- Achas que sim?
- Acho.
- Mesmo? Isto é, mesmo mesmo?
- Sim, mesmo mesmo.
- É bom ouvir isso.
- É bom poder dizê-lo.
- E vindo de ti...
- Vá, não vamos agora ficar sentimentais, pois não?
A Leitora, no seu infinito particular (XXXV)
Acerca da pena de morte, tortura, perseguição...
Sou membro (discreto, infelizmente o tempo não dá para mais) da Amnistia Internacional, Secção Portuguesa.
E relativamente à minha radical oposição à pena de morte, só quero sublinhar o seguinte. Defender um criminoso como Saddam ou outro qualquer da pena de morte, não significa desprezo pelas vítimas de Saddam ou de outro qualquer. Se não se é contra a pena de morte em nome precisamente do respeito pelas vítimas, em nome de quê o seríamos? Respeito pela humanidade que lhes foi tirada, respeito em não repetirmos o gesto assassino que as vitimou.
Psicopatologia da vida quotidiana # 19
O meu doce favorito de natal são as rabanadas. Gosto delas de todas as maneiras, mas nenhumas tão boas como as feitas pelo lado materno da família (ok, ok, tragam lá o Freud, mas já tenho idade para não me importar com essas coisas): vagamente, sei que são passadas por chá (não por ovo ou por leite), e apresentam um aspecto húmido. Um destes dias vou ter que pedir a receita, porque mães e tias não duram eternamente. Mas não sei se depois disso as rabanadas me saberão na mesma. Chatice, o sabor das coisas não ser apenas o sabor das coisas. (Eu disse chatice? Queria dizer o imperceptível mistério, o suplemento de cada coisa para além da coisa ela mesma — ok, chega de metafísica, vou-me às rabanadas enquanto elas me são ainda rabanadas).
PS: na pesquisa imagem-google para rabanadas, para além de umas fartas nádegas brasileiras, não é que encontro também um tipo que abocanha um mamilo de mama generosa? Deveras, psicopatologia das rabanadas...
Psicopatologia da vida quotidiana # 18
A caixa do supermercado, entre os trinta e os quarenta: “Somos doze lá em casa, agora. Dormem na sala, no corredor e no sótão. A gente lá se arranja. Não há melhor do que este período entre o natal e o ano novo. Vem sempre a minha irmã de França, e o irmão do meu marido, da Suíça. E a minha mãe vem da aldeia. Há uma prenda ou duas para cada miúdo, e decidimos entre todos como é. São mesmo prendas, as necessidades compram-se antes ou depois, não vamos estar a usar o natal para isso. Para os adultos, damos à vez uma prenda razoável a cada casal. Mais nada. Este ano calhou ao irmão do meu marido. A minha mãe diz que a ela lhe basta estar com os filhos e os netos. E para mim o natal é isso. Não há zangas que aguentem, a gente chega a esta altura e passa tudo. Pelo menos, até agora tem sido assim.”
Epifanias # 57
A moeda do tempo tem também destas coisas. Há quase dois meses que este Keith Jarrett me é companhia assídua, às vezes permanente. Não sei bem porquê — quer dizer: sei sem saber; não quero aprofundar nem uma coisa nem outra; tenho direito aos meus pequenos segredos sem importância nenhuma; etc —, só agora me apetece falar dele.
Eis a primeira história. Pista dois do segundo disco. Começa por soar conforme àquelas melodias que há vinte anos atrás identificavam a parte solar do estilo Jarrett. Só que agora, com vinte anos em cima, o sol é mais intenso naquilo que dá a ver: ninguém como Jarrett descobre o pormenor e as dobras, seja na melancolia, no ritmo ou na exaltação. A isto chama-se envelhecer bem. É isto que torna imperdoável certos auto-convencimentos de quem atingiu um topo e não se pergunta que coisas mais há ainda para perguntar. Mas também é isto que salva dessa colossal perda de tempo que é a raiva e o ressentimento. Para quê isso, quando se pode dançar assim? Pista dois, segundo disco.
Epifanias # 56
Ontem ainda pude ler um dos grandes livros de poesia de 2006. “Coisas contemporâneas”, chama-se a primeira parte. “Nós o mundo”, a segunda. É todo um programa, se tal coisa se pudesse dizer sem mais de um livro de poesia que trata precisamente de coisas contemporâneas entre nós o mundo [sim, é mesmo nós o mundo, sem conector de permeio].
Prémio “Dar a outra face”
Para a elegância, ironia e civilidade com que o Mickey, em vários posts, pela mão do Luís M. Jorge, ensinou “o outro caminho” para o debate — porque é isso que “dar a outra face” quer dizer: a tradução latina fixou de acordo com um interesse o seu tanto masoquista e de defesa da “política do martírio”, mas no original o sentido é o de mostrar a outra face das coisas, de dar por exemplo e palavras como se deveria fazer de outro modo. O João Gonçalves pode conferir junto de teólogos, eu nem pertenço ao clube...
Piergiorgio Welby # 5: não sou eu que estou contra o exercício da vossa liberdade, mas vós que estais contra o exercício da minha liberdade
A asserção é conhecida: não penso como você, mas morrerei pelo direito a você poder pensar diferente de mim.
Porque é que as autoridades eclesiásticas são incapazes desta afirmação, por exemplo relativamente à eutanásia ou ao aborto? Porque é que anteriormente o foram também relativamente ao divórcio?
Por mais que procure outra resposta, apenas encontro esta: é-lhes praticamente impossível reconhecer que não têm o direito de legislar sobre o todo da sociedade. Seria admitir a posição relativa das suas crenças, quando elas parecem enraizar-se na fé de um absoluto. E sobretudo, seria consumar uma efectiva separação da esfera do religioso do todo da sociedade civil, remetê-lo ao privado de um clube. A Lei do clube tem de ser a Lei da sociedade porque ontologicamente, segundo a crença do clube, o clube é primeiro por relação à sociedade. É precisa alguma desconstrução, e uma efectiva distância face à ilusão de alguns poderes demasiado humanos, para estar na religião e continuar civilmente democrático.
É legítimo esperar que as autoridades eclesiásticas mudem? Para pessoas dentro do clube, sim. A minha solidariedade para com elas. Mas para pessoas fora do clube, não é expectável nem é sensato esperar que mudem. Nunca mudaram por iniciativa própria, sempre foram obrigadas a mudar. Porque haveria agora de ser diferente? Esta luta é, mais uma vez, uma luta contra a imposição de regras religiosas ao todo da sociedade. Uma luta em que muitos crentes participam, seja a partir de um outro entendimento da religião, seja a partir de um entendimento do que é a liberdade de consciência. Mas uma luta, claramente, pelo reconhecimento da liberdade individual perante qualquer corpo doutrinário acerca do sentido último da existência. Respeito quem me pretende catequizar: com a máxima gentileza, digo que não estou interessado, e cada um segue o seu caminho. Mas resisto fortemente a quem quer pôr a polícia atrás de mim para me obrigar a viver de acordo com os princípios da sua catequese.
Piergiorgio Welby # 4: Cristo é demasiado da cultura ocidental para ficar entregue a um qualquer clube privado de intérpretes
A vinheta do Le Monde é a vários títulos exemplar:
Diz de um Cristo que sabe e age mais do que a nomenklatura que alegadamente fala em seu nome.
Diz de um Cristo que não é propriedade de ninguém, mas símbolo flutuante e disponível para fazer falar aspectos extremos da situação humana.
A gente que não é do clube, como eu, a vinheta diz uma compreensão não sacrificial e não masoquista do sofrimento humano. E creio que não seja coincidência que a pessoas que pertencem ao “clube”, a vinheta diga a mesma coisa: perdoe-se-me a triangulação familiar, mas remeto para o blogue do meu cunhado por causa de um extracto do diário da Laura.
Piergiorgio Welby # 3: eutanásia e religião
O facto de as autoridades eclesiásticas de Roma terem negado o funeral religioso a Welby não me surpreende. Tem lógica. Welby não foi um suicida infeliz, um pobre homem tomado de desespero que decidiu pôr fim à vida. Welby reclamou lucidamente, repetidamente, autonomamente, que desejava morrer, por no seu entender a vida que vivia não estar conforme aos seus padrões de dignidade humana. As autoridades eclesiásticas de Roma não podiam transigir com esta vontade tão lucidamente expressa. E é melhor assim, para que se perceba exactamente que a lei que proíbe a eutanásia é uma lei que se baseia por inteiro numa concepção de vida ancorada numa perspectiva religiosa.
Porque razão estados laicos, democráticos, têm leis ou parte de leis que impõem a todos os cidadãos a concepção de vida de uns quantos? Mesmo que esses quantos possam ser a maioria, ou mesmo 99%? Se o Estado laico proibisse o culto, alegando que a maioria dos cidadãos ou mesmo 99% deles eram ateus ou agnósticos, não teria o 1% restante direito à sua liberdade de culto? E se essa proibição existisse, não deviam os outros 99%, ainda que ateus ou agnósticos, defender intransigentemente o direito desse 1%?
