Epifanias # 14 [coisas de um ateu pós-crítico]

Oração para antes do estudo

Dai-nos, Senhor, um coração humilde.
A inteligência de aceitar agora
que só a si o estudo se ilumine
e nele se esqueça o estudante. A cópia
do que estudarmos em nós viva, a fim de
que apenas o estudado seja porta.
E luz aberta por onde entrem livres
aqueles cuja alegria é obra
de compenetração que, sem limites,
se entrega. Fica com seu dentro fora.
Ilumina, Senhor, a inteligência de ir-se
esquecendo cada qual no que se mostra.

Fernando Echevarría, Epifanias, Assírio & Alvim, 2006, p. 7


Sim, eu sei, o estudo não se ilumina a si mesmo, nem nele se esquece o estudante. Li Marx e Freud, e Nietzsche contra ambos e para além de ambos. Sei coisas de superestrutura económica, infraestrutura inconsciente e apego às metáforas de si mesmo como deus. Sei que pela porta aberta entram os nossos interesses — os reais, os desconhecidos, os contraditórios, os suicidas — e a nossa ignorância fecha a porta quando a julgamos escancarada. Sei que esquecermo-nos naquilo que se mostra é uma bênção esfarelada às mãos do “É assim” ou de outras objectividades mais laboratorialmente construídas.
E contudo. Como se um filho, num jogo muito seu, nos contasse a nós, de cor, a história que todas as noites lhe lemos. E na sua voz, nos seus gestos — nada inocentes, pelo contrário, sérios, carregados de mundo, de dor e de força —, ou entre a sua voz e os seus gestos houvesse alguma coisa do que somos e nos espera ainda. Uma porta aberta sem nada dentro, que dê para aquilo que está desde sempre com seu dentro fora. Isto. Isto.

0 comentários: