O Senhor Walser # 11. Fenda. Traquinice. Mal.
Luís Mourão
23.1.07 |
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Há uma minúscula fenda no telhado da nova casa de Walser. Esta é a última contrariedade do dia, mas não deixa de ser a mais importante. É uma falha que afecta a capacidade de a casa se isolar por completo do seu meio-ambiente. Naturalmente, fendas no telhado são para tapar. Mas em literatura, fendas no telhado, embora sendo fendas no telhado, podem ser também outra coisa. Para Walser, era “claro que a fenda não era apenas isto: qualquer coisa que não está. Pelo contrário, bem pelo contrário: naquele momento Walser sentia que um qualquer elemento avançava por ali — uma matéria que vinda de cima lhe batia na cabeça, como numa traquinice, lhe batia uma vez, depois outra e escondia-se.” (p. 34).
Para o dizer rapidamente, o que fica fora da racionalidade absoluta desta casa só pode ser da ordem da “traquinice”, da brincadeira, do jogo, do imprevisível. Tudo conceitos com os quais nos poderíamos aproximar menos angustiadamente e menos poderosamente da realidade. Esta fenda é um apelo ao jogo da realidade. E o jogo da realidade tem isto de profundamente ético: na medida em que a interacção é imprevisível, as regras não podem ser definidas antes, vão-se construindo durante a própria interacção, clarificando a escolha não antes de ela ser escolha mas no movimento e nas consequências de ela ter sido essa escolha e não outra.
Walser recusa este apelo. Aliás, da forma mais comum de que esta recusa se tem revestido: diabolizando. O receio do imprevisível, o risco da liberdade do imprevisível, justifica-se a seus próprios olhos fazendo coincidir o campo do imprevisível, daquilo que é sem causas e sem exigências, com o campo do mal:
“As pancadas, no entanto, aumentavam, dir-se-ia, de intensidade. (...) Era[m] agora, para Walser, uma evidente ameaça — mas ameaça não argumentada; ameaça sem causas e sem exigências. Mas que sentia ele, de facto? (...) Apenas isto: um frágil pressentimento que saía da sua cabeça e uma igualmente frágil proposta — chamemos-lhe tentação — que vinda do exterior, e aproveitando precisamente aquela inesperada fenda no telhado do sótão, por ali se infiltrava, tocando-o, puxando-o, convidando-o para uma acção que Walser ainda não conseguia definir, mas que sentia estar colocada no extenso e, quando por fim lá dentro, infindável, campo do mal; campo onde jamais entrara e onde jamais, estava certo, entraria.” (p. 35).
Fim de partida? Em larga medida, sim. Ou dito de outra maneira, Walser antecipa duplamente o fim de partida.
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This entry was posted on 23.1.07
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