Eu percebo que as autoridades eclesiásticas de Roma tenham negado o funeral religioso a Welby. São as regras do clube, e só pertence ao clube quem quer. Mas já não percebo que as mesmas e outras autoridades eclesiásticas defendam uma lei de Estado que proíbe a eutanásia, impondo a outros os seus princípios muito particulares. Quer dizer, percebo muito bem: se mandassem, se tivessem o poder que já tiveram, seriam como nesses tempos foram: fundamentalistas e totalitários.
Mesmo não pertencendo ao clube, e merecendo-me a direcção do clube, de um modo geral, uma certa repugnância (que um ou outro exemplo de humanidade atenua), não ignoro que entre os membros há gente de bem. No que me diz respeito, se me permitem pessoalizar, gente que não me insulta sem sequer se dar conta disso, dizendo-me com a melhor das boas-intenções que sou um cristão anónimo, mas gente que lida com gente, procurando a linguagem de uma comum humanidade.
Piergiorgio Welby # 2: a questão da eutanásia
O que me impressiona na discussão sobre a eutanásia (e ainda mais na quase completa ausência de discussão em Portugal), é precisamente que a partir do momento em que a questão entra em agenda, a discussão se trave entre a proibição e a legalização.
Claro que este meu espanto é retórico – sei bem a mutação civilizacional que está em causa -, mas ao mesmo tempo é também inteiramente genuíno: se o nosso modo de vida ocidental e democrático se define pelas liberdades cívicas e pela possibilidade de coexistência sem atropelo de várias confissões e concepções de vida, porque é que eu hei-de morrer segundo a convicção daqueles que entendem que é moral e eticamente ilegítimo a eutanásia e o suicídio assistido, e não segundo a minha convicção, que é a de que um sofrimento terminal é inútil e desumano?
A legalização da eutanásia não obriga ninguém à eutanásia, apenas permite a coexistência efectiva e consequente das crenças sobre o fim de vida e o sentido desse final. E aqui não deixa de ser perturbador e significativo ver todas as igrejas (sobretudo as suas hierarquias), que tão acertadamente reclamam e vivem a sua liberdade de crença e culto, quererem impor a todos a sua visão de como deve ser vivido o fim de uma vida.
O sentido de discutir a eutanásia devia ser o de discutir todas as salvaguardas necessárias para apurar a efectiva vontade de cada um. O resto devia ser um dado adquirido da liberdade individual.
Piergiorgio Welby # 1: o caso
Como com vários outros casos, conheci o nome de Piergiorgio Welby através da Laura (Ferreira dos Santos), que vem preparando um livro sobre suicídio assistido e eutanásia.
Welby estava há anos ligado a um ventilador, consciente, comunicando através do auxílio de um computador. Pediu que o suporte de vida lhe fosse retirado, na prática uma interrupção de tratamento que lhe acarretaria a morte. Os tribunais italianos não se sentiram competentes para decidir, remetendo o caso para os políticos. Os políticos italianos não decidiram. Um médico anestesista veio ao encontro do pedido de Welby para parar o tratamento, e providenciou a sedação que evitasse uma morte horrível após a retirada do ventilador. Se for considerado culpado de eutanásia, incorre numa pena de três a quinze anos, de acordo com a lei italiana.
Welby não era crente. Segundo a notícia de um jornal italiano, a sua mulher é católica. Welby confiou à sua mulher que determinasse o tipo de cerimónias fúnebres para o seu enterro. A mulher pediu cerimónias religiosas, negadas pelas autoridades eclesiásticas de Roma. O seu enterro, no dia 24 de Dezembro, corolário de um caso que tem apaixonado a opinião pública italiana, transformou-se num momento forte de reivindicação do direito a morrer de acordo com as convicções próprias de cada um.
A Leitora, no seu infinito particular (XXXIV)
- Foi isto que a Teresa me mandou.
- Realmente, só dela.
- Sabes tricotar?
- Sou bem capaz de aprender...
- Então aprende, menino, aprende. Vemo-nos depois do natal, sim? E descansa, olha que tricotar relaxa.
- Se não for trabalho...
- Este não é trabalho, é desejo.
Boa educação # 5
Como é do conhecimento geral, os dados apontam que bla bla bla.
WC Lectures # 3
Vamos lá à questão sub specie sociológica. Que daqui a uns bons anos o pai seja alguém que tenha aprendido uma grande parte da vida (é uma forma de falar, claro) nas canções. E que continue sempre na linha da frente. Como é que o filho fará a diferença? Tornando-se um adepto do totalmente trash e kitsch? Regressando ou entricheirando-se na música clássica? Tornando-se musicalmente surdo? E o que será para ele o remotamente fixe do pai? Curioso, não é, como tão dificilmente adivinhamos o que poderá sentir daqui a uns quinze ou dezasseis anos um jovem que neste momento esteja a nascer. Tão difícil que eu estava para aqui a pensar que a tira aí de baixo é bem capaz de ter mais de wishful thinking Scott & Borgman do que de genuíno espanto do Jeremy. Mas enfim, é só um palpite…
WC Lectures # 1
E para terminar bem o dia...
Psicopatologia da vida quotidiana # 16
Ela, mostrando-me a galeria de imagens do telemóvel: “Este é o meu filhote a rir-se, aqui é o gato, muito bem comportado no seu cesto, a marquise virada a sul, a magnífica erecção do meu amigo de cama, e as mãos longas do meu confidente a qualquer hora do dia ou da noite. Não achas que sou uma mulher com sorte?”
Boa educação # 4
Ouvindo V. Excª, tenho que concluir que ou não vivemos no mesmo país, ou um de nós, vivendo embora aqui, tem a ventura de habitar um micro país onde tudo é diferente daquilo que o comum dos portugueses conhece. Eu acho que V. Excª tem essa ventura, até porque a merece.
Um sábado fora do centro comercial # 5
À consideração de alguns leitores (legitimamente) renitentes
Tome o livro. Tome duas folhas em branco (ou sente-se ao computador, se lhe for de maior conforto).
Anote o título do primeiro capítulo ou parte. Anote o título, ou a numeração, ou a simples divisão sem título e sem número de cada sub-capítulo. Corra assim o romance até ao fim: está a fazer um índice, certo?
Vamos agora a uma segunda operação, um pouco mais demorada.
Em cada sub-capítulo, copie as frases em “discurso directo”, aquelas que se destacam na mancha tipográfica por começarem por um travessão. Algumas repetem-se, certo? Anote à frente da frase o número de ocorrências. Ao fim de quatro ou cinco sub-capítulos já dá para perceber que as frases não são muitas em cada sub-capítulo (às vezes são só mesmo duas ou três, outras vezes um pouco mais), mas que se repetem o seu tanto.
Faça esse processo para todos os sub-capítulos do romance.
Agora feche o livro. Proponho até que o mantenha fechado por uma semana ou mais.
Leia as frases que copiou. É possível que a intervalos regulares de sub-capítulos encontre uma ou outra vez as mesmas frases ou frases muito parecidas. Provavelmente, são sub-capítulos da responsabilidade de um mesmo narrador. Mas não se preocupe com isso. Estabeleça apenas ligações, se elas parecerem plausíveis e imediatas.
Comece a imaginar histórias de dor, cujo centro possa ser definido pelas frases que copiou. Um número maior de ocorrências pode querer dizer que aquilo dói mais. Mas uma única ocorrência não quer necessariamente dizer que aquilo tenha doído menos.
Pense nisto vários dias. Vá construindo personagens na sua cabeça. Sofrendo com eles. Acompanhe-os. Não faça deles vítimas ou coitadinhos, mas também não faça deles heróis malignos castigados pelos deuses. Gente normal. Mais dores que alegrias, mais frustrações que êxitos. O lado errado da vida. O lado errado da vida que é o lado normal da vida.
Pense nisto vários dias.
Depois reabra o livro e comece a ler desde o princípio. Vai ver que é mais simples de compreender.
Um sábado fora do centro comercial # 4
O tempo das perguntas sobre os segredos da oficina parece que já passou. Escrever é um ofício, e ofícios há muitos. Uma ou outra curiosidade ainda, mas fora de qualquer tom de sacralização.
Que se pergunta então ao escritor? As perguntas que se fariam a um amigo, se ele pudesse ser nosso amigo antes de ter havido perguntas e respostas ou qualquer coisa remotamente semelhante a conhecimento mútuo. O resto são perguntas a puxar à doutorice literária, ao diabo com elas.
Um sábado fora do centro comercial # 3
Um sábado fora do centro comercial # 2
Tertúlia Literária: Ontem não te vi em Babilónia.
Com a presença de António Lobo Antunes. Apresentação e moderação de Luís Mourão.
Organiza o Centro Cultural do Alto Minho, no Auditório Municipal de Viana do Castelo. 16 de Dezembro, Sábado, pelas 16.00h.
Liberdade livre
Sodoma e Gomorra, Cidades do Ensino Sperior: a conferência
Não estive na conferência da apresentação dos resultados do estudo da OCDE sobre o Ensino Superior Português. Mas falei com quem esteve. Deus entrou mudo e saiu calado. A OCDE apresentou. Houve perguntas e respostas elucidativas. O estudo recomenda um modelo laboral em que docentes e funcionários deixem de ser funcionários públicos e passem a ser funcionários das Universidades e Politécnicos. Modelo das fundações, dizem eles. Perguntou-se se isso era privatização. Disseram que não. Mas acrescentaram que isso tinha de ser resolvido dentro do contexto português. O estudo recomenda maior profissionalização da gestão das Universidades e Politécnicos. Perguntou-se se isso era apenas para as questões dos dinheiros, ou se esses gestores também decidiriam dos cursos e da organização científica. Disseram que isso tinha de ser resolvido dentro do contexto português. O estudo recomenda que os Politécnicos devem ser verdadeiramente politécnicos, formando rápido e em força para o mercado de trabalho. A bastonária da ordem dos enfermeiros perguntou se a enfermagem era universitária ou politécnica, até porque algumas Escolas de Enfermagem tinham sido integradas umas vezes no Politécnico, outras na Universidade, conforme a Instituição de Ensino Superior existente na zona. Responderam que esse e casos análogos teriam de ser resolvidos dentro do contexto português.
Deus entrou mudo e saiu calado. Mas dizem que estava contente. Nos pequenos círculos, Deus disse que as coisas estavam bem e ainda iam melhorar. E voltou a dizer que no próximo ano serão publicados todos os instrumentos necessários para a reorganização e remodelação do Ensino Superior. Haja saúde...
Sodoma e Gomorra, cidades do Ensino Superior
Deus recebeu o relatório da OCDE. Sodoma e Gomorra eram iníquas. Quantos milhares sentados à manjedoura do vínculo definitivo ao funcionalismo público, produzindo nada, acrescentando a crise. Então Deus chamou os dois anjos da destruição e mandou-os aniquilar Sodoma e Gomorra. Um anjo perguntou: Senhor, e se houver dez justos em Sodoma e Gomorra, podemos poupar as cidades? Deus respondeu: Haverá até mais do que dez justos, mas esses nada terão a temer nas novas cidades que mandarei edificar em substituição destas. Interveio então o outro anjo: Mas, Senhor, se sabeis que há justos, porque não criais um sistema sério de avaliação para que se possa separar o trigo do joio? Para quê destruir as cidades que tanto vos custaram a edificar? E se houver novas cidades, a quem confiareis Vós o governo delas, para que não voltem a existir milhares sentados à manjedoura, já não do vínculo ao funcionalismo público, mas da obediência ao poder que vós determinardes? Ou quereis simplesmente afastar o cálice desta responsabilidade? Ou já não pensais que a Educação é um direito humano básico? Deus franziu o sobrolho, e não se sabia se era pensamento se contrariedade. Mas as manchetes dos jornais gritavam por sangue e os neo-liberais do costume também. Deus afastou-se e marcou uma conferência para o CCB. Ainda se O ouviu resmungar: Chatice, vou ter de fazer política. Os anjos seguiram-no à distância, esperando ordens.
Um Sábado fora do Centro Comercial
Mini-entrevista
Hoje estou nas mini-entrevistas do Miniscente. Assim a modos que é quase um serviço público — as entrevistas, claro...
Psicopatologia da vida quotidiana # 15
A dona da loja de lingerie mulher-homem: “Essa coisa dos ginásios é o chique de agora, doutor. Tenho clientes que me demoram a pagar eternidades, clientes que a bem dizer não têm onde cair mortas, mas chegam aqui e cada uma tem de mostrar que anda num ginásio melhor do que o da outra. E que têm treinador pessoal e um programa em não sei quantos passos para os músculos e os ossos e isso tudo. Ah, e muito importante: que o ginásio delas fornece a toalha e uma cabine privada para o duche. E não me pagam as contas. E estão cada vez mais stressadas. Com sua licença, doutor, só olham para os rabos e mamas umas das outras, a rivalizar. Olhe que tenho aí clientes homens que me dizem preto no branco que tanto se lhes dá que sejam grandes ou pequenos, o que lhes importa é que sejam boas companheiras e boas amigas. Mas elas não, olham umas para as outras como imaginam que os maridos delas também olham. Sabe, doutor? Os homens mudaram um bocado, mas a maioria das mulheres ainda não deu conta. E por isso estão a ficar piores.”
Epifanias # 55
Epifanias # 54
Psicopatologia da vida quotidiana # 14
— Mas de toda a discussão resultou esta grande vantagem: com um aperto de mão e dois beijinhos, posso cumprimentar o departamento inteiro. Não achas catita e supinamente académico?
— Um departamento com três pessoas?! E isso pode ser?!
— Mas quem falou em três pessoas? Nós cá no norte ainda cumprimentamos as senhoras com dois beijinhos, somos muito carentes.
Boa educação # 3
Abrir a porta para Sua Importância passar e resistir à tentação de ter uma súbita dor de pulso.
Dar a volta à coisa # 6
O coiro, eu dou-to. O cabelo, nem com restaurador Olex.
A Leitora, no seu infinito particular (XXXIII)
O André voltou, mas noutra casa.
O Rui Bebiano mudou de casa.
Fiquei a conhecer a casa do Lauro António.
E a casa do João Barrento.
E também esta residência à direita.
Agora é só o Luís arranjar uma maneira de meter isto nos links, mais os 5 dias e os três caminhos. Mas acho que não vai ser para já, que ele anda entre a epifania e o trabalho escravo. Parece.
A Leitora, no seu infinito particular (XXXII)
Magnífico Alain Badiou sobre o véu, num blog de referência. Mas digo magnífico e fico com um aperto na garganta. Porque não devia ser magnífico, devia ser simplesmente um pensamento decente, como dizia Wittgenstein, partilhado por uma esmagadora maioria de pessoas que procuram ser decentes. Mas não é. E por isso é magnífico. Magnífico quer dizer combate pela decência. Convém não esquecer estas coisas elementares para o século XXI.
A Leitora, no seu infinito particular (XXXI)
O que me fascina nesta fotografia não é o seu lado aparentemente cómico. Afinal, para quem desagua de repente em África ou na China, a primeira impressão é a de que muitos rostos são fotocópias uns dos outros, essa incomodidade de sabermos em sede teórica que eles são diferentes mas não termos ainda o olhar ajustado para percebermos essas diferenças dentro de uma matriz que não é a nossa. O que me fascina nesta fotografia é imaginar a cena doméstica das memórias de viagem: a fotografia mostrada aos familiares, e cada um reconhecer naturalmente a identidade das mulheres, como se o véu fosse o rosto. Não, digo mal. Não é como se o véu fosse o rosto, que obviamente não é, é a oclusão do rosto. É como se o rosto estivesse deslocado do seu lugar, como se o rosto fosse o corpo no seu conjunto: o seu movimento, o seu ar, a sua maneira de ser. Um rosto nu talvez concentre toda a significação do corpo; um rosto tapado talvez disperse essa significação por cada uma das partes do corpo. Mas a significação não se perde. E por isso é reconhecível, identificável.
Errata
Onde se lê: "A absoluta necessidade de vida depois de a desperdiçarmos na vidinha, ou enfim lendo", deve ler-se: "A absoluta necessidade de vida depois de termos sido obrigados a desperdiçá-la na vidinha, ou enfim lendo".
Psicopatologia da vida quotidiana # 13
Há a luta de classes. E há a compreensão das classes. Por exemplo, quando em vez de telefonarem, mandam um Kolmi.
A absoluta necessidade de vida depois de a desperdiçarmos na vidinha, ou enfim lendo
"Há metáforas que são mais reais do que a gente que anda na rua. Há imagens nos recantos de livros que vivem mais nitidamente que muito homem e muita mulher. Há frases literárias que têm uma individualidade absolutamente humana. Passos de parágrafos meus há que arrefecem de pavor, tão nitidamente gente eu os sinto, tão recortados de encontro aos muros do meu quarto, na noite, na sombra... Tenho escrito frases cujo som, lidas alto ou baixo — é impossível ocultar-lhes o som — é absolutamente o de uma coisa que ganhou exterioridade absoluta e alma inteiramente."
Epifanias # 53 [post scriptum a uma história simples]
Epifanias # 52 [post scriptum à história mais triste]
Ela não era aquilo. Não era só aquilo. Mas também era aquilo. Ele só viu o kitsch. Mesmo quando ela acabou de tocar, não foi capaz de vê-la. Não a reconheceu. Na verdade, não poderia reconhecê-la. Porque ele queria aquilo. Mas era demasiado inteligente, e sabia que aquilo só existe enquanto imagem. Mas nunca levantou a imagem para ver a carne que havia por baixo. E havia.
Epifanias # 51 [uma história simples]
Epifanias # 50 [a história mais triste]
Quando for grande quero ser um verdadeiro politécnico (e calma, que tão cedo não volto a tocar no assunto...)
É um simples exercício de faz-de-conta, claro. Mas o que Miguel Vale de Almeida faria ao Ensino Superior, se mandasse, contém alguns dos paradoxos com que esse mesmo ensino, entre nós, se tem deparado. Isso não me impede de concordar com 1, 2, 3, 5, 6 e 9. Os outros levantam-me dúvidas várias.
Por exemplo, o ponto 4: “Transformava os politécnicos em verdadeiros... politécnicos”. Óptimo. Assim dito, até parece que os politécnicos têm uma essência e que em Portugal se desviaram dela. Mas a gente olha para França e eles são uma coisa, espreita a Finlândia e são outra, e lembra-se da Inglaterra (onde há pouco deixaram de existir) e são outra ainda. Por cá, têm-se tentando estabelecer diferenças na legislação e é aquele nominalismo bacoco que se sabe. E na prática, anda tudo à mistura.
