Caminhos da fotografia




Meu caro João Paulo Sousa

Antes de mais, obrigado pelas suas palavras sobre este blog. Não retribuo em relação ao Da Literatura, porque o link para lá, desde o momento em que os soube pôr, diz tudo.

1. Aceito as ressalvas que faz em relação ao seu texto inicial saber que instante e efémero são construções. O ponto, pois, como diz, não é de discórdia quanto aos propósitos, em abstracto, da fotografia, mas quanto ao conseguimento da exposição de Nozolino em Serralves.

2. Parece-me que a sua argumentação vai neste sentido: o JPS acha possível à fotografia apresentar a dimensão trágica de uma época, mas acha “difícil que o possa fazer com honestidade sem recorrer a um tom explicitamente neutro”. No seu entendimento, o preto e branco, como exclusivo, contaminaria tudo de um efeito de ornamentação e de fascínio, portanto, seria bastante o contrário do neutro. E isso levaria o espectador a deter-se na excelência do gesto autoral, sem que o pensamento descolasse alguma vez dessa estrita dimensão estética — que se tornaria assim mero ruído estético.

3. É claro que estou de acordo consigo quanto à possibilidade teórica de uma estratégia artística poder redundar em mero ruído estético. O que me parece é que o JPS ontologiza: a) quando afirma que fora de um tom explicitamente neutro a fotografia falhará no apresentar da dimensão trágica de uma época; e b) quando parece dar a entender que o preto e branco, quando em exclusividade, se transforma inevitavelmente em ornamento.

4. Mas vamos supor que, pelo menos em relação ao primeiro aspecto, o JPS tem inteira razão. Fica ainda um problema: o que seria, hoje, em fotografia, um tom explicitamente neutro?

5. O exemplo que dá do documentário de Alain Resnais, Nuit et Brouillard, é magnífico. Duplamente. Porque a obra é tudo isso que muito bem diz dela, e porque permite ver o modo diferente como olhamos para o problema com que Nozolino se depara.
Lembro que Resnais, ao delinear a sua estratégia, não tem de se confrontar com um acervo de imagens de actualidade que saturem o seu espaço. Tem de facto o problema exactamente contrário: uma escassez de imagens e de relatos que, do ponto de vista empírico, reforçavam a ideia metafísica do inapresentável. Cada imagem de arquivo tinha um peso que é para nós, hoje, bastante inimaginável. Seria possível “estragar” isso? Sem dúvida. Mas o tom de contenção, aqui, está na ordem lógica do material. E o texto de Jean Cayrol pode “permirtir-se” o inventário neutro porque se trata de dizer pela primeira vez, expor pela primeira vez. Até certo ponto, o texto não precisa de “compreender” o que está a dizer (de adjectivar, metaforizar, relacionar), precisa apenas de inscrever-se num real que não o suporta, ficar aí — o seu neutro tem a violência de tudo o que passa a existir apesar de sabermos que é a vida toda que fica em causa por isso.

6. Quatro anos depois, em 1959, Alain Resnais realizou Hiroshima, mon amour. Não é um documentário, é certo. Mas creio para este ponto esse aspecto não é relevante. O que é certo é que de Hiroshima havia em abundância o que nunca houve de Auschwitz-Birkenau: em imagem, em palavra, já também em pensamento. Eu diria que o filme é tão contido quanto o foi o documentário, só que de uma forma necessariamente diferente, porque é diferente o mundo de discursos com o qual se confronta. O texto de Marguerite Duras, na sua poeticidade sonâmbula, alcança o mesmo efeito, se bem que em sentido contrário, porque é isso que o problema lhe exige: inscrever o amor num cenário de violência que não o suporta.

7. Voltemos então a Nozolino. Creio que será pacífico que o problema com que se confronta é este: como dar a pensar aquilo que é objecto de saturação de imagem e palavra, e exactamente porque saturado se torna não-pensável?
A escolha do preto e branco é uma tentativa de subtracção a esse mundo de imagens hoje predominante. Por certo, com o risco de ser “artistique”. E a dimensão empírica das fotografias acrescenta-lhe também o risco do “exótico”. Nozolino tenta ultrapassar esse risco pelo efeito de conjunto: a) a identificação dos lugares estabelece uma circulação entre o “lugar exótico” e o “nosso lugar”, criando uma homologia que dá que pensar; b) a disposição das fotografias, deixe-me dizê-lo com as suas palavras tão certas para Resnais, compunha “um vasto e desolador travelling pelo interior de...” — de qualquer coisa que é um mundo inabitável dentro deste mundo que habitamos.

8. Não funcionou? É provável. Também tenho as minhas reservas, mas não coincidem com as suas. A minha pergunta, para tentar pensar dentro dos seus termos, é então: o que seria hoje, relativamente à matéria que Nozolino trabalhou, um tom explicitamente neutro?

9. E depois uma outra, que envolve uma infinidade de perguntas dentro dela. Para sublinhar o valor do filme de Resnais, o JPS diz-nos: “Tenho para mim que Resnais é um grande realizador, mas não penso nisso quando visiono Nuit et Brouillard”. Percebo o que quer dizer. Mas pergunto-me se, interiormente, de cada vez que vê o filme, não resolve de imediato todos os problemas que o classicismo dele acarreta (aí incluído a sua mestria inegável), de modo a desimpedir, digamos assim, as vias de acesso ao que ele dá a pensar (um pouco como quando lemos Camões, ou “ultrapassamos” a linguagem de época, a métrica e a absoluta mestria do dizer, ou não o lemos de todo). Ora, numa época que sabe que a arte é arte, numa época que criou o conceito de museu de arte contemporânea, não acha que os espectadores de Nozolino devem ultrapassar a evidente mestria do gesto autoral para se interrogarem sobre a direcção que esse gesto aponta? Eu concedo que um espectador possa dizer de Nozolino: «Que magnífico fotógrafo!”, mas acho que isso revela mais a impotência de pensamento do espectador do que auto-referencialidade do autor.

10. Claro que o seu caso não é, de todo, incapacidade de pensamento, mas postura ontológica: o preto e branco, hoje, quando em exclusivo, é fatalmente ornamental. E portanto, a minha última pergunta terá de ser: porquê?

11. São muitas perguntas, eu sei. Espero que as tome como prazer de pensar em diálogo, que é só o que pretendem ser. Um prazer com tempo.

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