A blogosfera tem este encanto. De repente, alguém que nos é completamente desconhecido, chega ao diálogo connosco. A propósito do número dois desta série, Joana Bicacro enviou-me um texto de Patrick Suskind, “Amnésia in litteris”, incerto em Um combate e outras histórias. É um Suskind que não está nas minhas prateleiras, e até se percebe porquê – era coisa para ir roendo devagar tudo à volta, até só haver pó. Mas se calhar todo o texto alimenta o desejo mais ou menos expresso de matar todos os outros, o palimpsesto é apenas a arena desse combate. Em todo o caso, tomemos as nossas precauções. Sonego o todo, circunscrevo o extracto:
(…) O olhar detém-se no extremo da prateleira. O que é que está lá? Ah, pois: três biografias de Alexandre Magno. Li-os todos noutros tempos. Que sei eu sobre Alexandre Magno? Nada. No extremo da prateleira seguinte encontram-se vários fascículos sobre a Guerra dos Trinta Anos, entre os quais quinhentas páginas de Verónica Wedgwood e mil páginas de Golo Mann sobre Wallenstein. Li tudo isso aplicadamente. Que sei eu sobre a Guerra dos Trinta Anos? Nada. A prateleira inferior está atulhada com livros sobre Luís II da Baviera e a sua época: quanto a estes, não me limitei a lê-los apenas, estudei-os minuciosa e porfiadamente durante mais de um ano, e de seguida escrevi três argumentos para filmes sobre esse tema — tornei-me quase numa espécie de perito em Luís II. Que sei eu hoje sobre Luís II e a sua época? Nada. Absolutamente nada. Pois bem, quanto a Luís II talvez ainda seja possível aceitar esta amnésia total. Mas... e quanto aos livros que se encontram acolá, ao lado da secretária, na secção mais requintada, a literária? O que é que me ficou na memória da colecção em quinze volumes de Andersch? Nada. O que é que ficou dos Bõll, Walser e Koeppen? Nada. Dos dez volumes de Handke? Menos do que nada. Que sei eu ainda de Tristram Shandy, das Confissões de Rousseau, do passeio de Seume? Nada, nada, nada. Ah, eis ali as comédias de Shakespeare! Li-as todas no ano passado. Qualquer coisa deve ter ficado, uma vaga ideia, um título, um único título de uma única comédia de Shakespeare! Nada. Mas, pelo amor de Deus, pelo menos Goethe, por exemplo, este volumezinho branco, As Afinidades Electivas: li-o pelo menos três vezes — e já não tenho nenhuma ideia dele. Parece que tudo se evaporou. Será que neste mundo já não existe nenhum livro do qual ainda me lembre? Aqueles dois volumes vermelhos ali, grossos e com os marcadores vermelhos, esses conheço-os de certeza, parecem-me familiares como móveis antigos, esses li-os, vivi nesses volumes semanas a fio ainda não há muito tempo, mas, que diabo!, como é que se chama afinal? Os Demónios. Pois é. Pois sim. Interessante. E o autor? F. M. Dostoievski. Hmm. Ora bem. Parece-me que me lembro vagamente: creio que tudo se passa no século XIX, e no segundo volume alguém se mata com uma pistola. Acho que não me lembro de mais nada. Afundo-me na minha cadeira à frente da secretária. É uma vergonha, é um escândalo. Há trinta anos que sei ler e, se não li muito, pelo menos li alguma coisa, e tudo o que me resta disso é a recordação muito ténue de que no segundo volume de um romance com cerca de mil páginas há alguém que se mata com uma pistola. Trinta anos de leitura em vão! Passei milhares de horas da minha infância, juventude e idade adulta a ler sem reter nada a não ser um enorme esquecimento. E este mal não diminui; pelo contrário, agrava-se. Se leio um livro hoje, esqueço-me do início antes de ter chegado ao fim. Por vezes a minha capacidade de memorização nem sequer consegue fixar a leitura de uma página. E assim, de galho em galho, de parágrafo a parágrafo, de uma frase à outra, em breve alcançarei um estado em que só conseguirei captar conscientemente palavras isoladas que afluem da escuridão de um texto sempre desconhecido, que cintilam como estrelas cadentes no momento em que são lidas e que logo voltam a submergir no esquecimento total da escura corrente de Letes. Já há muito tempo que não consigo proferir uma única palavra em debates literários sem me expor terrivelmente ao ridículo, confundindo Mörike com Hoffmannsthal, Rilke com Hölderlin, Beckett com Joyce, Italo Calvino com ítalo Svevo, Baudelaire com Chopin, George Sand com Madame de Staél, etc. Se pretendo procurar uma citação da qual tenho uma ideia vaga, passo dias a esquadrinhar livros porque me esqueci do autor e porque, enquanto procuro, me perco em textos desconhecidos de autores que ninguém conhece, até finalmente ter esquecido o que é que procurava inicialmente. Como é que, neste caótico estado de espírito, poderia responder à pergunta: qual foi o livro que mudou a minha vida? Nenhum? Todos? Qualquer um — não sei.
Bom polícia, mau polícia # 3
Luís Mourão
11.8.07 |
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