Guarda-nocturno do mar # 20

Não há imaculada concepção do social. Ou do território, da nação. Mas também não há discurso de legítima defesa sem mancha. Ou só o há na medida em que se diaboliza o outro. Ou seja, em que se renuncia a pensar criticamente. Nos dois discursos de legítima defesa que se confrontam por trás das armas, em nenhum leio o reconhecimento da mancha. Não esperava lê-lo na legitimação daqueles a quem chamamos terroristas. Mas daqueles a quem chamamos democratas, não deveria esse reconhecimento estar no centro de qualquer discurso cujo tema seja a violência?

Guarda-nocturno do mar # 19

Tu: primeiro lugar no concurso infantil «atirei o pau ao gato». [Ok, é um bocado críptica, quer dizer, muito críptica, mas também tenho direito, estou em férias. PS: nenhum animal foi atingido; aliás, não há nenhum animal nesta história].

Guarda-nocturno do mar # 18

“Esta é a história da partida, a história da condição fraca: / Essa que os transcende e colossal torna a lenda dos seus corpos” [Maria Andresen, Livro das passagens, p. 52].
Dá-lhes um quarto com janela para o fim da tarde. Deixa-os permanecer. Risca o quarto das tuas contas de aluguer. O resto dá para sobreviver. Não há outra forma de esquecimento.

Guarda-nocturno do mar # 17

O bar fechou. Chegaram os cães. Qualquer cão sabe olhar a distância. Não é o único ser que espera Ulisses, mas é o único que poderá reconhecê-lo. Só ele sabe o que permanece num humano que o torna identificável. Nunca revelou o segredo. É a prova maior da sua imensa generosidade, ter-se-iam acabado todas as histórias.

Guarda-nocturno do mar # 16

A História ensina-nos. Mas o que nos ensina não é particularmente recomendável do ponto de vista humano. Ensina-nos que a guerra resolve, até nova guerra ou à continuação dela por outro meios. Ensina-nos que o mais forte vence, mas que nem sempre o mais forte é o mais justo. Ensina-nos que quando dois que longamente se guerrearam, o deixam de fazer, e parece a todos absurdo que o possam voltar a fazer, é ou porque se estão a guerrear de outro modo ou porque são aliados contra um terceiro, ou tudo ao mesmo tempo (Portugal-Espanha seria aqui um pequenino exemplo elucidativo). A História ensina-nos que os bons princípios se firmam pela força das armas, se tornam direito e usufruem da protecção das armas que o mesmo direito legitima, e quando há rupturas graves a civilização nem precisa de dobrar a esquina da rua para se tornar barbárie, aponta logo para a porta do vizinho. Ou ainda antes disso, para as pessoas que estão a tomar chá com ela.
A História ensina-nos, mas o que nos ensina não é particularmente recomendável do ponto de vista humano. Mas precisamente desse ponto de vista, conseguimos alguma vez ser tão longamente humanos que isso se fizesse História? E contudo, como agir de outro modo senão em nome da História e da humanidade que queremos para nós? Ou da humanidade que nela pensamos ainda descobrir para nós?

Guarda-nocturno do mar # 15

Claro, férias. Mas “A casa que transportamos traz / no coração em guerra uma cidade, / um sonho, um peso secreto, uma montanha” [Maria Andresen, Livro das passagens, p. 29]. A impossibilidade de nos alhearmos, directamente proporcional à impossibilidade de intervimos no curso real dos acontecimentos. Nietzsche falou intempestivamente da nossa triste condição de carregarmos o peso do passado, da História. Talvez devêssemos falar, hoje, de como o directo ou a actualidade fabricam no imediato esse mesmo peso da História, continuando a História a ser aquilo que psicologicamente sempre foi: o que não só está fora do alcance da nossa vontade, como mostra que a nossa vontade é quase nada.

Guarda-nocturno do mar # 14

Claro, férias: sea, sex and sun. Mas quanto ao sol, sou ferreamente puritano (ou espartano? não, deve ser puritano). Só até às nove e meia, e só depois das dezoito e trinta. Andando ou lendo. Mas gosto do cheiro que ele põe no mar.

Guarda-nocturno do mar # 13

“Que concedido nos foi pisar este lugar / de tal modo tocando o negro sulfuroso / escorrendo para o mar / e a incandescência verde em que a alma / é subterrânea aos pés” [Maria Andresen, Livro das passagens, p. 32].
A alma que é subterrânea aos pés pertence já à terra ou ao abismo de nós próprios? Pertencemos à matéria, somos o conhecimento incandescente da matéria, ou caminhamos sobre arquitecturas frágeis, implosivas?
Mas sobretudo: saberemos a diferença? E: haverá diferença?

Guarda-nocturno do mar # 12

- O amor?
- Não.
- O quê, então?
- Sem nome.
- Porquê?
- Por nada.
- Tens de falar mais.
- Porquê?
- Por mim. Como o mar. Ondas. Com as suas várias escalas.
- Eu falo.
- Já. A partir de agora. Como o mar.
- E tu, falas?
- Noite fora, por dentro do mar.
- Que fazemos ao amor?
- Precisas dele?
- Quero o que tenho. E a continuação.
- Mas precisas dele?
- Assim não.
- Deita-o ao mar.
- Todo?
- A palavra inteira. Toda. Mata-a primeiro, espalha-lhe as cinzas.
- Nem uma sílaba queres guardar?
- Todo, varre-o todo para o mar, que vá para longe.
- Mas tu ficas, não ficas?
- Tens medo da solidão?
- Não.
- Fico. É a continuação.
- E se a continuação for outra coisa?
- Há mar que chegue.
- E noite, sim. Que chegue.

Guarda-nocturno do mar # 11

Guarda-nocturno do mar: “Lugar do nenhum lugar / que por nós passa” [Maria Andresen, Livro das passagens, p. 23].

Guarda-nocturno do mar # 10

Negro, pesado. Quando não há estrelas nem lua. Agora quase quieto, lava arrefecida. Mexo o corpo por dentro contra o frio. O mundo mexe-se sempre da mesma maneira. Não aprendemos a contrariá-lo. Ou muito pouco.

Guarda-nocturno do mar # 9

Tu: “uma espécie de eficácia contornando / as formas recorrentes da estranheza” [Maria Andresen, Livro das passagens, p. 18].

Guarda-nocturno do mar # 8

Nas noites de maré alta estás só. Quem quer te chame, não ouves. Quem quer que chames, a tua voz não alcança. Se tivesses uma arma na mão e centenas a teu lado, não seria muito diferente.

Guarda-nocturno do mar # 7

“Naquele monte ali olhamos / os dois modos de ir que tem a paisagem // O circular, das horas, / e o que pertence ao corpo montanhoso, imóvel” [Maria Andresen, Livro das passagens, p. 17].
Mas também neste mar se vêem os dois movimentos da paisagem. O circular, das gaivotas e do olhar, e o que pertence ao corpo quase abstracto da água lá longe, imóvel. E para o aprendermos sem falhas, o monte está por trás de nós.

Guarda-nocturno do mar # 6

Nas noites de maré vaza o infinito cresce para mais longe. Devíamos partir. Tudo o que podemos fazer é bordejar.

Guarda-nocturno do mar # 5

- Quem é aquele?
- Não sabe.
- Não sabes?
- Ele não sabe, e eu sei que ele não sabe.
- Como é que sabes que ele não sabe?
- Se soubesse, ele dizia. Razões não faltam. Há mais razões que coisas razoáveis. Há também a força dos fortes e a força dos fracos. Há ainda a força da dúvida. Mas não se vê força nele. Nem razões.
- Isso não é possível. Ele existe, logo isso não é possível.
- De facto. Existe. Não é possível. Está a acontecer.

Guarda-nocturno do mar # 4

“Mas de antigamente, como lenda de uma eternidade inicial, não mais / temos que a claridade das vozes, a imaginária transparência / (preciso é não saber do caldo comum, / da larva do início a emergir na lama do caos, / da obstinação e da improvável direcção) // Eterno ou limpo foi apenas o dom de possuir / um tempo a que chamaríamos vindouro // Agora chegámos ao lugar vindouro / agora tocámos, de novo, na estupidez da terra”. [Maria Andresen, Livro das passagens, p. 13].
O mar, gosto de pensá-lo, é a coisa mais antiga de todas as coisas antigas. Mais que a pedra ou o espaço. Nunca o investiguei, mas presumo que seria fácil e provavelmente aprenderia que estou errado. Não importa. Não o penso como lenda ou cosmogonia. Frente ao mar, sei o que é antigo. Sei que o humano é demasiado novo, pertence só a este tempo que vem vindo. Estamos na estupidez da terra, talvez um dia comecemos a aprender. Mas mesmo isso, começar a aprender, será ainda parte do longo processo da estupidez. De alguma forma, o mar já esqueceu. O que vai e vem a nossos pés é apenas um jogo para os nossos olhos. Lá mais para trás, sabemos que há abismos, mas nada da sua profundidade nem do que neles repousa. Gosto de pensar que o próprio mar o não sabe. Gosto de pensá-lo tão antigo quanto isso. E ainda mais.

Guarda-nocturno do mar # 3

- As noites são frescas. Não importa se apanhas peixe ou não.
- Eu já nem a cana trago. Privilégios da idade. Entras no mar e sais, ficas sentado, em pé, ligas e desligas a luz. É ainda mais relaxante.
- Que pensas quando entras no mar?
- Dantes era para ajeitar a linha, conseguir uma melhor posição, agora é apenas um lugar diferente. Sentes o frio, a impressão viva do mar na borracha. É um corpo vivo, o mar. E então sabes que estás vivo de outra maneira.
- Não te faz falta lançar? Esperar? Pressentir?
- Um dia hei-de vir para aqui e já nem precisar de entrar no mar.
- Um dia nem hás-de precisar de vir para aqui.
- Não vivemos o suficiente para isso. Não é possível aprender tanto.

Guarda-nocturno do mar # 2

- A primeira coisa?
- Sim, a primeira coisa.
- Trocar as lâmpadas. Dos quartos, vinte e cinco velas por cem. No candeeiro da sala, vinte e cinco velas por sessenta.
- É uma casa de férias, quanto menos luz lhes gastares, mais eles ganham. No resto do ano a casa está vazia, com água e luz cortada.
- Percebo. Mas eu tenho de ler.

Guarda-nocturno do mar


Vai ser o meu trabalho até 1 de Agosto. Serviços mínimos por aqui.

Ténis de risco

Mordillo, Tenis de riesgo

- Luís, vou-te mandar a petição para assinar.
- Qual petição? Sobre quê? Não sei de nada.
- O Movimento Metáfora Consequente, cujo mentor é o conselheiro João Carlos Espada, vai propor que a modalidade de pares mistos no ténis seja declarada a modalidade civilizadora por excelência.
- Mas de que estás a falar, Leitora? Não andará aí sol a mais?
- Do Sol falaremos depois. Quando um director inventa um cronista da craveira do nosso mentor há que reconhecer-lhe empreendedorismo e ousadia.
- Mas eu falava mesmo do sol, calor, estes quarenta graus... Que história é essa dos pares mistos no ténis?
- O conselheiro Espada descobriu que os pares mistos no ténis são a derradeira metáfora para a defesa do casamento tal como a moral judaico-cristã o definiu.
- Sério? Os casais competem entre si pela perfectibilidade moral, é isso? Uma bela história de emulação cujos resultados finais são apurados na eternidade, é isso? Ou ainda antes, na procriação?
- Mais simples, Luís, mais simples. Desburocratiza, quer dizer, desfilosofa. É uma questão de lógica. Dois homenes ou duas mulheres em cada equipa não satisfazem os requisitos dos pares mistos. Por essa razão, não são pares mistos. Mas podem jogar ténis, ou até simplesmente bater bolas à parede.
- Isso já é squash, não?
- Talvez, mas o ponto não é esse. Pares mistos não se pode confundir com pares masculinos, ou pares femininos, ou singulares masculinos…
- Ou até quatro a monte de cada lado, para um jogo mais lento e interminável…
- Exactamente. São tudo modalidades possíveis, mas pares mistos só há uma, que é precisamente pares mistos, um par constituído por um homem e uma mulher. É como o casamento, estás a ver? Há outras modalidades de coabitação, de parceria civil e outras coisas que tais, mas só devemos chamar casamento ao par misto, porque se chamássemos casamento a tudo, já não se distinguia nada… Quer dizer, penso que é isto, às vezes os fundamentos do conselheiro são um bocado obscuros…
- Mas tu sabes que um tipo, num torneio de ténis, pode participar nos pares mistos, e nos pares masculinos, e nos masculinos singulares…
- É uma questão de potência física, eu sei. Aplica-se o mesmo ao casamento e a coisas colaterais que a gente pode fazer mesmo estando casada… Quer dizer, penso que é isto, sabes que os mentores são sempre muito profundos e complexos, por isso aliás é que são mentores…
- Mas sabes também, por certo, que a modalidade de pares mistos não goza de quaisquer privilégios legais ou fiscais por comparação às outras modalidades.
- Assim é, Luís.
- E também não te terá passado despercebido, Leitora, que quanto aos privilégios simbólicos da modalidade de pares mistos, eles são...
- [interrompendo] Inexistentes, nulos, deprimidos, o que quiseres. De facto sei isso, Luís. Mas o importante não é a verdade ou a realidade que poderá estar subjacente à metáfora, mas a força da metáfora que se tem por realidade ou verdade.
- Por este raciocinar ainda me vais dizer que o teu mentor é nietzscheano...
- Em bom rigor, Luís, o conselheiro Espada é um anti-nietzscheano que se desconhece. Quer dizer, se bem o percebo...
- Em bom rigor, Leitora, quem não te percebe sou eu.
- É simples. Nietzsche desmontou a verdade, quer dizer, a realidade, para na sua genealogia encontrar uma metáfora, essa coisa lábil, móvel, difusa... O conselheiro Espada tem horror ao difuso e teve de reconstruir as metáforas, voltar à solidez da realidade. E de cada vez que chega à realidade, é como se sempre lá tivesse estado.
- Mas chega à realidade?
- Por via da metáfora, mas não pode admiti-lo. Quer dizer, se bem o percebo...
- Hum... Estou a ver... Isto é, estou a ver que pouco se pode ver... Mas afinal, a petição?..
- Proteger a modalidade de pares mistos, pelo seu alto grau civilizador.
- Já tinhas dito. Como?
- Tornando a metáfora consequente.
- Também já tinhas dito. Mas como?
- Se os pares mistos são o casamento e o casamento é os pares mistos, só se deviam admitir inscrições em simultâneo.
- O par ao mesmo tempo?
- Mais do que isso. O par ao mesmo tempo e em ambas as modalidades. Só podem jogar pares mistos se forem casados, e só podem casar se jogarem pares mistos.
- Manda a petição, eu assino.

Make this moment

Nunca subestimar este jazz leve na noite, enquanto se atravessa de cor a auto-estrada do costume. Ninguém me tira de cabeça que foi por isso que trovejou abstractamente lá longe. E que finalmente choveu quando cheguei a casa.

Psicopatologia da vida quotidiana

Há os que metem ambas as mãos por dentro do saco, e agarram aos molhes até estar bem. Há os que seguram o saco numa mão e com a outra vão deitando lá para dentro a eito. Há os que põem o saco num canto e vão escolhendo quase uma a uma: rejeitam as tocadas, as mais moles, e algumas nem se sabe bem porquê, qualquer coisa na textura ou na cor que não parece elegível. Pertenço a este grupo. Com toda a fruta é assim. Mas com as cerejas o processo pode ser particularmente cómico e moroso.
Vale a pena? Para ser como uma pintura, vale. E para comer olhando através do sabor, no escuro da boca, ainda mais. Não há equivalente para a luz do sabor. Por isso se beija de olhos fechados, mas se escolhe de olhos abertos. Em princípio, claro.

Coisas de partir

David Goldblatt, Casa térrea

Notável artigo de Jorge Almeida Fernandes no Público de ontem (sem link), sobre o conflito no Médio-Oriente: Para lá da Guerra. Um extracto:

«O ataque do Hezbollah na quarta-feira, com o rapto de mais dois soldados, conclui a derrapagem: o Hezbollah coloca o Hamas a seu reboque e passa a determinar a agenda palestiniana. Quem diz Hezbollah, diz Síria e Irão. Para Israel é uma ameaça letal. Por isso, Olmert falou em “acto de guerra” e não em terrorismo.
Hoje, o objectivo de Israel é recuperar o Hamas “bom”, o de Gaza, e ajudar Abbas a formar um governo de unidade entre os fundamentalistas e a Fatah, a quem voltaria a pagar os impostos. Exigirá o regresso à trégua e o fim dos rockets contra o seu território, mas não pedirá nenhuma declaração sobre o seu “direito à existência”. Se, como diz Shimon Peres, “os palestinianos nunca perdem a oportunidade de perder uma oportunidade”, Israel copia-os genialmente.»

Neste xadrez de terrível complexidade, os custos são demasiado altos e não há quaisquer garantias de que se possam recuperar os maus lances numa nova partida. Pelo contrário. Impõe-se mudar de jogo. Como dizia o meu pai acerca de algumas exigências evidentes de progresso: é tão verdade que tantas vezes vai o cântaro à fonte que acaba por lá deixar a asa, que se decidiu canalizar a água. Como democracia e como potência militar, Israel tem especiais obrigações de canalizar a água. E neste caso, a questão até tem contornos muito literais... São coisas inerentes à superioridade moral das democracias.

PS: O Luís M. Jorge transcreve, com sublinhados que eu re-sublinharia na íntegra, a também notável crónica de Mário Vargas Llosa no El Pais: Israel y los matices.

PS2: Eram outras as coisas de partir de Ana Luísa Amaral. Eram outras? Foram sempre estas também, como causa ou consequência das outras.

Coisas [ouvidas] vistas [fora de] no tempo 4


Ouviu-se pelas botas (que seriam outras, “mais botas”), ouve-se ainda pelos sapatos (sim, é um pouco a continuação de saltos altos, ainda que seja mais evidente dizer “querida Sofia” do que dizer “querida Patti”, e no entanto diz-se, e para os que sabem há certas não evidências que são a arca do tesouro).

Coisa ouvidas fora de tempo 3


When I look at it now, I believe we captured some of the anthemic artlessness of our age. Of our generation. A breed apart who sought within a new landscape to excite, to atonish, and to resonate with all the possibilities of our youth.
Sim, compreendo. E contudo, uma sensação de estranheza tão grande como quando leio Pessoa a queixar-se do insuportável stress do seu tempo, da vertigem de um carro andar a trinta à hora... Até onde irá a fronteira do que vamos assimilando como normal?

Coisas ouvidas fora de tempo 2

Jesus died for somebody’s sins but not mine.

Continua a ser verdade. Pelos meus, vou vivendo mal, umas vezes sei porquê, outras dificilmente. A morte é outra história.

Coisas ouvidas fora de tempo

Free Money, faixa quatro do álbum de 75: piano e voz do Antony and the Johnsons que viriam muito depois, acordes de guitarra dos Dire Straits que viriam daí a três anos, resto ainda de Patti Smith. Free Money, faixa quatro do álbum de 2005: Antony desapareceu, guitarras aprenderam de Knopfler o desenvolvimento do que lhe deram, resto continua a ser Patti Smith. Entre ir e vir do supermercado, também há posts.

paisagem, areia 6 [confessional]

Álvaro Lapa


Prefiro muitas coisas que não menciono aqui
a outras também aqui não mencionadas.
Szymborska

Breve encontro

Vi uma gazela, ontem, ao fim da tarde, na mata de Caminha. Eu parei, ela estava distraída. O tempo suficiente para passar dos meus olhos de Roberto de Niro à mata real. Eu continuei parado, ela seguiu.

Os trabalhos e os dias (16)

Acrescentos ao post anterior, motivados por alguns mails com perguntas e comentários.

1. Não vejo má-fé no Ministro, nem entendo que o politécnico seja o alvo a abater. Vejo é excessivo cuidado no tomar de medidas que têm que ter alguma radicalidade. Compreendo o cuidado, embora veja e sinta alguns dos seus efeitos perversos. Urge definir a Rede do Ensino Superior Público. Do lado do bem público, é-me indiferente que fechem ou se mantenham estes ou aqueles politécnicos, só porque eu lá estou ou não. Quero é uma ideia para a Rede, discuti-la, e vê-la evitar o desperdício que têm sido estes últimos anos.

2. Não penso que o Ministro feche e abra cursos conforme lhe apeteça. Acho é que o Ministro, naturalmente, está enredado na própria complexidade de um sistema de ensino superior bi-céfalo mal definido. A tutela não pode defini-lo sem praticamente reconstruir o sistema de alto a baixo. O CRUP e o CCISP não exigiram de facto a definição da rede, nem quanto aos estabelecimentos de ensino nem quanto aos cursos, porque estão demasiado habituados a conseguir “vitórias parciais” conforme a sua proximidade às equipas ministeriais. Regras claras delimitariam com rigor o campo de cada um, mas inevitavelmente diminuiriam também a ambição que neste momento os anima, quer na guerra entre sub-sistemas, quer na guerra dentro de cada sub-sistema. Essa ambição é quase total: cada um quer canibalizar o outro. Efeitos perversos da autonomia: o bem público secundarizado por estratégias de mera sobrevivência ou de conquista de espaço de expansão.

3. O curso em causa era um curso de "Estudos Artísticos e Culturais", destinado a criar programadores e gestores culturais cujo campo de actuação seriam as instituições públicas e privadas ligadas à cultura (câmaras, associações, galerias, teatros, etc). Isto num distrito que, segundo relatórios internacionais [Estudos Estratéxicos do Eixo Atlântico, Libro II, p. 79], tem infra-estruturas culturais largamente desaproveitadas por falta de recursos humanos qualificados que as possam potenciar [convém sempre ter a caução de relatórios internacionais para confirmar aquilo que a olho nu é de uma evidência meridiana].

4. A vertente profissionalizante do curso era óbvia, e estava protocolada com as instituições do distrito.

5. Na rede pública, temos de descer até Coimbra para encontrar um curso análogo.

6. Do ponto de vista técnico, não houve reparos nem ao curriculum proposto nem à qualidade do corpo docente que o ministraria. A decisão foi política. O mais está no post anterior.

7. Bach é grande. Convém não esquecê-lo, para encontrar a justa perspectiva para o resto.

Os trabalhos e os dias (15)

Preparar uma proposta de curso leva muito tempo. Instruí-la segundo os parâmetros definidos em cima da hora pela tutela (MCTES), também. No primeiro crivo, que a tutela definiu como apreciação da “conformidade com os requisitos técnicos”, o parecer foi positivo: o curso poderia funcionar para o próximo ano lectivo, sendo financiado se conseguisse captar vinte alunos. A Escola, que pertence ao Instituto Politécnico de Viana do Castelo, definiu as suas vagas e investiu na publicitação do curso.

Hoje de manhã, telefonema da Direcção Geral do Ensino Superior. O Ministro não autorizava o funcionamento do curso porque, no seu entendimento, o curso não se enquadrava no espírito do ensino politécnico. A Escola tinha pouco mais de meia-hora para redefinir a afectação das vagas pelos restantes cursos que ministra.
Nem importa dizer aqui o nome do curso em causa, porque o problema não passa pelo caso específico. O problema passa pela lacuna legislativa. A diferenciação que se pretende entre Ensino Universitário e Ensino Politécnico é, em termos legais, tão difusa e tão nominalista, que em si mesma nada distingue, embora tenha consequências práticas imensas, começando no estatuto simbólico das instituições e continuando ao nível da diferenciação de financiamento, favorecendo de forma clara o ensino universitário (na prática, cursos iguais, como os de formação de professores, por exemplo, recebem um financiamento acrescido se ministrados por uma Universidade).
Para este peditório já dei que chegue. Pessoalmente, não vejo a distinção efectiva, nem a mais-valia dessa distinção (e muito menos agora, com as formações distribuídas por dois ciclos, o que retira aos politécnicos a meta estrita do bacharelato — coisa que, aliás, na maior parte das formações já tinha desaparecido pelas próprias exigências do mercado). Mas se o legislador entende que a distinção deve existir, então deveria torná-la clara para todos. E a clareza não passaria apenas por afirmação contrastante de princípios e de objectivos, deveria ser operacionalizada em termos das áreas afectas a cada sub-sistema. Assim, cada um saberia ao que ia e o que esperar.
Por último, devo dizer que embora nenhuma argumentação nos tenha sido exposta pela Direcção Geral do Ensino Superior, a não ser a de que o curso não se enquadrava no espírito politécnico, não vejo qualquer dificuldade em reconstituir, como juridicamente se diz, o “itinerário cognoscitivo” que terá levado o Ministro a uma tal conclusão. Mas, do mesmo modo, também não vejo qualquer dificuldade em argumentar consistentemente um “itinerário cognoscitivo” capaz de conduzir à conclusão contrária.
O que, sim, tenho dificuldade, é perceber que o itinerário cognoscitivo que levou o Ministro à não aprovação do curso não tenha funcionado igualmente para outras propostas de cursos e para a continuidade de muitos dos existentes. Mas por outro lado, e de novo, não tenho igualmente nenhuma dificuldade em entender essas decisões diferenciadas, porque há sempre variantes específicas a considerar caso a caso. E também, de novo, nenhuma dificuldade em entender que essa decisões diferenciadas pudessem ser, caso a caso, o contrário daquelas que foram tomadas.
Não estou, pois, a insinuar qualquer decisão ministerial ad hominem (neste caso, ad instituição). Estou apenas a afirmar, isso sim, que não há aqui quaisquer critérios ou princípios dos quais se possa deduzir em “linha recta” o que é universitário e o que é politécnico. Estou a afirmar que a distinção é política, e que a política deve ser comunicada atempadamente, para que as Escolas possam, por seu turno, administrar politicamente as suas escolhas e o seu trabalho.
Em resumo, durante vários meses contribuí(mos) largamente para a dita improdutividade nacional. E se a culpa disso não foi minha/nossa, porque me sentirei tão inútil?

Psicopatologia da vida quotidiana # 2

Pequeno intervalo, quatro homens em volta da máquina do café.
O primeiro firmemente plantado nas pernas abertas, como capitão em descanso na parada. O segundo descontraído e leve. O terceiro tímido, apoiado na mesa. O quarto de mão no bolso, semi-formal, vendo o mundo e tentando atravessá-lo.
Conheço estes homens há muitos anos. Tenho algum asco pelo primeiro. Sou amigo do segundo. O terceiro é-me simpático, e com mais tempo de convivência seríamos provavelmente amigos. O quarto é como um irmão com quem nos déssemos bem.
As amizades têm os seus mistérios e os seus inexplicáveis. Mas ao vê-los, sei de ciência certa que nunca poderia ser amigo de um homem firmemente plantado nas suas pernas abertas, como capitão em descanso na parada.

Multiplex 17

a film by Miranda July

- O pormenor particular de cada uma destas histórias é quase sempre um bom achado, ou até um grande achado. Mas tudo fica demasiado suspenso, ou demasiado metafórico.
- Uma sucessão de pequenos poemas, e não o fluxo narrativo de um filme que quer ter um antes e um depois.
- Ou então, tudo demasiado contaminado pelo lado infantil das personagens: as descobertas da infância, ou ganham densidade na idade adulta ou tornam-se simplesmente infantis.
- Ninguém, aqui, fala verdadeiramente com ninguém.
- E contudo, cada história poderia ser a fala de uma vida, a construção da vida.
- É por isso que deves tomar nota do nome dela, isto é apenas o princípio.
- Espero que ela não conheça muita mais gente, e tenha tempo para conhecer melhor a muita gente que já conhece.
- É como te digo, isto é apenas o princípio.

paisagem, areia 5 [fechando o dia]

Deixem que que quem não conheceu o amor feliz
afirme que nunca há amor feliz.


Com esta crença mais leve lhes será tanto viver como morrer.
[Szymborska]

Pronto, agora vai dormir. Ficas insuportável quando te pões a mexer nos papéis velhos que não tens, a imaginar a vida que não tiveste só para te poderes lamentar da falta que ela te faz. Já leste uma coisa parecida? Pois, és um epígono. Mas os epígonos, tal como todos os outros das restantes condições, também dormem. Vai dormir. É uma ordem.

paisagem,areia 4 [acabando de arrumar]

Como viver, perguntou-me numa carta alguém
a quem eu tencionava perguntar
a mesma coisa.

Uma vez mais e como sempre,

como se vê no que acabei de dizer,

não há perguntas mais urgentes

que as ingénuas.
[Szymborska]

Isto era no tempo das cartas. Mas as perguntas não mudaram, agora que estamos no tempo dos mails e dos sms. Continuam a ser ingénuas, e têm a grande vantagem de ser breves, o que se adapta bem à velocidade da leitura, e corre ainda mais depressa do que a maior velocidade de transmissão. E contudo, alguma coisa mudou. Há quem diga que é o estado adulto, ou simples estratégia de contorno e sobrevivência. Eu acho que estamos fartos de saber, e não há já ninguém que mereça que se pergunte de novo. Disseram-me que isso era a mesma coisa que eles diziam. Eu acho que não. Mas o mais provável é estar mais uma vez errado.

arrumações 2

Mudas de um lugar para outro, é tudo. Experimenta deitar fora. Que interessa a memória? Sendo preciso, re-inventas. É possível que até fique melhor. Não? Preferes a imperfeição do vivido? A completa derrota de algumas coisas que viveste? Há pessoas para tudo. Mas sabes que a vida, um dia, te deitará fora sem subterfúgios. Sabes isso, não sabes? Era só para deixar as coisas claras.

paisagem, areia 3 [arrumações]


Lemos as cartas dos mortos como impotentes deuses,
e deuses, todavia, porque sabemos as datas posteriores.
[W. Szymborska]

Algumas das cartas são nossas.

post Figo

O bolo. A cereja.

