Multiplex 31 # quatro

(Bate leve, a porta abre-se devagar. Entra. Está um urso enorme sentado na cama)
- Sou eu. Fecha a porta.
-... (hesita, fecha a porta, mas fica encostada à porta, como se a qualquer momento pudesse sair)
- Sou eu...
-...
- Não tenhas medo, sou apenas eu. Sei que deve parecer estranho, Leitora. A mim parece-me muito estranho.
-...
- Diz qualquer coisa, por favor. Fala comigo.
- Não te reconheço em nada, a não ser agora nessa súplica. Mas tanta gente suplica. Toda a gente suplica, se pensarmos bem.
- E ficavas por causa da súplica, mesmo que não fosse eu?
- Não sei. Talvez não. Mas não sei. (pausa) Não te reconheço em nada. Nem na voz. Pareces tão preso aí, nesse corpo gigante. Tão indefeso. Mas és um urso, não és?
- Sou eu. Quer dizer, penso que sou eu, mas acho-me muito estranho. E não é por ser um urso. ISTO é um urso, não é?
- Parece-me que sim. (pausa) E pensar que eu...
- Tu?..
- Nada. A tua mensagem deixou-me a pensar em muitas coisas diferentes.
- Mensagem? Eu mandei-te uma mensagem?
-... (olha-o fixamente)
- Não tenho nada comigo do que era meu. Mas sabia que virias. Estou tão cansado. Mas ao mesmo tempo não é bem cansado, é antes... Não sei o que é.
- Devo fazer alguma coisa?
- Alguma coisa?
- Sim, se devo fazer alguma coisa... Tirar-te daqui, ficar aqui, sei lá...
- Não me perguntaste o que aconteceu, não é curioso?
- Tenho medo. Se te perguntar, isto vai parecer mesmo real e acho que não aguento! Isto é absurdo. Um urso. É absurdo.
- Não, é lógico. Tem uma lógica que eu reconheço, mas que não consigo explicar. Um dia hei-de saber. Agora tens de ir.
- Tenho?
- Tens. Há outro hotel, tem o mesmo nome, mas é nos subúrbios. O mesmo quarto.
- Tenho de ir?
- Tens. Sabes onde é. Vai.
- E tu?
- Vai. Fecha a porta. Vai.

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