O que é mais curioso é que nem as universidades, nem os politécnicos, nem os ministros querem acabar com a distinção. Só que a entendem cada um à sua maneira, que aliás raramente explicam qual seja, mas percebe-se que têm de ser diferentes porque todos dizem — outra curiosidade... — que o politécnico deve ser transformado em verdadeiro politécnico, mas as consequências que daí extraem são diametralmente opostas.
As universidades clamam que os politécnicos se devem manter como verdadeiros politécnicos, e contudo não me lembro de ver qualquer documento do CRUP que diga quais são os cursos estritamente politécnicos, o que li é que todos os cursos podem ser dados pelas universidades, e alguns desses também pelos politécnicos. Mas os politécnicos fazem praticamente a mesma coisa, dizem que todos os cursos profissionalizantes deviam ser politécnicos, aí incluindo medicina e arquitectura, por exemplo, e que isso só não é aceite porque entre nós o politécnico nasceu como ensino de segunda, destinado a desenvolver o interior. O ministério e assembleia da república produzem legislação cheia de distingos subtis, mas preto-no-branco ninguém diz o que pode fazer um e fazer o outro. Parece que anda tudo preocupado com descobrir a essência da coisa, da uma e da outra, o que só pode ter como consequência uma discussão mais longa do que a do sexo dos anjos. Será demais pedir uma decisão política (e por isso performativa)? Qualquer coisa simples que diga: precisamos (ou não) dos dois sub-sistemas, porque queremos que um faça isto e outro aquilo. É assim tão complicado?
O paradoxo dos concursos docentes do Ensino Superior
A crítica aos concursos docentes do Ensino Superior é conhecida: endogamia. Os candidatos da casa ganham o concurso, o júri, maioritariamente da casa, não é isento porque os favorece, e esse favorecimento continua e perpetua linhas de poder em que todos estão ligados por uma "dívida infinita”. A mobilidade docente entre universidades é praticamente impossível, como é praticamente impossível alguém de fora do “sistema” entrar no “sistema” a não ser pela base.
Factualmente, é incontestável que é esta a situação. E também me parece incontestável que ela é responsável, mais no passado do que agora, por um certo espírito de clã, que teve tanto de promoção de alguma mediocridade quanto de delimitação de uma casta. O paradoxo, é que me parece que vai haver condições para concursos rigorosamente independentes num momento em que eles já não respondem às necessidades do Ensino Superior tal como parece que elas hoje se colocam.
Quando o professor universitário era considerado uma ilha, fazendo um trabalho de investigação muito individualizado, sem ligação com os seus colegas e muito menos com quaisquer desígnios de política científica da sua instituição, teria lógica a independência dos concursos: tratava-se simplesmente de escolher uma pessoa singular para acrescentar a uma instituição que vivia da soma de pessoas singulares.
Vivemos hoje numa situação de facto completamente diferente. A palavra de ordem é que a investigação se deve articular em equipas e constituir-se segundo grandes opções estratégicas da instituição, já que não se pode fazer tudo em todas as frentes. A palavra de ordem é que este investimento estratégico é fundamental para assegurar a competitividade em várias frentes: luta pelas verbas para a ciência, luta pela venda de serviços à comunidade, luta pela atracção de alunos e suas propinas. Se a universidade não se torna empresa do conhecimento tout court, para lá caminha.
Digam-me então qual é a empresa que forma os seus quadros, os põe a trabalhar em equipa, desenvolve projectos que dependem do seu know how mas também do seu relacionamento inter-pessoal, e quando quer promovê-los faz um concurso público?
É legítimo pedir a uma instituição que crie equipas, que obrigue os elementos dessas equipas a reunir condições para progredirem na carreira, e depois, regularmente, seja obrigada a colocar lugares-chave dessa equipa a concurso público, e deixando que essa decisão caiba a elementos estranhos à instituição (uma das ideias mais difundidas para assegurar a futura imparcialidade dos concursos é a de que o júri não deve ter nenhum elemento da instituição na qual é aberto concurso)?
Será que uma instituição tem de aceitar obrigatoriamente um docente exterior, com curriculum mais relevante em termos absolutos, mas sobre cuja capacidade de relacionamento com a equipa já constituída nada se sabe, quando existe um candidato interno que tem provas dadas em todos os itens, ainda que o seu curriculum, em termos absolutos, possa ser ligeiramente inferior? E se o candidato exterior até tiver um curriculum científico excepcional e for conhecido pelo seu não menos excepcional carácter difícil, autoritário, qualquer coisa assim que a instituição não esteja mesmo nada interessada em cultivar?