Adeus ao Mundial (emoções, Figo)

Não foi um grande mundial, este que logo vai acabar. A espaços, lá houve futebol, mas não muito. Viveu-se sobretudo da memória do futebol que já houve. Quer dizer, do desejo de que haja futebol. E de emoções, muitas emoções. Porque quando toca aos “nossos”, por mais feio que seja, ou mesmo que a gente dê meia volta porque já não há pachorra para aqueles arremedos de jogo, no fim a gente vem sempre perguntar o resultado.
Acho que a chave deste mundial foram mesmo as emoções. O futebol poderá ainda aguentar mais uns mundiais vivendo só da lenda de outros tempos e das emoções que desperta. Coisa o seu tanto primitiva, troglodita, tudo isso. Mas mudemos de registo, e encontram-se umas estranhas isotopias. Recorde-se, por exemplo, o alarido pelo filme de Cronenberg, Uma história de violência. Houve quem agradecesse, sem blague, por um filme que nos voltou a fazer sentir. E percebe-se. Porque no mainstream, as emoções estão já de tal modo esteriotipadas e formatadas, que pouco ou nada emocionam (há sempre excepções, claro). E no cinema independente, um dos problemas que é sistematicamente colocado é desde logo a extrema dificuldade de personagens contemporâneas comunicarem com as suas emoções, o que acaba por se reflectir, et pour cause, no próprio filme.
As emoções proporcionadas pelo directo futebolístico têm dois ingredientes fundamentais que a vida mediatizada nos tende a negar: o imprevisível (ligado aos mecanismos da sorte e do azar), e o humanamente suportável (se a bancada ruir e pessoas morrerem, a questão já não é de futebol). Qualquer telejornal é previsivelmente de más notícias e, a largos espaços, humanamente insuportável — e que consigamos suportá-lo, diz uma forma de lidar com as emoções que não pode deixar de ter um preço.
Logo, torcerei pela França. Tudo bem se a Itália ganhar, e melhor ainda se houver grande futebol. Mas torcerei por Zidane e Henry, mas sobretudo pela possibilidade de ver escrever em directo mais uma lenda do futebol: que o último jogo de Zidane pela sua selecção seja o do seu segundo e merecido título de campeão do mundo.
E last but not least, torcerei contra Le Pen, que neste particular já está derrotado, mas que bem pode levar mais um grande amargo de boca. Era a cereja em cima do bolo, agora que já não é possível adorná-lo com um Figo.

Qualia

É antropólogo, tendência grande qualidade, preocupação epistemológica mas não só, claro. E poeta, linha saturnina, por assim dizer: o que começa a complicar a coisa, porque dos trópicos aos tropos o caminho nem sequer é triste, provavelmente nem sequer é caminho, é apenas a mesma morada. E ex-casmurro, para que a complicação seja perfeita. Comprovar em qualia.

Condição bloguista

Fora de casa, é mais fácil blogar do que consultar o mail de uma conta pessoal.

Por dentro do tempo

Também há dias assim. Começam cedo, viajando por dentro da música até onde o trabalho espera. Acabam tarde, regressando por dentro da música até onde a restante vida mora. Por cada fresta, desânimo, recomeço, pausa, a música está lá. No olhar cúmplice ou nas palavras tensas, nas árvores em volta ou na atmosfera saturada das reuniões. Silenciosamente, corre no sangue. Não a conheço por dentro, não sei lê-la, por vezes confundo mesmo os instrumentos. Mas ela conhece-me. Isso basta.

Nobres [actualizado]

Há uma iconografia nobre do futebol. O abraço entre Figo e Zidane, antes e depois das trocas de camisola, coloca o futebol no seu devido lugar. É um jogo no seio do destino: Portugal teve tanto azar ontem quanta a sorte que teve contra Inglaterra. A essência do drama está nisso, não quando uma equipa é esmagadoramente superior à outra. É por isso que aqueles que sabem — e os mais velhos, os nobres capitães, sabem-no — se abraçam sinceramente no fim: aquilo que foi um jogo, um dia será a nossa realidade, a morte às mãos de um destino que tem de cumprir-se. E se nesse dia estaremos sós, como é da nossa condição, os abraços antes e depois são o que de humano teremos ainda a dizer ou a recordar. E não é preciso sabê-lo assim, tão metafisicamente escrito que até parece suspeito, basta algum dia tê-lo jogado até ao limite da nossa condição física.

Actualização 1: Para o ter jogado até ao limite da nossa condição física, tanto dá o grande estádio megagaláctico como o campo do liceu ou o recreio da escola primária. A criança, como se sabe, imagina-se sempre no grande estádio. Mas a grande estrela só quer atingir mesmo essa plenitude da criança que alguma vez ganhou imaginando-se a ganhar no grande estádio. De uma outra maneira, isto está tudo no Proust. E não só.

Actualização 2: Nada a opôr à lista dos dez melhores do mundial divulgada pela FIFA. Mas aqui do meu cantinho, sempre direi que Ricardo Carvalho provou que é o melhor defesa central do mundo. E o penalti sobre Henry não é mancha nenhuma, como li de través nos jornais desportivos ali na bomba de gasolina. Qualquer outro defesa teria simplesmente ficado sentado a ver Henry passar lá muito ao longe. Ricardo Carvalho torceu-se ao cair para tentar ainda lá chegar. É verem a repetição sem olhar para a bola e os pés de Henry, mas para a cara e o tronco de Ricardo Carvalho.

