O Senhor Walser # 6. Rodapés. Natureza. Mulher.
Luís Mourão
9.1.07 |
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Mas antes de avançarmos nas consequências lógicas do não-Acto de Walser, uma palavra sobre rodapés. Naturalmente, há-os na casa nova de Walser, e são de uma espécie superior: “que perfeitos! Mais: que sentido estético! Que entendimento exacto da maneira como cor e forma se devem misturar como se existissem já assim (os rodapés) na natureza, desde o início.” (p. 17).
A formulação de Walser é genuinamente congratulatória quanto aos feitos da racionalidade absoluta. É que a racionalidade absoluta, tal como se pode verificar na construção de uma casa no meio da floresta, não se limita à casa em si mesma, isto é, ao constructo na sua dimensão estrita de coisa de engenharia. Se o rodapé serve aqui como imagem de um todo que se fecha perfeitamente, furtando-se ao indomesticável da floresta, serve também para mostrar que, na óptica de Walser, toda a perfeição, ou seja, toda a racionalidade absoluta, é capaz ou engendra mesmo um suplemento estético tal que é como se desde sempre essas cores e formas tivessem existido na natureza. Cores e formas, não a matéria nem a sua disposição ou conexão propriamente material. Ou seja, o suplemento estético é uma imitação da natureza que se confunde com ela e a substitui com vantagem: em vez de cores e formas ligadas ao indomesticável da floresta, temos essas mesmas cores e formas ligadas à racionalidade absoluta de uma casa.
Apagamento da natureza, apagamento do Outro. Apagamento também da mulher e, portanto, da possibilidade dos beijos apaixonados? Sim, em grande medida sim, mas não pelas razões que estabeleciam a velha homologia entre natureza e mulher — aliás, mais do que homologia, tratava-se de facto do cruel confinamento da mulher à natureza. O apagamento da natureza e o apagamento do Outro apaga a mulher na mesma medida em que apaga o homem que Walser é. E apaga ambos na medida em que apaga a diferença sexual entre eles, que não é já tanto a diferença de um ser macho e outra fêmea, mas a diferença do mundo singular de sexualidades que cada um podia ser. Esta diferença entre dois só é experienciável no meio-ambiente de um terceiro a que temos ainda (impropriamente, é certo) de chamar natureza: o corpo, a fisiologia das paixões. Sem dúvida, o sexo pode ser virtual e o erotismo ser coisa mental: mas ambos provocam efeitos anatomofisiológicos mensuráveis. As causas são sempre “culturais”, os efeitos sempre “naturais”.
Ora, a racionalidade absoluta é o tipo de causa “cultural”, melhor, lógica, que pretende que os seus efeitos sejam exclusivamente “culturais”, melhor, lógicos. Walser não o percebe, como não percebe que a série de contratempos que acomete a casa são a consequência lógica da racionalidade absoluta.
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