Augusto Abelaira


Augusto Abelaira faria hoje 80 anos. E não vejo melhor maneira de homenagear um autor que é também muito “meu” do que contar exactamente como este post chegou aqui. Acho que Abelaira acharia a história bastante sua.
Manhã alta, no supermercado pelos legumes para a sopa, recebo uma sms do Osvaldo Silvestre:
Veio no Publico q o Abelaira faria hoje 80 anos. Ve s poes uma referencia ao homem no Manchas, pois ele merece.
Agradeci, e naturalmente disse que sim. A primeira vez que eu e o Osvaldo falámos (tão jovens que éramos [e quão estranho encontrar-me a escrever este tipo de frases]), foi a propósito de um texto meu na Cadernos de Literatura, “Augusto Abelaira: a palha e o resto”, agora recuperado em Sei que já não, e todavia ainda (que por acaso até é um título muito abelairiano, noto agora...). Abelaira voltou muitas mais vezes às nossas conversas. Mais tarde, em Slow Motion, o Osvaldo viria a escrever alguns dos capítulos que considero bibliografia básica sobre Abelaira, em especial sobre o pendor metaficcional dos romances pós Sem tecto, entre ruínas. Mas adiante. Houve que fazer a sopa, e enquanto esperava que fervesse, uma rápida pesquisa na Google para imagens: esta que aqui vai, e uma outra, que irá amanhã, por outras razões, também elas perfeitamente abelairianas.
Pedaços dos livros iam regressando.
O incipit de O triunfo da morte, que começa logo no capítulo 2, para mais rapidamente se entrar na não-acção daquilo.
A síntese perfeita da desilusão político-social da nossa história recente, em O bosque harmonioso: “o 25 de Abril foi o nosso D. Sebastião, o remorso de o termos deixado escapar. Mas verdadeiramente não o queríamos, não sabíamos que fazer com ele. Vamos continuar a esperá-lo, adiá-lo-emos sempre”.
Ou o magno problema do Prof. Garden, em O único animal que?: “Seremos a língua em que me exprimo? (...) Ensinemos um grilo a falar italiano, e ele transformar-se-á em homem italiano. Ensinemos um homem a falar cri-cri e ele tornar-se-á grilo”.
A tarde foi passada em orientação de teses (nenhuma delas sobre Abelaira, hélas). Quando me voltei a sentar ao computador, pensei na crónica que Abelaira poderia escrever com o sentimento que voltei a experimentar durante algumas das conversas: os melhores desta nova geração são bons como nós nunca o fomos com a sua idade, mas não têm para onde ir. Não há lugares nas universidades, não há lugares nos liceus, não há lugares, ponto.
Não queria fazer um post tipo pequena entrada para enciclopédia, mas achei que não seria mau remeter directamente para qualquer coisa parecida. Nova pesquisa. No Projecto Vercial, a entrada é diminuta, inaproveitável. No IPLB o texto é mais compostamente longo. Leio rápido na transversal, só para me certificar. Abano a cabeça uma ou outra vez — demasiado filosofia, pouca literatura —, mas acho que serve. O texto não está assinado, é do dicionário cronológico de autores portugueses. Copio o link. E agora?
Várias coisas a dizer. Mas algo martela na cabeça por detrás disso tudo, não sei bem o quê. O suficiente para impedir de começar. Até que de repente se torna muito claro: um “bípede céptico e desinteressado”. É a fórmula que resume uma personagem, mas qual? Vou à estante, olhar os livros de Abelaira, como se a resposta me devesse saltar das lombadas. A fórmula é cada vez mais nítida, mas o que é que isto quer dizer? Continuo sem saber de onde me vem, nada lhe acrescentei, mas a verdade é que chama várias coisas até si. As várias coisas que tinha a dizer? Começo-me a rir do processo obviamente abelairiano que a ideia de post está a tomar. Penso então que devo escrever precisamente isso, e regresso afoito ao computador.
Mas alguma coisa martela ainda, o suficiente para impedir de começar. Vejo claramente na minha cabeça bípede céptico e desinteressado escrito num itálico elegante, e toda uma disposição do texto em que os conceitos fazem primeiro um caminho para lá, e depois se afastam, mas de alguma maneira levando-o consigo. E por um toque acidental do rato, abre-se de novo a janela do IPLB, e então sim, claramente visto, está lá a frase bem no centro do texto. Vou lendo um pouco antes e um pouco depois, e é já numa mistura de estupefacção e riso que vou reconhecendo aqui e ali frases minhas, e que regressa de há muitos anos um texto escrito entre os vários que me foram solicitados na altura e que esqueci por completo, porque o que sempre fica, quando fica, é o rasto do autor. Posso agora começar. Augusto Abelaira faria hoje 80 anos. E não vejo melhor maneira de homenagear um autor que é também muito “meu” do que contar exactamente como este post chegou aqui. Acho que Abelaira acharia a história bastante sua.

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