil deixar os sítios.
- E então?
- Nada. É mais fácil deixar os sítios.
Siameses
Às vezes cruzamo-nos connosco próprios numa vida paralela. Reconheci-o pela camisa. Era a coqueluche há tantos anos atrás que já nem me lembra quantos. Estampados tropicais talvez da altura em que a classe média começou a alcançar destinos mais exóticos. Moda rápida, no verão seguinte já vestia os trabalhadores da construção civil. A barba descuidada, a calvície em progressão. Sem disfarçar ao que vinha, apenas carregar o caixão e deitar terra para o buraco. Entrou pela igreja como por um caminho para o trabalho. Sem olhar ninguém, uma mistura de tédio e ira no semblante. Depois da primeira pazada acendeu um cigarro sem qualquer hesitação. Não o vi sair. Mas revi o lance de dados que deve ter existido num qualquer momento do destino, quando nos separaram para nascermos.
A vida que se quer
É a crispação da vida que mais está presente num funeral. A forma como se resiste para além dos discursos de circunstância e da falta de discurso. A forma como se rompe a culpa de continuar vivo e se afirma um apego que não nos salvará de nada a não ser de implodir. O irrisório de cada um — e isso ser a vida. A vida que se quer.
Segunda parte do jogo de berlindes
Nada melhor que política de trazer por casa para nos distrair do essencial. Pelo que insisto, pelo menos mais um post. Diga-se desde já que não faço a mínima ideia do que está em causa no estatuto político-administrativo dos Açores, nem quais as oito inconstitucionalidades verificadas, nem ainda que outras coisas incomodam Cavaco na dita cuja lei. Mas já me espanta o dedo apontado à Assembleia da República por ter aprovado por unanimidade uma lei que mereceu oito "chumbos" do Tribunal Constitucional. Na minha inocência, eu pensava que a Assembleia da República legislava em termos políticos, sem ter de se preocupar aprofundadamente com a constitucionalidade do que aprovava, porque para isso existe o Tribunal Constitucional. Na minha inocência, eu até pensava, imaginem, que se por acaso se gera uma unanimidade política que se vem a saber que é inconstitucional, a conclusão política a tirar seriam duas: a) que há condições políticas para, sobre essa matéria, proceder à alteração da constituição; b) que enquanto tal se não fizer, é preciso alterar a lei no respeito da constituição vigente. Mas como se vai vendo pelo andamento de alguns comentários, a minha inocência é tal que só pode mesmo ser estupidez.
E aos costumes disse berlindes
Como qualquer miúdo que tenha derrotado ao berlinde os tubarões do lugar, Cavaco empertigou-se e decidiu contar a todo o país o seu grande feito — que o Tribunal Constitucional lhe deu razão oito vezes oito. Mas o jogo do berlinde é coisa por demais palaciana, mesmo quando ganho oito vezes oito, e assim, para não correr o risco de o povo ignaro não lhe ligar pevide, preferiu tratar o povo como incauto, prometendo-lhe nebulosamente uma comunicação importante. Oito vezes oito é importante, eis o que disse Cavaco. Ao que acrescentou: eu sou importante e velo por manter a minha importância. Enquanto Presidente da República, claro. E foi tudo.
Alguns senhores comentaristas, que não gostaram que outros senhores comentaristas tivessem dito que a montanha tinha parido um rato e outros mimos, vieram-nos dizer que se a causa da vitória oito vezes oito tivesse sido a Madeira e não os Açores, tinha havido um enorme rebuliço ainda antes da vitória ter sido proclamada. Eu acho que esses senhores comentaristas têm toda a razão. Se há gajo danado para o rebuliço, é o Alberto João. E acho também que esses senhores comentaristas têm razão em mais algumas coisas: uma região autónoma que já teve Mota Amaral e agora tem Carlos César, que tem dívida externa controlada e não recebe reprimendas do tribunal de contas, é uma região autónoma que corre sérios riscos de passar por democrática. Em suma, um desaforo.