A confiança no leitor


Eis um exemplo poderoso de um dos alicerces da literatura: que ela se faz usando literariamente a própria literatura. Não só no sentido de que recicla o que já foi feito — o que até não é aqui propriamente o caso —, mas também no sentido de que a sua compreensão subentende a compreensão de literatura anterior. Não fosse Bernardo Soares ter sido quem (não)foi, e não fosse Pessoa ser ainda o mito da poesia enquanto essa qualquer coisa outra que fica sempre além do poema, e Boa Noite, Senhor Soares implodiria, aliás sem estrépito nenhum. Porque esta rápida reconstituição de alguns ambientes lisboetas em que o Sr. Soares teria trabalhado e habitado, vistos pelo prisma de um simples trabalhador de armazéns de tecidos, é apenas um cenário, estilisticamente irrepreensível, em que a bem dizer não se passa nada — muito menos alguma coisa que prove do Senhor Soares o Bernardo Soares que literariamente foi. O Senhor Soares é poeta — esse é um adquirido para o trabalhador-narrador, e tanto basta para a sua deferência e para a sua vaga curiosidade, que contudo não ousa saber mais, mesmo quando tem alguns indícios de que o Senhor Soares, pelo seu lado, não se importaria de o conhecer melhor. Toda a arte deste romance reside numa elipse que é, por sua vez, elipse de outra elipse, aquela que constituiu Bernardo Soares personagem desse “drama em gente” pessoano. Não se trata de dar corpo e vida a uma invenção pedida a outro, como acontecia no saramaguiano O ano da morte de Ricardo Reis, que por isso se bastava a si mesmo enquanto romance, ainda que exigisse a enciclopédia pessoana para um maior entendimento do seu alcance. Trata-se de algo mais arriscado, porque precisamente não se basta a si próprio: de através de um mínimo de corpo e vida, de tudo fazer indício para a existência desse corpo e dessa vida. A humildade da grande arte também se pode ver nisso: na forma como se coloca inteiramente nas mãos da inteligência e sensibilidade dos leitores e da enciclopédia que os constitui. Que é como quem diz: “A rua onde morava o senhor Soares apareceu-me como uma dessas onde nada acontece, mas onde de facto se pode imaginar muita coisa” (p. 71).

0 comentários: