(A Leitora corre, vira uma esquina e está à entrada de um parque de diversões. Roullote de bifanas à direita. Dois homens, um negro e um branco, altos, com aventais, atendem. Olham-na com indiferença.)
Leitora (L): Acho que tenho fome...
Homem preto (HP): E então o que vai ser?
L: Assim de repente fiquei com fome...
Homem Branco (HB) [entredentes]: Esta é das frescas, ai é é...
L: Acho que estou mesmo com fome, essa é que é a verdade.
HP: Querida, tens muito por onde escolher, deita aí o olhinho e diz aqui ao brother o que vai ser...
L: Mas é que não sei o que me apetece... De repente fiquei com uma fome!.. E estou triste. De repente fiquei tão triste...
HB (entredentes): Eu não disse? Fresquíssima... Mais uns torneados e pergunta se não lhe arranjamos uma linha ou se temos alguma coisa que ela possa mandar. Topo-as à légua.
L: Estou triste e com fome. Ou estou faminta e com tristeza. Engraçado, propriedade comutativa dos sentimentos... (pensativa) Comutativa? Será?.. (pausa)
HP: Lady, tu tas bem? Pareces-me um bocadinho...
L: Há aí música?
HP (apontando para o rádio que ela traz na mão): E isso aí?
L: Hum... Não sei. Tu sabes funcionar com isto? (passa-lhe o rádio)
HP: Catita de antigo, sim senhor. (mexe nos botões)
L: E continuo com fome. (para o HB) Como te chamas tu, que tas aí tão calado?
HB: E isso interessa? Somos agora amigos, é?
L: Mas podes inventar. Sempre distrai os clientes. Inventar não custa nada. Anda lá, estou tão triste... Como é que te chamas?
HB: Ponhamos Henrique Nuno.
L: É bem, Henrique Nuno... Espera, isso até me faz lembrar qualquer coisa... Mas não interessa. (apontando o HP) E ele, como se chama?
HB: Ponhamos Nuno Henrique.
L: ...
HB: Que foi, miúda? Que cara de susto é essa? A fome subiu-te à cabeça?
L (tremendo): Isto não é sobre mim, ouviste? Isto não é sobre mim, não pode ser sobre mim. Não tás a ter piada, ouviste? Inventa já outros nomes, não tás a ter piada. Desvia-me esta história.
HB: Ei, miúda, vai com calma. Foste tu que perguntaste. Nomes há muitos. Inventa tu.
HP: E agora, lady, aqui vai...
(O rádio começa a tocar. Som roufenho, interferências típicas das ondas longas, distingue-se uma voz que fala uma língua de leste. Escutam os três por momentos, a tentar compreender. O som do rádio começa a aumentar. O HP tenta controlar o volume, mas o botão é inútil. O som adquire a intensidade de um altifalante potente. O HB tapa os ouvidos com fastio, o HP coloca o rádio no gancho da janela da roullotte, a Leitora hesita mas acaba por afastar-se a correr.)
Multiplex 31 # sete
Luís Mourão
3.5.07 |
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This entry was posted on 3.5.07
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