Potencial romanesco 2

— Já leu o Expresso, Luís?
— Nada. Estou aqui muito quietinho na cave, aproveitando o fresco, entre correcções de capítulos de teses e uns livritos que entretanto me chegaram. Uma vida de príncipe, Leitora!
— Acredito. Quando tiver tempo, dê uma olhadela ao artigo do Valdemar Cruz sobre o Luandino Vieira. Parece que o seu romance imaginário está um bocado deslocado.
— Quando diz seu é o meu que quer dizer? O que chamei potencial romanesco?
— Esse mesmo. Parece que afinal o Luandino se desunha a escrever na sua cela, e que em Novembro vai ser publicada a primeira obra de uma trilogia intitulada De rios velhos e guerrilheiros.
— Hum... Não é personagem, é escritor mesmo...
— Mas isso não retira ao seu romance, Luís. Apenas diz que é mais seu. Vai desaparecer um dia destes?
— Não... Falta-me a coragem e o talento, isso é logo a primeira coisa. E a segunda é que acho mais interessante desaparecer por intermitências, e se possível sem ninguém dar conta. Mas ainda não sei como sei chegar lá.
— Lembro-me de qualquer coisa no Marx que era assim: uma época só se põe os problemas que consegue resolver.
— Mas eu não sou a época, Leitora. Estou para trás. Nada de dramático nisso, é apenas uma precisão, uma deferência para com o rigor.
— Em se tratando de destinos, o rigor não está nas nossas mãos. Alguém já deve ter escrito isto, se é que foi preciso alguém tê-lo escrito. Voltemos às nossas coisas. Disse-me que estava na cave?
— É por causa do calor, Leitora.
— Faça um chazinho e tome-o à temperatura normal.
— Já fiz. Hortelã. Plantada e seca aqui. Mas sem arcádia.
— Está bem, você lá sabe...

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