Aqui estou eu sentado em frente dela

O fetichismo que se desconhece a si próprio faz baloiçar o corpo como uma criança, somos esse ser que tendo já separado o mundo de si, o trata ainda como um sujeito que fosse só exterioridade. Nessas condições, a alma que é um vício é-nos um território inimaginável. Pregas de vestidos e botinas, eis o que sabemos da alma que vagamente começamos a intuir. Numa palavra: ficamos tão infantis quanto deveras o somos. É por isso que aos dezasseis anos — é a idade que ele tem —, o amor só pode vir a ser uma derrota. Romeu e Julieta não tiveram tempo de o saber. A condenação política, empurrando-os para a morte, salvou-os do conhecimento. Mas Vladimir sobreviverá. Vai aprender por si mesmo que a única consequência de sobreviver é a aprendizagem. E que isso não é particularmente exaltante. Como aliás a existência não é nada de que qualquer coisa em particular se possa definir como exaltante.

"Estava a olhar para ela e a sentir quão próxima e querida se tornava para mim! Como se a conhecesse havia muito, como se não soubesse nada nem tivesse vivido antes de a conhecer... Trazia um vestido escuro, usado, pusera avental; eu teria acariciado de boa vontade cada prega daquele vestido e daquele avental. As biqueiras das botinas assomavam debaixo da bainha do vestido: apetecia-me inclinar-me com veneração sobre aquelas botinas... Aqui estou eu sentado em frente dela - pensei -, acabo de travar conhecimento com ela... que felicidade, meu Deus! Por pouco não saltei da cadeira, tão fascinado estava, mas limitei-me a baloiçar os pés como uma criança deliciada com uma guloseima."

Ivan Turguénev, O primeiro amor, Tradução de Nina Guerra e Filipa Guerra, Relógio D’Água, p. 21

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