Há qualquer coisa de aterrador e de morbidamente fascinante quando assistimos, no decorrer de uma reunião igual a centenas de outras, ao nascer de uma luz crua que ilumina o rosto de uma amizade e revela afinal o abismo que nos separa. Tudo no corpo do outro se vai tornando evidente, as palavras, o silêncio, os gestos, a contenção, o ataque, o repouso quase desinteressado. O que mais espanta é esta evidência, ouvir por trás da retórica o rastejar do pensamento ressentido, com todos os lugares-comuns do inferno em que se consome vivo. A evidência não é o contrário da ilusão, não nos diz a identidade de alguma coisa, que ela foi desde sempre assim. A evidência é apenas quando o outro nos perde a sua espessura, e toda a cumplicidade que tecia um mundo se desfaz. É a distância cuja origem é desconhecida mas se ergue irremediável e simples agora que a reconhecemos. Há uma alegria grave em sabê-lo, como receber uma má notícia que ainda assim desfaz a estúpida angústia do desconhecido. E uma vontade recolhida de chorar, que adiamos para mais tarde, quando formos apenas nós e esta sempre espantosa instrução de irmos vivendo. Nós e a noite aberta, um clarinete leva-nos pela mão, e no breve espaço de um adagio cabe toda a história do mundo. Sempre se soube, nunca se acaba de aprender.
Os trabalhos e os dias (8)
Luís Mourão
18.5.06 |
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