De novo o pecado mortal da fotografia, ou sedução estética, espontaneidade e efémero



1. Em A verdade é um lugar incerto, João Paulo Sousa (JPS) comenta uma recensão de António Guerreiro ao livro de Rui Nunes, O choro é um lugar incerto, que reúne e desenvolve textos escritos para o catálogo da exposição de Paulo Nozolino, Far Cry, presente no ano passado em Serralves. O ponto que me interessa é o comentário a alguns aspectos da exposição de Paulo Nozolino.

2. JPS começa por questionar o uso exclusivo do preto e branco, partindo das suas consequências: “Ao invés de apresentar a dimensão trágica da modernidade, o efeito provocado por estas fotografias é o da sedução estética, tão cuidadosamente preparado, aliás, que não hesita em se refugiar no mito da espontaneidade e do efémero. (…) Se aquelas fotografias não estivessem a preto e branco, o que as distinguiria, afinal, de um vulgar exercício de fotojornalismo?”.

3. Para além de JPS responder parcialmente à sua própria questão — o preto e branco, aqui, salva do vulgar fotojornalismo —, o problema parece ser o da oposição entre “apresentar a dimensão trágica da modernidade” e a “sedução estética”. É uma questão antiga na fotografia: a sua vocação “realista”, apta por hipótese a apresentar a dimensão trágica ou outra de qualquer época, dar-se-ia mal, ou até seria atraiçoada, pela procura de efeitos de sedução estética. Ora, o que a fotografia foi descobrindo é que a sua suposta vocação “realista” não pode impedir-se, por si mesma, de se tornar arte, ou de ser vista segundo o ângulo da arte. A ambivalência dos sinais que envia é incontornável, sobretudo quando se trata do sofrimento ou da dimensão trágica: como diz Susan Sontag, essas fotografias gritam “Parem com isto” ao mesmo tempo que não se podem impedir de exclamar “Que espectáculo!” (Olhando o sofrimento do outro, p. 83).

4. Parêntesis: a fotografia grita “Que espectáculo” não pela matéria em si mas pelo espectador (que o fotógrafo também é, antes de mais e em primeira mão): é o fascínio humano pelo macabro e pelo horror que está sempre em causa, fascínio tanto mais desfrutável quanto houver uma mediação que o permita viver em segurança (não apenas física, mas também psíquica).

5. Se a fotografia não se pode impedir de se tornar arte, quando deliberadamente o quer ser encontra, por maioria de razões, o mesmo problema das outras artes. Que eu colocaria nos conhecidos termos pessoanos: fingir que é dor a dor que deveras sente.

6. Assim, a sedução estética (e a sedução também se pode exercer por repulsa, mas isso é outra história, ou pelo menos não é a história das fotografias de Nozolino) é o meio de transporte do pensamento. Que não se “refugia”, como diz JPS, “no mito da espontaneidade e do efémero”, mas o encena como mito que é. Não se trata de captar um instante, mas de construir o acesso ao instante que não é o da fotografia, mas o do pensamento que ela será capaz de suscitar: ou já não é um adquirido do ver exposições fotográficas que o olho-câmara selecciona (e constrói) uma primeira vez, e que o autor, escolhendo o que fica e o que deita para o lixo, constrói derradeiramente como conjunto e obra?

7. Se há algumas questões a colocar à exposição de Paulo Nozolino creio que elas não passam tanto pelos termos em que JPS as põe, mas, por exemplo, pelas questões que Susan Sontag coloca a propósito de Sebastião Salgado — os fracos não são identificados nas legendas, são todos tornados iguais e anónimos (p. 85-86) — ou a propósito do facto de que, “em geral, os corpos atrozmente mutilados que se vêem nas fotografias que se publicam são da Ásia ou de África. Este costume jornalístico é herdeiro de uma prática velha de séculos de exibir seres humanos exóticos – ou seja, colonizados; […] o outro, ainda que não inimigo, é olhado apenas como alguém para ser visto, não alguém (como nós) que também vê” (p. 78). Ou seja, não é o problema da sedução estética, mas o problema do que essa estética dá a ver e a pensar.

8. Por último. A fotografia de Nozolino que JPS escolheu para o seu post era das poucas na exposição que tinha figuras humanas. Será porque quando falamos de instante e efémero dificilmente resistimos à antropomorfização? Mas mesmo aí: quando aprenderemos a lição pessoana — que se trata sempre (e diríamos hoje, quer o queiramos ou não) de fingir instante o que deveras instantaneamente se vê?

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