Já não sei quem disse que Fausto é uma personagem pouco crível, porque depois do pacto com o Diabo, podendo ter a mulher que quisesse, escolhe uma Margarida, criada de estalagem, que já estava ao alcance dos seus poderes simplesmente humanos. É bem observado, mas parece que Goethe tinha medo das mulheres da sua estatura social, e procurava em criadas ou cortesãs aquilo que não poria em causa a sua virilidade. Há sempre algo de obscuro nos caminhos da libido, e pode-se imaginar com facilidade que Goethe se atreveria com essas mulheres a ser o diabo erótico que as fantasias masculinas lhe imporiam que fosse. Mas esta espécie de travestimento numa personagem de ficção de alguns pequenos segredos da vida íntima não diminuem Fausto. A obra de criação não tem um sentido dado, mas um percurso que recolhe dos percalços do tempo e das civilizações motivos que incorpora como se fossem seus de pleno direito. Por isso Fausto nos aparece hoje como um desses jovens cientistas geniais que vendem às grandes corporações todos os resultados futuros da sua alma exploradora. Em troca, querem em salário e tempo de antena aquilo que os aproxime dos ídolos de futebol, o que talvez seja desejar ainda menos que uma Margarida. Ou então, o que até é bem mais perturbador, Fausto fez um pacto diabólico com toda a possibilidade de conhecimento estritamente tecnológico, ao preço de uma ignorância deveras perigosa em todos os outros campos. A lenda amável do cientista distraído dos negócios do mundo, ou portando-se como uma criança inocente nos meandros do poder e do amor, reescreve-se na América imperial na vida de quadros altamente qualificados que militam em seitas fundamentalistas e carismáticas. Como Goethe bem compreendeu, não há pacto diabólico para a sabedoria, apenas para o poder, sob todas as suas formas. O seu Fausto era um ser isolado, Margarida uma rapariga inofensiva que merecia talvez um homem mais apropriado, e de toda a ilusão que ali se desenrola se pode extrair alguma moral proveitosa. Os Faustos de hoje são membros do corpo orgânico da ciência, Margarida não entra na história, e as seitas fundamentalistas e carismáticas pretendem que o poder seja tomado como detentor da única sabedoria. Enfim, os tempos estão mais perigosos.
esboço # 6 [Fausto]
Luís Mourão
13.8.08 |
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