(Primeiro hotel. A Leitora procura o mesmo quarto, certifica-se do número, empurra a porta devagar. Seis mulheres e um rapazinho estão espalhados pelo quarto. Todas olham a Leitora com atenção e ironia.)
Mulher 1: Tu conheces-nos? Já nos viste?
M3: Sabes quem nós somos?
M6: Eu sou a mais velha, mas não sou a mãe. Nem penses, incesto não, já não se usa, grau zero do drama.
M4: Eu fui a mais nova. Barely legal, he he...
M2: Vês-nos no olhar dele?
M1: Não lhe perguntes isso, ela não olha para ele assim.
M5: Não olha mas vê. Qualquer mulher vê.
M1: Deixa-te disso. Não há essa essência. Ou vês ou não vês. E para veres uma coisa não podes ver a outra. Deixa-te disso.
M5 (apontando para M1): Ela foi quem lhe meteu mais medo. Coitado... E coitada dela, também.
M1: Não foi meter medo, o medo vivia entre nós. Entre nós todos. Quase uma geração para o caixote do lixo, por causa do medo.
M4: Mas uma vida é longa, às vezes isso é o que vale. Eu fui a mais nova. E ele foi muito novo.
M6: Era uma criança. Tão desajeitado, tão poético. Demasiado sensível para ser homem. Quase se perdia. Quase nos perdíamos.
M3: Sabes quem nós somos?
M1 (apontando para M3): Ela dá muita importância à questão da identidade...
M3: Eu sou a que ele confundiu sempre com outra.
M2: Todos os homens têm isso em certos momentos, distinguem mal, confundem tudo, não sabem ver. Tu vês-nos no olhar dele?
M3: Mas ele tinha de me confundir, vocês ainda não perceberam. Era sempre a mim que ele queria, mas não suportava o meu excesso de realidade.
M4: Eu fui a mais nova, já não havia realidade nenhuma, apenas existência.
M1: Sempre houve realidade e existência. Nunca deixará de haver realidade e existência. Quando vês uma não vês a outra. Deixa-te disso.
M2: Eu sou a que olha nos olhos e vê as mil despedidas. Despediu-se de mim mil vezes. Despede-se de cada coisa mil vezes, mas só numa fala, a dizer adeus. Às vezes nem fala.
M6: Eu sou a mais velha, aquela a quem ele conta cada recomeço. Recomeça mil vezes de cada vez.
M1: Tu deves conhecer-nos. Já nos viste, de certeza.
M3: Sabes quem nós somos?
M5: Eu sou a que ele vê de passagem, a que está nos sonhos de que não se lembra, a que o faz vir quando se abandona a nada.
M1: É ainda e sempre o medo.
M5: Não, é ainda e sempre a vida.
M6: Vais ficar connosco?
(A Leitora procura o rapazinho com o olhar, avança na sua direcção; o rapazinho, que até aí andou de mulher em mulher, puxando-lhes pelos vestidos ou fazendo pequenas brincadeiras inocentes, recua para a janela.)
Leitora (dirigindo-se apenas ao rapazinho): Vens comigo?
Rapazinho (a medo): Tu tens o rádio?
Leitora (hesitando): Eu arranjo-te um rádio, anda...
Rapazinho: Não, tem de ser aquele. Tu tens aquele rádio?
Leitora: Eu arranjo-te um rádio melhor que aquele.
Rapazinho (triste): Tu deixaste que eles levassem o rádio?
Leitora (controlando-se): Eu arranjo-te um rádio melhor, vais ver. Aquele nem dava música, só coisas estranhas. Não sei se eles levaram o rádio, mas não faz mal. Eu arranjo-te um rádio só para ti, novinho, anda...
Rapazinho: Tu não percebes, assim não se pode morrer. É uma pena que tu não percebas.
(O Rapazinho abre a janela e atira-se. A Leitora fica petrificada, as outras seis mulheres não reagem, continuam a olhá-la com atenção e ironia. Silêncio. Finalmente, M6 levanta-se e empurra a Leitora para a porta.)
M6: É no andar de baixo. Procura no andar de baixo. É o mesmo número, mas ao contrário. Vai. No andar de baixo, o mesmo número ao contrário.
Multiplex 31 # oito
Luís Mourão
3.5.07 |
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