Multiplex 16

Arie Posin, Os amigos de Dean
- Três coisas, Luís.
- Ok. A primeira?
- Não é um filme de adolescentes. É um filme de adultos perdidos na sua vida suburbana, middle-class, e que não conseguem comunicar com os seus filhos porque não conseguem comunicar consigo mesmos.
- Muito actual, convenhamos. A segunda?
- Alguma estereotipia nos tipos, ao modo das melhores séries americanas, algum humor corrosivo, mas final recolocado na boa psicologia dos lutos familiares e da transformação para o futuro.
- Optimismo pragmatista, está bom de ver. E a terceira?
- Uma grande cena de cinema, a poesia própria do cinema. O rapaz que se suicida deixa um rasto de dor sobretudo na mãe e num amigo. Uma noite, o amigo vai dando voltas na cama, sem conseguir dormir. E ouve, do outro lado da rua, a mãe que escava um canteiro, em actividade frenética. Ficam assim noite dentro. E os planos fundem-se fisicamente num único: a cama no jardim, a mãe do amigo escavando aos pés da cama.
- Pura poesia tarkovskiana.
- Talvez. Mas urbana. E mais psicológica que metafísica.
- Isso agora era uma grande conversa, Leitora... Mas deves ter razão. Dirias que esse plano é reabsorvido pelo final, ou subsiste para além dele como estranheza?
- É reabsorvido pelo final, sem dúvida. E por isso é psicológico e só aparentemente tarkovskiano. Mas é belo.
- Acredito no teu gosto, Leitora.

paisagem,areia 2 [carta presente de um amor passado]


Podia ter acontecido.
Tinha que acontecer.
Aconteceu antes. Mais tarde. Mais perto. Mais longe.
Aconteceu mas não contigo.


Wislawa Szymborska, Paisagem com grão de areia

Misreading 3 [seria excelente, uma personagem assim]

“Ela corre atrás da dor e a dor procura-a. Ela evita a dor, e a dor dos outros aparece.”

Misreading 2 [níveis]

“Este facto, de M. ser bondosa, pode muitas vezes prejudicá-la. O mesmo acontece na vida real, até no nosso quotidiano”.

Proposta à FIFA

Considerando mais este exemplo flagrante Itália-Alemanha, em que só houve futebol no prolongamento, em especial já na segunda parte do dito.
Considerando que tal se deve, salvo melhor opinião, a uma visível quebra física, que deixa em pantanas a táctica, a defesa alta e outras coisas que tais.
Proponho:
1. Que todo o jogo se inicie com duas horas de corrida e exercícios físicos violentos, envolvendo todos os convocados para o jogo, inclusive a equipa técnica (para distrair o público, podem-se pôr animais a perseguir os jogadores, ou sujeitá-los a máquinas de ginásio ligeiramente enlouquecidas).
2. Jogo de uma hora, trinta minutos de cada lado, sem intervalo.
A bem do melhor desporto do mundo, assina-se este vosso criado.

Frase do jogo, antes do prolongamento

Odonkor entrou agora e corre o risco de ser multado por excesso de velocidade, neste jogo táctico e arrastado.

O verdadeiro inimigo

É preciso dizê-lo mais vezes: o verdadeiro inimigo é o que não irrita logo logo. O verdadeiro inimigo aparenta o mesmo grau de civilização que nós. O verdadeiro inimigo usa quase toda a nossa linguagem, mas estribado no bom-senso do não-pensamento. O verdadeiro inimigo só quer que a gente se distraia um bocadinho.

Uma ideia de história

O Groucho, partindo da política do cânone, chega à psicanálise dos canonizadores. Já agora, não seria melhor que esses se dedicassem à história feita léxico? Seria muito mais que terapêutico, seria realmente útil. É só uma ideia. Uma ideia de história, está bom de ver.

It’s a mess

António Damásio, ontem, na abertura do Congresso Europeu de Psicologia na Universidade do Minho, perante um auditório apinhado, depois de ter exibido o material mais recente das suas pesquisas, respondendo à pergunta que a sua lecture colocava: what is an emotion?
Pouca gente riu, e aposto que dos que riram a maioria seriam os não-psicólogos que pagaram apenas para ir ouvir o homem... Depois houve mais material, e muita gente a tomar notas afincadamente. É um congresso de psicologia positiva, disseram eles. Dei um salto na cadeira, mas sosseguei logo, que já tenho questões que cheguem no meu ramo. E no fundo, a resposta já estava dada: it’s a mess.

Ouvido no hipermercado 1 [entre homens]


Na secção do pão. É sempre a facturar. Agora o Scolari pode vingar o Brasil, e aparecer como salvador para a torcida. O Deco vai sambar para o Parreira. O Figo vai fazer aquele manguito para o treinador do Real Madrid. E o Cristiano Ronaldo vai fazer uns olés e dar a estocada final. É só vantagens.


Na secção dos vinhos. Mulher de amigo, para mim, é homem. Mas ela estava mesmo a pedi-las. E ele também já não é como antigamente, que todas as semanas estávamos ali batidinhos para o futebol. Tivemos de ir buscar o Costa para substitui-lo. Tu já viste bem? O Costa, foda-se. De modo que a mulher apanhou por trás, e foi como se fodesse os três de uma vez. Não é que me orgulhe, mas ele há coisas que se um gajo não faz, não é homem nem é nada.


Na secção dos jornais. Olha, o Bento 16 está dividido entre a Alemanha e a Itália, para a meia-final. Coitadinho do Bento, que dilema! E nem tem espaço para Portugal ou França, o que é pouco ecuménico. Mas o que eu gostava mesmo de saber é como estamos relativamente à Santíssima Trindade. É que as equipas são quatro, não sei se estás a ver o problema...

Multiplex 15

- Vale por Isabelle Huppert, Leitora.
- E aquela coisa política, baseada inequivocamente num caso real, das luvas que se pagam pelos grandes contratos internacionais?
- Hum... Nada de novo. E nada de novo também na figura da juíza “justiceira”, da promoção como forma de desviá-la do processo, no enrodilhar dessa obsessão pelo trabalho com o desfazer do seu casamento.
- Nada de novo no cinema de Chabrol, é isso?
- Mas o cinismo continua a ser inteligente. Até o seu tanto incoveniente.
- Incoveniente?!
- Para os bens pensantes, claro. Está tudo no cartaz, por falar nisso. As luvas vermelhas dela são gémeas do vermelho do conceito l' ivresse du pouvoir.
- Pois, dois poderes, a mesma embriaguês.
- E isso tudo está em Isabelle Huppert: a frieza, o cinismo, a inteligência, alguma coisa de perdido que não é a inocência nem a ternura, mas aquela capacidade de viver apesar disto tudo.
- Que é difícil, valha a verdade.
- Sim, é difícil. Mas que nos resta para além disso?