Dir-me-ão que o Ensino Superior é funcionalismo público, e que isso, em termos de concursos de docentes, exige imparcialidade, critérios objectivos, etc etc. De acordo. Mas então é melhor que se tente que sobre o Ensino Superior não impendam discursos de double bind. Que para umas coisas se lhe exija lógica empresarial e para outras lógica de serviço público. Que por um lado se lhe peça competitividade de todos contra todos e por outro se lhe retirem os instrumentos para organizar as estruturas com que se há-de apetrechar para essa competição. O que me parece estranho é que à esquerda se não tenha consciência deste double bind, e se reivindique ao mesmo tempo concursos independentes, maior autonomia das instituições para as suas escolhas, profissionalização da gestão das universidades e possibilidade até de escolherem os seus alunos. Tudo isto, excepto o último ponto, que não foi objecto de debate, ouvimos a Mariano Gago e a António Nóvoa, no último prós e contras. Tudo isto, e também o último ponto, podemos ler neste post de Miguel Vale de Almeida. Que a questão esteja neste estado só mostra, do meu ponto de vista, quão longe estamos de ter ideias claras e consequentes para o Ensino Superior — quaisquer que elas sejam, bem entendido.
Epifanias # 49 [adiar]
Não foi deliberado, não me lembro de ter tomado nenhuma decisão quanto a isso, mas aconteceu. Um dia deixei de ler António Ramos Rosa. Depois de intensamente o ter seguido. Um certo cansaço da sua “ontologia”. Um certo cansaço de mim na órbita dessa “ontologia”. Chega-me agora o livro multiplamente premiado. Sim, por mão amiga. Um dia destes irei abri-lo, ler aqui e ali. Primeiro, para saber de mim — mas neste momento não me apetece muito saber isso de mim. Depois — depois se verá.
Epifanias # 48 [segundo post-scriptum]
Epifanias # 47 [post scriptum]
Epifanias # 46 [longe daqui, mas com a mesma chuva]
Os trabalhos e os dias (17)
Acabar de ler. Preparar as perguntas. Em vez do violoncelo a chuva. Pesar as perguntas: fazem justiça ao esforço de pensamento do que li? Que pode ter sido pouco ou muito, não é isso que está em causa, mas apenas: fazem-lhe justiça? Acompanham até onde podem o caminho daquilo que o outro pensou? Dizer bem ou mal ou assim-assim numa arguição é no fundo fácil. E pode-se fazer dentro de uma certa impunidade: a gente diz alhos, o outro bugalhos. Ou vice-versa. No fim, somos nós quem dá a nota. Sem apelo. Mas houve pensamento? Encontro de pensamentos, lucidez do encontro ou da distância? Em vez do violoncelo a chuva. E por momentos as Goldberg soaram num recanto de mim. Mas era só a chuva.
Epifanias # 45 [ainda não é bem isto]
Psicopatologia da vida quotidiana # 12
O Natal está quase a chegar. O prazo de validade dos yogurtes que comprei já é 23 de Dezembro.
Psicopatologia da vida quotidiana # 11
- Queria marcar a revisão do carro.
- Matrícula?
- Não sei de cor, veja pelo nome, se faz favor.
- Mas a matrícula é para saber de cor... Se houver dois carros iguais, como é que faz para saber qual é o seu? Espreita lá para dentro?..
- Basta carregar no comando à distancia, o que abrir é o meu.
Boa educação # 2 [na loja dos produtos naturais]
- Tomou nota do pão integral com arroz?
- Tá aqui, 800g, não é?
- Isso mesmo. Olhe, já agora vamos introduzir uma inovação na parte das gulodices. Corte a tarte de cenoura, passa a vir o bolo inglês.
- A sua mulher sabe disto? É que ela é viciada em tarte de cenoura...
- Sabe, a tarte cansou... Pode ser que daqui a uns meses a gente troque outra vez.
- Se é assim...
- Mas estava a defender-me a mim da possível fúria da minha mulher ou estava a defender a minha mulher das minhas...
- [interrompendo] Estava a defender a harmonia do casal!
- Uau, você é rápida. Tão novinha e já tão sensata.
- Isto é mais boa educação.
- Conceito alto de boa educação, estou a ver...
- É, o meu namorado é bastante alto, mas quando se trata de boa educação, ou estamos todos à mesma altura ou só se pode descer.
Epifanias # 44
Agora ouve. E trabalha. Está tudo por fazer. Sempre tudo por fazer. Outros dirão que se está sempre a meio de qualquer coisa, ou até talvez já um pouco perto do fim. Às vezes tu próprio dizes isso. Sim, muitas vezes tu próprio dizes isso. E não deixa de ser verdade. Mas quando se ouve mais fundo, sabemos que está tudo por fazer.