O paradoxo dos concursos docentes do Ensino Superior

A crítica aos concursos docentes do Ensino Superior é conhecida: endogamia. Os candidatos da casa ganham o concurso, o júri, maioritariamente da casa, não é isento porque os favorece, e esse favorecimento continua e perpetua linhas de poder em que todos estão ligados por uma "dívida infinita”. A mobilidade docente entre universidades é praticamente impossível, como é praticamente impossível alguém de fora do “sistema” entrar no “sistema” a não ser pela base.

Factualmente, é incontestável que é esta a situação. E também me parece incontestável que ela é responsável, mais no passado do que agora, por um certo espírito de clã, que teve tanto de promoção de alguma mediocridade quanto de delimitação de uma casta. O paradoxo, é que me parece que vai haver condições para concursos rigorosamente independentes num momento em que eles já não respondem às necessidades do Ensino Superior tal como parece que elas hoje se colocam.

Quando o professor universitário era considerado uma ilha, fazendo um trabalho de investigação muito individualizado, sem ligação com os seus colegas e muito menos com quaisquer desígnios de política científica da sua instituição, teria lógica a independência dos concursos: tratava-se simplesmente de escolher uma pessoa singular para acrescentar a uma instituição que vivia da soma de pessoas singulares.
Vivemos hoje numa situação de facto completamente diferente. A palavra de ordem é que a investigação se deve articular em equipas e constituir-se segundo grandes opções estratégicas da instituição, já que não se pode fazer tudo em todas as frentes. A palavra de ordem é que este investimento estratégico é fundamental para assegurar a competitividade em várias frentes: luta pelas verbas para a ciência, luta pela venda de serviços à comunidade, luta pela atracção de alunos e suas propinas. Se a universidade não se torna empresa do conhecimento tout court, para lá caminha.

Digam-me então qual é a empresa que forma os seus quadros, os põe a trabalhar em equipa, desenvolve projectos que dependem do seu know how mas também do seu relacionamento inter-pessoal, e quando quer promovê-los faz um concurso público?
É legítimo pedir a uma instituição que crie equipas, que obrigue os elementos dessas equipas a reunir condições para progredirem na carreira, e depois, regularmente, seja obrigada a colocar lugares-chave dessa equipa a concurso público, e deixando que essa decisão caiba a elementos estranhos à instituição (uma das ideias mais difundidas para assegurar a futura imparcialidade dos concursos é a de que o júri não deve ter nenhum elemento da instituição na qual é aberto concurso)?
Será que uma instituição tem de aceitar obrigatoriamente um docente exterior, com curriculum mais relevante em termos absolutos, mas sobre cuja capacidade de relacionamento com a equipa já constituída nada se sabe, quando existe um candidato interno que tem provas dadas em todos os itens, ainda que o seu curriculum, em termos absolutos, possa ser ligeiramente inferior? E se o candidato exterior até tiver um curriculum científico excepcional e for conhecido pelo seu não menos excepcional carácter difícil, autoritário, qualquer coisa assim que a instituição não esteja mesmo nada interessada em cultivar?

Dir-me-ão que o Ensino Superior é funcionalismo público, e que isso, em termos de concursos de docentes, exige imparcialidade, critérios objectivos, etc etc. De acordo. Mas então é melhor que se tente que sobre o Ensino Superior não impendam discursos de double bind. Que para umas coisas se lhe exija lógica empresarial e para outras lógica de serviço público. Que por um lado se lhe peça competitividade de todos contra todos e por outro se lhe retirem os instrumentos para organizar as estruturas com que se há-de apetrechar para essa competição. O que me parece estranho é que à esquerda se não tenha consciência deste double bind, e se reivindique ao mesmo tempo concursos independentes, maior autonomia das instituições para as suas escolhas, profissionalização da gestão das universidades e possibilidade até de escolherem os seus alunos. Tudo isto, excepto o último ponto, que não foi objecto de debate, ouvimos a Mariano Gago e a António Nóvoa, no último prós e contras. Tudo isto, e também o último ponto, podemos ler neste post de Miguel Vale de Almeida. Que a questão esteja neste estado só mostra, do meu ponto de vista, quão longe estamos de ter ideias claras e consequentes para o Ensino Superior — quaisquer que elas sejam, bem entendido.

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