Aquele ar triste e de profundo desprezo durou até perto dos cinquenta, quando por fim percebeu que o mundo rolava em silêncio segundo um destino que estava bem para lá das acções e das expectativas humanas. Achou-se um idiota por não o ter compreendido há mais tempo, mas logo se acautelou contra esses despropósitos da auto-recriminação. Devia antes dar graças pela astúcia bondosa do mundo, pelo engenho posto em enganá-lo sem lhe exigir crenças que poderiam ter sido terríveis. A verdade é que uma tal lucidez antes do tempo tê-lo-ia simplesmente destruído, a ele e aos que estavam à sua volta. Essa pequena varanda de superioridade moral em que se sentava todos os fins-de-tarde, observando clinicamente as misérias humanas e a indiferença quase generalizada aos ditames da consciência recta, eram afinal a aliança possível com essa verdade negra que agora se sentava à sua frente e que finalmente podia olhar face a face. Nada na sua vida fora mais perturbador do que este reconhecimento, que afinal não era tardio porque o trajecto da verdade é necessariamente longo e constituído de insuspeitas partes de logro. Cabia-lhe agora ser cúmplice no enredo. O seu lado estava escolhido há muito, e compreendeu rapidamente as consequências. Na lucidez de que era capaz, a tristeza tornava-se afirmação céptica e o profundo desprezo compunha uma bondade não sentimental que reclamava justiça reparadora, não para o mundo mas para as acções dos humanos em trânsito pelo mundo. Sabia sobejamente que pequenos nadas o teriam de reparar a ele, mas tinha muito por onde escolher desde que se dispusera a encarar a inteligência humana como acaso fortuito e não como exigência da vida. Como alguém mais afoito diria, cortando cerce os devaneios da literatura, ele tinha escolhido olhar o seu copo como meio-cheio, guardando exclusivamente para a sua solidão protegida as conversas com o vazio restante.
esboço # 7 [essa pequena varanda de superioridade moral]
Luís Mourão
14.8.08 |
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