Literalmente

Ok, eu percebo as reticências de João Bonifácio ao concerto do Cohen. O que foi grande, foi mesmo grande — impossível não concordar. Mas o que não foi tão grande, não foi lupanar. Não, aqueles arranjos não são à Casino do Estoril, são arranjos de uma dor implosiva e bem-comportada à... bem, vamos dizer assim, à Tchékhov. Há o óbvio e o cortesmente dissimulado. Lembro-me de ter discussões semelhantes acerca de Coltrane (o génio óbvio do grito) e Bill Evans (o génio cortesmente dissimulado do grito). Cohen veio vindo de um pólo ao outro, e essa é a sua história — génio e grito envolvidos em roupagens diferentes, num corpo diferente, num olhar diferente.
E mesmo que... e mesmo que num deslize ou outro — mas também houve deslizes antes, há sempre deslizes onde há génio, o génio inacaba tudo e essa é a sua potência criadora —, sim, e mesmo que... bem, vamos dizer isto de outra maneira.
Eu ri-me como um perdido com a “recensão” que o Rogério Casanova fez de Português Suave. E quando chegou o “literalmente”, quase me ia engasgando de tanta risota. Até porque me lembrei das mil vezes que a comida “aterrava” na mesa, nos romances anteriores, segundo as contas do João Pedro George. Arranjos, que valha a verdade, nem lembram ao lupanar. Mas o Osvaldo já tinha chamado a atenção que certas coisas como trocar o nome das personagens durante algumas páginas acontecem também aos grandes. Ao que posso agora acrescentar que o “literalmente” também. Porque na viagem até Lisboa me decidi por umas horas de férias absolutas, e não é que logo à página 18 de O Primeiro Amor, de Turguénev: “Os seus olhinhos negros espetaram-se, literalmente, na minha cara”. Imaginam o calafrio, a súbita desconfiança de que algum génio maligno me tivesse trocado o conteúdo do livro? Mas quando na página 36 li esta confissão en passant: “toda aquela algazarra, (...) aquele convívio invulgar com pessoas quase desconhecidas subiram-me literalmente à cabeça”, não houve calafrio nenhum, já tinha tido provas sobejas do génio de Turguénev. E do Cohen também. Literalmente.

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