O Senhor Walser # 10. Contrariedades. Bom-senso. Apelo.
Luís Mourão
22.1.07 |
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Uma torneira que não funciona, tábuas do soalho mal colocadas, “uma fissura, segundo parece” (p. 26) na parede de um dos compartimentos, uma janela que não fecha bem, a rede eléctrica que precisa de ser toda revista, as molas do sofá também, painéis do tecto deficientes, e já no final do dia a descoberta de uma fenda no telhado. Como já se disse, pequenos reparos, pequenas contrariedades. O suficiente, contudo, para que o primeiro dia na nova casa de Walser não proporcione o contentamento que ele esperava.
Mas Walser não desarma no seu optimismo, ou nas suas expectativas. Em estrito bom-senso, não se pode dizer que haja razões de peso para que Walser desarme. Afinal, diz-nos a experiência do quotidiano, as casas concluem-se e há sempre um período em que elas parecem perfeitas. E embora a ficção não tenha de se curvar perante o bom-senso — e muito menos a ficção de Gonçalo M. Tavares —, também não há que procurar para as personagens motivos diferentes para as suas reacções do que aqueles que podem ser explicados pela plausibilidade do dia-a-dia.
A reacção de Walser é comedida, comedida e levemente contrariada, o que só a torna mais verosímil. Mas Walser não tem o equilíbrio do bom-senso quotidiano. Por momentos, os seus gestos, o comedimento dos seus gestos, participa da órbita do bom-senso, mas a rota de Walser vai noutra direcção. Entendamo-nos. Walser não é o homem prático, dando espaço e tempo à conclusão de um projecto que nada apresenta de transcendente. Walser também não é propriamente a figura do filósofo distraído e perdido nos seus pensamentos, tão desatento da realidade que cai no poço. Por último, Walser não é também a vítima dos infortúnios da virtude. Na verdade, Walser não percebe muito bem o que se passa, simplesmente porque na sua cabeça não há lugar para o modo um pouco desarranjado que as coisas apresentam na sua existência real. Walser quer apenas que a sua casa volte a ser o mais rapidamente possível o triunfo da racionalidade absoluta que ele entreviu no início. A sua falta de bom-senso está nesta incapacidade de reconhecer que o real falha.
Quando não é dramática ou mesmo trágica, a falta de bom senso é cómica. Mas dir-se-ia que aqui o cómico não diz directamente respeito a Walser, antes ao facto de o desarranjo das coisas contrariar a promessa inicial do triunfo da racionalidade absoluta. Walser não é o Jacques Tati de Playtime, cuja presença céptica e deslocada parece capaz de afectar o funcionamento dos mecanismos tecnológicos mais avançados. Walser não interfere, as coisas é que se encaminham para uma mansa catástrofe, como se a floresta readquirisse parte dos seus direitos sobre a casa que a nega. Ora, essa catástrofe mansa é na verdade um apelo. A que Walser responde negativamente, como já veremos.
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