- És tu?
- Claro que sou eu. És parva ou quê?!
- Calma... Não estavas a ouvir rádio, não há por aqui um rádio?
- Achas-me com cara de ouvir rádio?!
- É que ouvi um rádio quando vinha a subir, pensei...
- Pensaste o quê? Pensaste o quê, hem?! A merda do costume, já se está a ver. Se ouviste um rádio e entraste aqui, o rádio tem que ser aqui. Brilhante, não é? Achas que é tudo assim tão fácil? Perdeste uma coisa ali, mas aqui é que há luz, logo procuras a coisa aqui. Tão lógico, não é? E estás mesmo à espera de encontrar, não estás?!
-...
- Eu perguntei: NÃO ESTÁS?!
-...
- Oh, foda-se, faz como quiseres...
-...
- Eles levaram o rádio. Já há muito tempo. Deves ter ouvido outro.
-...
- Acho que não há por aí mais ninguém. Deves ter ouvido mal. Ou foi no prédio ao lado e pensaste... oh, foda-se, faz como quiseres... (silêncio)
- Cheira mal aqui.
- Estavas à espera de quê? Do porquinho Babe?!
- Cheira mal. Tu aguentas?
- Eu gosto, percebes? Sou um porco. Será que percebes uma coisa tão simples como esta? Sou um porco.
-...
- Ok, ok, estamos cheios de silêncios muito melodramáticos... Mas não te vou perguntar o que vieste cá fazer. Não vou, não vou, NÃO VOU.
-...
- Não vou... Mania das mulheres, é só perguntas. Agora pergunto eu, agora perguntas tu. E passa-se a vida inteira nisto. Agora pergunto eu, agora perguntas tu. E repete, repete, repete. Agora pergunto eu, agora perguntas tu. Mas não vou, não vou.
- Isso aí no chão é merda? É que cheira mesmo mal.
- Comida de shopping. (pausa) Já te aconteceu? O shopping cheio, tu cheia de fome, abancas a uma mesa, e de repente sentes aquele peso brutalmente animal... Uma bocarra enorme mastigando ferozmente, já te aconteceu? Aquela coisa animal, a boca cheia de comida, e só te importa isso. Rosnas, olhas por cima do prato a ver se ninguém te ameaça, estás estupidamente contente. (pausa) Mas podes dizer que é merda, tanto faz. E nem penses que te vou perguntar, escusas de estar a desviar as atenções. Não vou, ouviste? Não vou, NÃO VOU!
- Mas não gostas de comer devagar, garfo e faca, maneiras gentis, saborear, um acto de civilização?.. Sei lá, o sublime da gastronomia, qualquer coisa assim...
- Mas tu já olhaste bem para mim?! Que merda vêm cá fazer esses anjos da mesa? Cheira mal, menina. E se queres foder é aqui mesmo, deixa-te de tretas. E nem penses que... Não vou. Mas isso já está assente. Não vou.
-...
- Mas tu podes perguntar à vontade. A ver se eu me ralo...
-...
- Ouviste alguma coisa? (escuta) Não respires, deixa-me ouvir. (escuta tenso). Eles vão chegar. É melhor ires-te embora.
-...
- Vai-te embora já!
- E se eu ficar?
- Não podes. (pausa) Não deves. Não podes. Vai-te embora. E leva o rádio (tira um rádio de pilhas de debaixo da cama e atira-o para os pés da Leitora). Leva o rádio, desaparece.
- E se eu ficar?
- Odeio-te, vai-te embora. Não consegues ouvir o que te dizem? Vai-te embora. VAI-TE EMBORA!
-...
- E leva-me a merda do rádio. (levanta-se e esboça um passo, mas a Leitora abre a porta e corre escadas abaixo) Isso, vai-te embora, assim é que é. Ora bem, assim é que é... Odeio-te, vai-te embora, assim é que é. Nunca percebem nada. Não percebeste nada. Ainda bem que levas a merda do rádio. Se te odeio é porque te amo. Nunca percebeste nada. Vai-te embora. Eles ainda vão demorar a chegar. (escuta atento) Ainda vão demorar muito a chegar, assim é que é. (pausa) Oh, que se foda, que façam o que quiserem. (pausa; em voz muito baixa) Um porco não pode amar. Assim é que é. Mas tu não percebeste nada. E então eles.. Hehe, cambada de idiotas!.. Um porco não pode amar, isso é o que eles dizem. E quem sou eu para os desmentir? Assim é que é. (levanta-se e procura na gaveta da mesinha de cabeceira; encontra uma faca; entredentes) Assim é que é, não custa nada. (corta um pedaço da face/focinho sem esforço aparente; o sangue jorra, mastiga a carne com tranquilidade). Assim é que é, eles não percebem nada. (pára de mastigar e põe-se à escuta; sorri e continua a mastigar) Vai-te embora, vai para longe, eles ainda vão demorar a chegar (continua a mastigar com tranquilidade, o sangue escorre devagar).
Multiplex 31 # seis
Luís Mourão
2.5.07 |
0 Comments
|
This entry was posted on 2.5.07
You can follow any responses to this entry through
the RSS 2.0 feed.
You can leave a response,
or trackback from your own site.
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
0 comentários:
Enviar um comentário