Lavar o olhar, faixa a faixa. Claro, a música. Mas aqui é a música nele, como extensão do corpo. Outra forma de ouvir, sem a qual ouvir só com os ouvidos nunca será tão completo.

Quando a lenda

Claro que o problema é meu. Mas foram vários mundiais e europeus a ver a selecção nem sequer chegar lá, ou a vê-la ficar pelo caminho (às vezes de forma vergonhosa). De forma que com um meio-campo de castigo e uma Inglaterra em boa forma, esperava resistência defensiva e a estrelinha da sorte. O único espanto do jogo foi a forma soberana como Portugal entrou a jogar — decididamente, esta é outra mentalidade. O pior veio depois, contra dez, aquele medo atávico (ou receio muito à Scolari?) de arriscar um bocadinho. Valeu a estrelinha de Ricardo, pois claro. Já temos lenda. Bem podem esquecer a realidade, até porque a realidade do jogo afinal não houve.
Já a França foi outra história. Quer dizer, foram lá atrás buscar a outra França, a que muito justamente foi campeã mundial, e uma orquestra pela batuta de Zidane é coisa única nos tempos que correm. Aqui, a lenda continua a escrever a realidade.

PS: isto não é um prognóstico para o jogo de quarta. Porque se fosse, eu diria que Deco não é a lenda que Zidane merecidamente é, mas neste momento Deco é mais Zidane do que ele próprio. Bem assim como o resto da orquestra. E parece-me que alguma coisa se soltou na orquestra portuguesa com esta passagem às meias-finais: já não há nada a perder.

Eu sei que isto não tem nada a ver,

mas dou comigo a pensar que essa coisa dos subsídios da câmara do Porto, sim, essa coisa de protocolar com as entidades subsidiadas a obrigação de se absterem de, publicamente, expressar críticas ao bom-nome do município do Porto, bom, fico a pensar que para alguém ter a coragem de assumir um tão alto sentido democrático tem de existir um clima simbólico, quer dizer, uma espécie de crença subjectiva (mas crença subjectiva não é um pleonasmo?), ainda que estribada em factores objectivos, enfim, o homem tem de se sentir minimamente impune e protegido, o homem deve ter feito a sua leitura política, tipo Cavaco na presidência, eu, Rui Rio, condecorado por Cavaco na presidência, logo cavaquismo na câmara. Não? De todo? É apenas o Alberto João a transferir-se para o continente, com o Menezes logo ali ao lado a seguir-lhe o bom exemplo com o apoio aos jornais locais desde que também etc e tal? Pronto, eu também disse que isto não tinha nada a ver.

A Leitora, no seu infinito particular (XXV)

- Ah, isso eu não sabia.
- São coisas antigas, Leitora.
- Mas deve ter sido uma experiência interessante.
- Diz antes elucidativa. Mesmo para um adolescente. Ou sobretudo para um adolescente, para dizê-lo com toda a propriedade.
- E tinhas tempo para isso?
- Arranjava-se. Duas tardes no clube de xadrez, duas tardes no clube de basket. Era fraquito em ambas as coisas, mas gostava de ambas as coisas.
- E então, sempre é como diz o Pacheco Pereira, o xadrez pensa-se com a cabeça e o futebol pensa-se com os pés? No caso do basket deve ser com as mãos, não?..
- Oh, o Pacheco Pereira... Fora das suas embirrações ideológicas e um pouco snobes, até gosto do homem. É como com o Vasco Graça Moura, a gente admira a cultura e uma certa veia filosófica, e fica siderado com algumas irrupções do nearthental.
- Mas não foi isso que eu perguntei, Luís...
- Pois não. Imagina então o que é um adolescente apresentar-se a treinos e ouvir o treinador repetir que o basket se joga com a cabeça. E havia um quadro para desenhar as movimentações, e um livrinho que levávamos para casa para estudar as jogadas. E treinos de carácter: um porque era demasiado agressivo e tinha de ser domado, outro porque era demasiado medroso e tinha de ser encorajado, outro porque se armava em carapau de corrida e tinha de aprender a jogar para o colectivo, e por aí fora. O melhor do treino eram os cinco minutos finais, quando o treinador guardava o apito e jogávamos fora dos cálculos.
- Pensavam vocês que jogavam fora dos cálculos...
- Claro, e visto desta distância é o mais delicioso. Fazíamos o contrário das jogadas programadas sem nos apercebermos de que estávamos a programar um nível mais alto.
- E o xadrez?
- Gostava. Era como uma sucessão de problemas de matemática, e eu gostava da matemática. E também havia livrinho e programação das jogadas. Depois tive de optar, porque não havia tempo para estudar ambas as coisas. Precisava de me mexer e de companhia, escolhi o basket.
- E as pessoas?
- Como, as pessoas?
- Com mais neurónios no xadrez?
- Mas tu já alguma vez leste ou ouviste entrevistas de jogadores de xadrez? Fora daquilo é o deserto ou a trivialidade. Com as excepções do costume, que exactamente por serem do costume há em todas as áreas.
- De modo que...
- De modo que mais xadrez para todos, mais futebol para todos, e o Pacheco Pereira que se acalme, que tem toda a razão quanto à obsessiva cobertura mediática do futebol, mas não precisa de vir com populismos elitistas a terreiro...
- Populismos elitistas?! Onde é que tu foste buscar essa, Luís?
- É esse teu peão que se vai transformar em rainha, minha cara Leitora. Como vês, estou muito enferrujado. Neurónios já sem reflexos de xadrez.
- Ou simples perda de neurónios...
- Vá, respeitinho pelos mais velhos, menina.